quarta-feira , 24 abril 2024
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Direito Agrário - Foto: @Gf_agro

Contratos Agrários Típicos e a repercussão das normas trabalhistas

por Paulo Bonorino.

1. Introdução:

O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) disciplina o microssistema jurídico do Direito Agrário no ordenamento jurídico brasileiro e juntamente com seu Decreto nº 59.566/66, o qual regulamenta especificamente os contratos de parceria e arrendamento, estabelecem normas de direito público (portanto, de caráter indisponíveis) nas relações envolvendo a produção agro-silvo-pastoris em imóveis agrários.

A mens legis que permeou o Estatuto da Terra na sua edição – meados da década de 60 – quando o Brasil ainda buscava fixar parte da população no campo e aumentar a produção agrícola para abastecer seu mercado interno, já que ainda necessitava lançar mão de importações de alimentos, não só prosperou como, ao passar das décadas, assistiu o País se tornar o maior exportador de alimentos do mundo.

Dessa forma, se nota que uma produção mais acanhada e muitas vezes voltada à subsistência do homem do campo deu lugar a uma verdadeira indústria à céu aberto, onde o chão da fábrica é o próprio solo e o teto são as estrelas, nascendo a produção de larga escala, que utiliza tecnologia de ponta e tem a ciência como sua maior aliada.

Essa nova forma de produzir alimento, conhecida como o Segundo Ciclo do Agrarismo na expressão cunhada pelos Profs. Darcy Zibetti e Albenir Querubini[1], exigem do produtor um profissionalismo crescente e uma organização digna da atividade empresarial, o que leva necessariamente a processos, atitudes e condutas sistematizadas, concatenadas e com repercussões em diversas esferas que envolvem a moderna produção de alimentos, marcada pelo risco agrobiológico, além dos riscos (bônus e ônus) ordinários de qualquer negócio ou atividade econômica.

Tais riscos envolvem contratos (dentro e fora da porteira), relações de trabalho, comerciais, financeiras, tributárias, societárias e até mesmo as familiares, dado que a maioria das atividades empresariais no Brasil são verificadas entre empresas familiares.

No presente artigo, abordaremos os contratos agrários típicos para uso e exploração do imóvel agrário – arrendamento e parceria – do ponto de vista das relações de trabalho e suas repercussões em cada uma das duas espécies, os riscos inerentes em cada um desses contratos e como a jurisprudência vem enfrentando e interpretando as relações de trabalho num e noutro tipo de arranjo.

 

2. O contrato de trabalho agrário:

           

De forma geral, o contrato de trabalho (relação de emprego) se dá independentemente da vontade das partes e sempre que se verificarem presentes a subordinação jurídica, a pessoalidade, não eventualidade e dependência econômica entre, no mínimo duas partes em uma relação jurídica.

Especificamente no que concerne ao trabalho em atividades agrárias, o contrato de trabalho se dá de acordo com a previsão do art. 2º e 3º da Lei nº 5.889/1973[2], lei especial e específica aos trabalhadores rurais, conforme define o seu art. 1º.

Esclarecidos os requisitos legais para a caracterização de uma relação empregatícia agrária, passemos a abordar sua repercussão nos contratos agrários típicos, arrendamento e parceria.

 

3. Os contratos agrários típicos – parceria e arrendamento – e a repercussão das normas trabalhistas sobre cada um deles:

 

Os contratos agrários típicos são os elencados na Lei nº 4.504/1964, o Estatuto da Terra, na qual estão previstos os contratos de parceria (agrícola, pecuária, agroindustrial ou extrativa) e o arrendamento rural.

Os arts. 5º, XXIII, 170, III, 186, III e IV da CF/88 e o art. 2º, § 1º, do Estatuto da Terra, numa leitura conjunta, preveem que o imóvel rural desempenha sua função social quando atendidos, entre outros, as disposições que regulam as relações de trabalho, explore atividade que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores e suas famílias.

Portanto, é deveras importante compreender que cada uma das duas modalidades contratuais (arrendamento ou parceria) possui consequências e efeitos jurídicos diferentes não somente quanto à remuneração do contrato, mas também quanto às repercussões e responsabilidades que uma ou outra espécie contratual trará aos contratantes no tocante às relações de trabalho existentes naquele imóvel agrário.

Sendo assim, é relevante que, dependendo da espécie contratual encetada, os contratantes contrairão mais ou menos responsabilidades no tocante às relações laborais já existentes ou que venham a existir durante o desenvolvimento daquele pacto.

