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Colheita de arroz - foto: Albenir Querubini

DECRETO Nº 11.995/2024: MAIS UM PASSO NA DIREÇÃO DA INSEGURANÇA JURÍDICA E DA RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

por Nestor Hein e Frederico Buss.

 

Na data de 16.04.2024 foi publicado o Decreto nº 11.995, de 15.04.2024, que institui o Programa Terra da Gente, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, e dispõe sobre a incorporação de imóveis rurais no âmbito da Política Nacional de Reforma Agrária.

Segundo o decreto, este programa visa a aquisição e a disponibilização de terras para a reforma agrária, incluindo os beneficiários da política pública de regularização fundiária de territórios quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais.

Dentre as modalidades de obtenção de imóveis rurais previstas no decreto, destacamos a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária; a desapropriação por interesse social para promover a distribuição da terra; a expropriação de imóveis rurais com exploração de trabalho em condições análogas à escravidão, a ser regulamentada pelo Incra; a arrematação judicial de imóveis rurais penhorados em execuções; a aquisição mediante autorização judicial de imóveis rurais penhorados em execuções em trâmite na Justiça do Trabalho; a adjudicação de imóveis rurais em execuções relativas a débitos federais tributários ou não tributários.

Nos termos do decreto, a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária será realizada, nos termos da lei vigente, quando verificado o descumprimento da função social da propriedade, conforme normas editadas pelo Incra, e por interesse social para promover a distribuição da terra mediante depósito em dinheiro do valor do imóvel no ajuizamento da ação.

Preliminarmente, importante ressalvar que, por força do texto constitucional (artigo 5º, XXIV; artigo 22, II), os procedimentos para desapropriação, seja por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, devem ser regulados por lei, e não através de decreto. Outro ponto que merece atenção é que a Lei Federal nº 4.132/62, que define os casos de desapropriação por interesse social, salvo melhor juízo, não prevê a modalidade de desapropriação prevista no decreto para promover a distribuição da terra.

O decreto dispõe que nas hipóteses de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, o cumprimento integral da função social será verificado de forma simultânea à aferição de produtividade do imóvel rural. Neste tópico, considerando recente decisão do STF sobre o tema, e também o artigo 185, II, da CF, com previsão expressa de que a propriedade produtiva não pode ser objeto de desapropriação, não sendo viável perquirir, para esse fim, acerca do cumprimento de sua função social, caberá à lei, e não a mero decreto, garantir tratamento especial à propriedade produtiva e fixar normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social (artigo 185, parágrafo único, da CF).

O artigo 185, II, da CF, é categórico no sentido de que a propriedade produtiva, assim como a pequena e a média propriedade, é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária. Logicamente, a propriedade produtiva deve também cumprir a função social (art. 5º, XXIII, da CF), todavia ainda não há a lei regulamentadora, exigida no parágrafo único do artigo 185 da CF, que garante tratamento especial à propriedade produtiva e fixa as normas para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social.

A Lei 8.629/93[1], que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, contém apenas