 

3.1 Repercussão no Contrato de Arrendamento:

           

De início importa delimitar que a hipótese do presente estudo é de contrato de arrendamento onde o arrendatário explore o imóvel agrário por meio de empregados, prepostos ou prestadores de serviço.

Quando se tratar de um contrato de arrendamento, onde o arrendador e o arrendatário não partilham riscos, nem perdas ou lucros, deve restar claro que não há de se apurar a responsabilidade do arrendador por eventuais infringências às normas trabalhistas, pois o arrendador não pratica nenhuma atividade agrária.

O trabalho na terra, no caso do arrendamento, é exercida e/ou administrada pelo arrendatário, podendo o mesmo se utilizar da força de trabalho de outras pessoas para a consecução das atividades a que se propõe.

Veja-se que o poder de comando e disciplinar (principais atribuições do empregador) é exercido integralmente pelo arrendatário nessa espécie contratual, perante quem os trabalhadores possuem subordinação jurídica e dependência econômica, além de realizarem o trabalho com pessoalidade e de forma não eventual.

Todavia, mesmo não exercendo atividade agrária é recomendável que o arrendador insira cláusula no contrato que o permita extinguir o pacto em caso de descumprimento das normas trabalhistas, já que tanto o Estatuto da Terra quanto o Decreto regulamentador preveem tal faculdade, conforme se verifica, primeiramente no Estatuto da Terra:

Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei.

(…).

§ 6º O inadimplemento das obrigações assumidas por qualquer das partes dará lugar, facultativamente, à rescisão do contrato de arrendamento ou de parceria. observado o disposto em lei.

Já o Decreto nº 59.566/1966 (Regulamento dos Contratos Agrários) prevê:

Art 27. O inadimplemento das obrigações assumidas por qualquer das partes, e a inobservância de cláusula asseguradora dos recursos naturais, prevista no art. 13, inciso II, letra “c”, dêste Regulamento, dará lugar facultativamente à rescisão do contrato, ficando a parte inadimplente obrigada a ressarcir a oura das perdas e danos causados (art. 92, § 6º do Estatuto da Terra).

Art 32. Só será concedido o despejo nos seguintes casos:

(…).

IX – se o arrendatário infringir obrigado legal, ou cometer infração grave de obrigação contratual.

A previsão de cláusula extintiva do arrendamento por desrespeito às normas laborais permitirá primeiramente que o arrendador seja declarado isento de responsabilidade em eventuais condenações trabalhistas de diversas ordens ou mesmo evite tenha que realizar e cumprir Termos de Ajustamento de Condutas (TAC), por exemplo.

Sobre tal hipótese, recente julgado do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, o qual analisa a responsabilidade do arrendador em pedido de reconhecimento de vínculo de emprego entre um reclamante, o arrendatário e o arrendador. Veja-se:

Com relação à responsabilidade subsidiária ou solidária do dono das terras arrendadas sobre as verbas sonegadas ao autor pelos arrendatários, consoante referido na sentença:

as provas constantes no processo revelam que houve um autêntico contrato de arrendamento agrícola entre o 2º e 3º réus (Valdir e Alencar), por meio do qual houve a total transferência da gestão, lucros e riscos da atividade desenvolvida na propriedade rural, havendo remuneração ao proprietário do imóvel apenas pelo uso e gozo da propriedade pelo arrendatário, conforme estabelecido no contrato ID. 067ebff – Pág. 2 e conforme demonstram os documentos ID. 5dfd76d – Pág. 1 e seguintes referentes a venda de grãos objeto do pagamento dos valores dos arrendamentos. Portanto, as provas produzidas nos autos indicam que quando do arrendamento das terras entre o 2º e o 3º réus, era o arrendatário quem dirigia a prestação de serviços, remunerado o reclamante (ID. 0f144ea – Pág. 1 e seguintes) e assumindo os riscos, bônus e ônus da atividade, de modo que não há que se falar em fraude no contrato de arrendamento entre os reclamados, sendo cada um deles responsável exclusivamente pelo período em que teve o autor como empregado”.

Sendo assim, nego provimento ao recurso. (Acórdão: 0020270-93.2019.5.04.0664 (ROT), Redator: FABIANO HOLZ BESERRA, Órgão julgador: 1ª Turma, Data: 05/06/2021)[3].

Muito embora a posição externada no julgado acima não seja unânime em razão de que a prova produzida durante a instrução processual será decisiva para o deslinde da responsabilização ou não do arrendador, devendo apurar se aquele exerceu alguma atividade na terra, poder ou comando sobre os trabalhadores que ali se encontravam, é importante o balizamento trazido no acórdão de que a total transferência da gestão, lucros e riscos da atividade desenvolvida na propriedade rural ensejam o reconhecimento de vínculo diretamente com o arrendatário, isentando o arrendador de qualquer responsabilidade ante a relação de emprego postulada, já que esse último efetivamente não desenvolvia atividade agrária e, principalmente, não havia entre o reclamante e o arrendador subordinação jurídica, traço mais acentuado para a caracterização de vínculo empregatício.

No mesmo sentido, decidiu o TRT da 3ª Região em Recurso Ordinário de reclamante. Veja-se, com nossos grifos:

EMENTA: ARRENDAMENTO RURAL. TRABALHADOR A SERVIÇO DO ARRENDATÁRIO. RESPONSABILIDADE. As circunstâncias dos autos revelam que houve um autêntico contrato de arrendamento agrícola, através do qual houve total transferência da gestão, lucros e riscos da atividade desenvolvida na propriedade rural, havendo remuneração ao proprietário do imóvel apenas pelo uso e gozo da propriedade pelo arrendatário (art. 3o do Decreto n. 59.566/66). O reclamante estava laborando exclusiva e efetivamente para o arrendatário, quando da ocorrência do acidente de trabalho, não se podendo dizer que o arrendador estivesse se beneficiando do trabalho do autor. Com efeito, era o arrendatário quem dirigia a prestação de serviços, remunerando o reclamante e assumindo os riscos, bônus e ônus da atividade, portanto, era ele quem efetivamente figurava como empregador do autor (arts. 2o e 3o da CLT), atentando-se para o princípio da primazia da realidade sobre a forma, que orienta o Direito Trabalhista. Dessa maneira, este último deve responder exclusivamente pelas indenizações relativas ao acidente de trabalho sofrido. (Processo: 0000458-13.2013.5.03.0144 RO; Data de Publicação: 02/03/2016; Disponibilização: 01/03/2016, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 132; Órgão Julgador: Segunda Turma; Relator: Sebastiao Geraldo de Oliveira; Revisor: Jales Valadão Cardoso).

Tal entendimento também foi compartilhado pelo TRT da 24ª Região. Veja-se:

CONTRATO DE ARRENDAMENTO DE PROPRIEDADE RURAL. AFASTADA RESPONSABILIDADE DO ARRENDADOR. No caso dos autos não houve qualquer contrato de prestação de serviço entre as reclamadas, mas tão somente de arrendamento de propriedade rural, mediante pagamento de aluguel fixo mensal. Não havendo prova produzida que demonstre descaracterizado o contrato de arrendamento, não é possível imputar ao proprietário do imóvel arrendado qualquer responsabilidade pelo pagamento de verbas trabalhistas decorrente de contrato firmado entre o arrendatário e seus empregados. Recurso do reclamante não provido. (TRT da 24ª Região; Processo: 0026211-04.2016.5.24.0072; Data: 20-02-2020; Órgão Julgador: Gab. Des. Marcio Vasques Thibau de Almeida – 1ª Turma; Relator(a): MARCIO VASQUES THIBAU DE ALMEIDA). Grifei.

É de frisar também que o art. 32, IX, do Decreto em comento prevê a mais drástica medida em face do arrendatário, que é seu despejo, culminando com a perda da posse da terra.

Nessa toada, oportuno que o contrato de arrendamento seja explícito ao prever que o desrespeito aos ditames do direito laboral do arrendatário em face dos seus empregados, trabalhadores ou prepostos constituirá infração contratual grave e suficiente para a extinção do contrato, o despejo do arrendatário e a cobrança de perdas e danos em face do mesmo.

Toda essa cautela é recomendada para, senão evitar, ao menos mitigar eventual responsabilização do arrendador, ainda que em caráter subsidiário, em condenações pecuniárias (salários e seus consectários), indenizações de toda ordem, em inquéritos e ações civis públicas e até mesmo em apurações de ordem criminal, como na inclusão do imóvel rural em banco de dados públicos de propriedades que exploram trabalho escravo, que poderia culminar, em última ratio, na desapropriação do imóvel em face do arrendador.

Veja-se, então, quão importante é uma disposição contratual firme e calcada no exame criterioso do arcabouço jurídico à disposição do arrendador no momento da elaboração e celebração do contrato para a eliminação ou mitigação de riscos.

 

3.2 Repercussão no Contrato de Parceria:

 

O contrato de Parceria vem definido no art. 96, § 1º, do Estatuto da Terra:

Art. 96. Na parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, observar-se-ão os seguintes princípios:

(…)

§ 1ºParceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e/ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha, isolada ou cumulativamente, dos seguintes riscos: (…). Grifei.

Como se verifica do conceito legal, a parceria é o contrato agrário onde os riscos são partilhados entre os contratantes, sendo que o Estatuto de Terra ainda prevê que as regras do arrendamento e do contrato de sociedade serão aplicáveis (em caso de silêncio ou lacuna da lei de regência). É o que consta do art. 96, inciso VII, e art. 34 do Decreto regulamentador:

Estatuto da Terra: Art. 96 (…).

VII – aplicam-se à parceria agrícola, pecuária, agropecuária, agro-industrial ou extrativa as normas pertinentes ao arrendamento rural, no que couber, bem como as regras do contrato de sociedade, no que não estiver regulado pela presente Lei. Grifo nosso.

Decreto nº 59.566/1966: Art. 34. Aplicam-se à parceria, em qualquer de suas espécies previstas no art. 5º deste Regulamento, as normas da seção II, deste Capítulo, no que couber, bem como as regras do contrato de sociedade, no que não estiver regulado pelo Estatuto da Terra. Grifei.

Assim, por expressa disposição legal e infralegal, os parceiros acabam por partilhar também os riscos advindos de eventual descumprimento das normas trabalhistas (v. g. as de medicina e segurança do trabalho previstas na NR-31).

E a questão que exsurge naturalmente quando se está diante da partilha de riscos é: essa partilha se daria nos mesmos percentuais que os parceiros estabeleceram para o auferimento dos eventuais frutos da parceria, nos termos do art. 96, VI, do Estatuto da Terra e do art. 4º do Decreto nº 59.566/1966?

Cremos que a Lei nº 5.889/1973 nos traz a resposta nos art. 3º, § 2º, e art. 4º, conforme se colaciona:

Art. 3º – Considera-se empregador, rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados.

(…).

§ 2º Sempre que uma ou mais empresas, embora tendo cada uma delas personalidade jurídica própria, estiverem sob direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico ou financeiro rural, serão responsáveis solidariamente nas obrigações decorrentes da relação de emprego.

Art. 4º – Equipara-se ao empregador rural, a pessoa física ou jurídica que, habitualmente, em caráter profissional, e por conta de terceiros, execute serviços de natureza agrária, mediante utilização do trabalho de outrem.  (Grifos nossos)

Nesse caso, a leitura conjunta e interpretativa dos dispositivos legais supra permite concluir que ambos os parceiros virão a responder solidariamente pela inobservância às normas laborais, o que perfaz importante repercussão dessa espécie contratual, já que a solidariedade será tratada de forma integral e indivisível em eventual condenação.

Veja-se entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região analisando a responsabilidade dos parceiros (outorgante e outorgado) diante de reclamação trabalhista:

Como se vê, o reclamado Moises Saratt Mezzomo (filho do reclamado Moarei Moises Pedron Mezzomo) afirma que todos os produtos colhidos na lavoura eram levados para a empresa pertencente ao reclamado Celso Paulino Rigo, que definia o tipo de semente a ser cultivada, havendo inclusive representante seu que passava orientações relativamente aos cortes da lavoura e à localização do gado. Logo, fica evidente que o contrato de parceria rural firmado entre os reclamados (…) pressupõe a cessão de uma área para exploração, mediante o compartilhamento dos ônus e dos bônus do negócio. Sendo assim, na condição de parceiros rurais, os reclamados são responsáveis solidários pelos direitos reconhecidos ao autor na presente ação, na forma do § 2º do art. 3º da Lei nº 5.889/1973 (Lei do Traballho Rural), novamente transcrito a seguir, frisando-se o reclamante era empregado rural e a sua força de trabalho reverteu em benefício de ambos os reclamados. (Acórdão: 0020136-27.2019.5.04.0871 (ROT), Redator: CLEUSA REGINA HALFEN, Órgão julgador: 10ª Turma, Data: 28/05/2021).

Veja-se a declaração de solidariedade em contrato de parceria onde houve responsabilização de três reclamadas, conforme decidiu o TRT da 23ª Região:

TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL COLETIVO. QUANTUM. Na qualidade de parceiros rurais, os réus partilhavam do lucro da atividade exercida pelo primeiro e segundo réus em propriedade do terceiro réu, evidenciando a comunhão de interesses entre os mesmos, de modo que o terceiro réu obtinha proveito econômico da prestação de serviços dos trabalhadores encontrados em situação degradante, o que seguramente atrai sua responsabilidade solidária pelas obrigações de fazer e não fazer determinadas na sentença, bem como ao pagamento de indenização por danos morais coletivos e individuais, com fulcro nos artigos 34 do Decreto 59.566/66, 990 do CC e item 31.3.3.1 da NR-31 do MTE. Contudo, merece ser mantido o valor fixado em sentença a título de indenização por danos morais coletivos,  o qual atende o caráter punitivo e pedagógico, além de se mostrar mais razoável conforme as peculiaridades do caso. Recursos não providos. (TRT da 23.ª Região; Processo: 0000441-84.2016.5.23.0056; Data: 02-04-2019; Órgão Julgador: Gab. Des. João Carlos – 2ª Turma; Relator(a): JOAO CARLOS RIBEIRO DE SOUZA). Grifei.

Conforme se verifica, evidenciado o contrato de parceria, mormente pela partilha dos ônus e dos bônus da atividade, em clara analogia ao instituto jurídico da sociedade, haverá de ser declarada a responsabilidade solidária entre os parceiros, independentemente dos percentuais legais previstos no Estatuto da Terra e no Decreto.

 

3.3 A questão da “Falsa Parceria”

 

Numa conceituação livre, a “falsa parceria” ocorrerá toda vez que as partes ou pelo menos uma delas, à guisa de celebrarem (verbalmente ou por escrito) um contrato de parceria, estejam em verdade simulando uma relação empregatícia, onde após análise probatória em sede ação judicial ou inquérito civil, verifiquem-se preenchidos os requisitos dos arts. 2º e 3º da Lei nº 5.889/1973.

Veja-se que atento à tal hipótese, o Decreto nº 59.566/1966, no art. 84, já previa que:

Art 84. Os contratos que regulam o pagamento do trabalhador, parte em dinheiro e parte percentual na lavoura cultivada, ou gado tratado, são considerados simples locação de serviço, regulada pela legislação trabalhista, sempre que a direção dos trabalhos seja de inteira e exclusiva responsabilidade do proprietário, locatário do serviço a quem cabe todo o risco, assegurando-se ao locador, pelo menos a percepção do salário-mínimo no cômputo das duas parcelas (art. 96, parágrafo único do Estatuto da Terra). Grifei.

Note-se que tal dispositivo é escrito com acurácia e clareza pelo legislador da época, explicitando que quando a atividade agrícola ou pecuária ocorrer sob direção exclusiva do proprietário da terra, a quem caiba todo o risco, portanto ausente o elemento “partilha” de ônus e bônus da atividade, a relação não será de parceria, mas sim de locação de serviços, a qual já define o Decreto, será regulada pela legislação trabalhista.

Nesse passo, ainda que a remuneração seja feita parte em dinheiro, parte em “percentual na lavoura cultivada, ou gado tratado”, não se estará diante de contrato de parceria.

E, por consequência, esse “percentual na lavoura cultivada” ou do “gado tratado” serão considerados valores de salário para todos os fins, repercutindo em parcelas dessa natureza, como repouso semanal remunerado, horas extras, férias, aviso-prévio, depósitos de FGTS, contribuição ao INSS e outras.

Veja-se precedente do TRT da 4ª Região:

(…).

Pois bem.

A relação parceria agrícola é regida pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) e pelo Decreto nº 59.566/1966, sendo nula de pleno direito a pactuação que contrarie estas normas (art. 2º, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/1966). Registro, também, que a formalização do contrato de ID. 3feadbe não exclui, por si só, a configuração do vínculo de emprego, caso comprovada a existência dos elementos jurídicos descritos no art. 3º da CLT, à luz do Princípio da Primazia da Realidade e do art. 9º da CLT.

Nos termos do art. 4º do Decreto nº 59.566/1966:

(…).

Ademais, conforme determina o art. 12, VIII do supracitado decreto, o pacto de parceria agrícola deve especificar os critérios de partilha dos frutos e lucros.

Compulsando os autos, verifico que não há documentos que comprovem a execução do contrato de parceria agrícola, tais como recibos de pagamento das vendas de frutos das plantações. Ademais, embora o representante das reclamadas mencione “que o depoente entrava com a terra, aquisição de insumos e o autor cultivava verduras, milho, cana; que o autor revendia e dividiam o lucro;“, sequer soube informar, ainda que de forma exemplificativa, as quantias divididas entre os contratantes (ID. d6f5e4f – Pág. 2):

“que na época de parceria, não sabe quanto o autor tirava; não sabe estimar a média percebida por safra ou por períodos”

(…).

Diante dos fatos apurados nos autos, é evidente que o “contrato de parceria agrícola” foi utilizado como subterfúgio, com o claro objetivo de burlar a legislação trabalhista, sendo nulo de pleno direito, nos termos do art. 9º da CLT.

Quanto ao início do contrato de trabalho, negada a prestação de serviços pelas rés em período anterior a 05.07.2013, incumbia ao autor fazer prova neste sentido, ônus do qual não se desincumbiu (arts. 818, I, da CLT e 373, I, do CPC).

(…).

Dessa forma, reconheço a existência de vínculo de emprego no período de 05.07.2013 a 15.07.2017, sendo devidas todas as parcelas decorrentes do contrato de trabalho reconhecido em Juízo, razão pela qual mantenho a sentença, no aspecto.

(…). (Acórdão: 0022090-22.2017.5.04.0211 (ROT), Redator: ROGER BALLEJO VILLARINHO, Órgão julgador: 1ª Turma, Data: 19/11/2020). Grifei.

Em outro julgado do TRT4, entendeu-se diversamente, que não houve relação empregatícia entre o reclamante e o parceiro-outorgante, haja vista bem demonstrados os elementos caracterizadores do contrato de parceria. Veja-se:

Admitida a prestação de serviços, competia aos demandados a prova do fato impeditivo invocado, ou seja, a ocorrência de parceria rural, encargo do qual se desincumbiram a contento.

No presente caso, como corretamente fundamentado em sentença, o conjunto acaba indicando que, na realidade, a natureza da relação mantida entre as partes não era de emprego, mas pautada pelos termos da Lei nº 4.504/64, mais característica de uma parceria agrícola, sem pessoalidade e, sobretudo, subordinação jurídica (estado de sujeição em que se coloca o empregado em relação ao empregador, aguardando ou executando suas ordens).

A prova documental demonstra que as partes celebraram contrato de parceria agrícola. A rigor, importante registrar que o primeiro reclamado anexou notas fiscais de produtor rural, pela venda de produtos agrícolas a alguns estabelecimentos compradores, dentre eles, o segundo réu, bem como decorrentes da compra pelo primeiro réu de insumos necessários para a produção agrícola, aparentemente, realizada nas terras cultivadas pelo autor (ID dd711ed).

(…).

O conjunto da prova oral revela e comprova a existência de parceria rural entre o primeiro réu e o autor, mediante ajuste, ainda que tácito, de utilização da área, formalmente de propriedade do seu filho, mas cuja responsabilidade pelo cultivo era desse último, enquanto aquele ficava responsável pela comercialização da produção extraída da terra, nos moldes dos artigos 4º e 92 do Estatuto da Terra.

(…).

Incumbia ao reclamante o ônus de desconstituir tais contratos juntados, demonstrando o vínculo empregatício, o que não ocorreu, nos moldes do art. 818 da CLT e art. 373, I, do CPC.

Assim, concluo que havia prestação de serviços de forma autônoma, bem como nos moldes da parceria rural, sem a conotação, portanto, do vínculo de emprego postulado e definido, seja na CLT (arts. 2º e 3º), seja na Lei nº 5889/73, art. 2º.

Nego provimento ao recurso, restando prejudicada a análise dos demais pedidos, bem como dos demais tópicos recursais (responsabilidade da segunda ré e honorários advocatícios). (Acórdão: 0021118-18.2017.5.04.0384 (ROT), Redator: EMILIO PAPALEO ZIN, Órgão julgador: 7ª Turma, Data: 23/09/2019. Grifei.

Veja-se que os elementos principais a serem analisados para descaracterizar uma parceria agrícola serão a presença de subordinação jurídica entre um parceiro sobre o outro, havendo exercício do poder de comando e a direção dos trabalhos apenas por um deles sobre o outro ou sobre os demais trabalhadores.

Com isso, a assunção do risco da atividade se dará pelo “falso” parceiro-outorgante, ainda que o outorgado seja remunerado em frutos da atividade, como parte da produção agropecuária.

 

4. Conclusão

 

Os celebrantes dos contratos agrários típicos devem estar atentos ao negócio jurídico que estabelecerem com sua contraparte, já que o desenvolvimento contratual no dia a dia do imóvel agrário será o fator determinante para caracterizar a espécie contratual incidente sobre cada caso concreto, independentemente da nomenclatura adotada no pacto.

Também há que se ter em mente que tanto a Lei nº 4.504/1964, quanto a Lei nº 5.889/1973 são normas de direito público e, portanto, incidirão de forma cogente e independentemente da vontade dos contratantes: a realidade dos fatos importará muito mais e fará incidir a legislação, queiram ou não, os contratantes.

O que percebe, portanto, é que não há tensão ou antagonismo entre o Estatuto da Terra e a Lei nº 5.889/1973, pois ambas as legislações, além de buscarem exaurir conceitos, características e consequências de cada contrato, entram em arrimo ao reconhecerem que a realidade fática a ser comprovada, quando exigida, determinará a espécie de negócio jurídico, o que resta evidente no art. 84 do Decreto nº 59.566/1966.

Dessa forma, enquanto a legislação trabalhista não encontrará repercussão sobre o arrendador/arrendante no contrato de arrendamento, senão para justificar sua extinção e até mesmo o despejo do arrendatário, no contrato de parceria a responsabilidade dos parceiros outorgante e outorgados é característica da própria espécie e se dá na forma de responsabilidade solidária entre esses.

Ainda, na toada do que se verificou acerca da importância da realidade fática para a caracterização do negócio jurídico agrário, a simulação de vontade, ainda que decorra de conluio das partes, acarretará nulidade dos atos até então praticados diante do caráter público e indisponível das normas previstas no Estatuto da Terra e na Lei nº 5.889/1973.

Portanto, a elaboração de um contrato de arrendamento e parceria, muito mais do que repetir dispositivos legais, deverá ser adequada ao futuro desenvolvimento da relação jurídica entre as partes, devendo prever o quanto mais expressamente causas para extinção contratual, delimitação de responsabilidades, direito de regresso e outras garantias para a segurança jurídica do próprio negócio entabulado.

Notas:

[1] Sobre os ciclos do agrarismo, vide o artigo “Os ciclos do agrarismo e o Direito Agrário brasileiro”, de autoria de Albenir Querubini, publicado na obra coletiva Agronegócio: Direito e a interdisciplinaridade do setor, organizada por Pedro Puttini, publicada pela Editora Contemplar, 2018, pp. 31-33.  Igualmente, recomendamos: “Direito Agrário levado a sério” – Episódio 2: os ciclos do agrarismo no Brasil, disponível em: < https://direitoagrario.com/direito-agrario-levado-a-serio-episodio-2-os-ciclos-do-agrarismo-no-brasil/>.

[2] Art. 1º As relações de trabalho rural serão reguladas por esta Lei e, no que com ela não colidirem, pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 01/05/1943.

Parágrafo único. Observadas as peculiaridades do trabalho rural, a ele também se aplicam as leis nºs 605, de 05/01/1949, 4090, de 13/07/1962; 4725, de 13/07/1965, com as alterações da Lei nº 4903, de 16/12/1965 e os Decretos-Leis nºs 15, de 29/07/1966; 17, de 22/08/1966 e 368, de 19/12/1968.

Art. 2º Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário.

Art. 3º – Considera-se empregador, rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados.

§ 1º Inclui-se na atividade econômica referida no caput deste artigo, além da exploração industrial em estabelecimento agrário não compreendido na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1o de maio de 1943, a exploração do turismo rural ancilar à exploração agro econômica. (Redação dada pela Lei nº 13.171, de 2015).

§ 2º Sempre que uma ou mais empresas, embora tendo cada uma delas personalidade jurídica própria, estiverem sob direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico ou financeiro rural, serão responsáveis solidariamente nas obrigações decorrentes da relação de emprego.

[3] Segundo informações do site do TRT4, foi interposto Recurso de Revista após serem desacolhidos embargos declaratórios pelo reclamante.

Paulo Bonorino – Advogado, Especialista em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio, Membro da União Brasileira de Agraristas – UBAU.

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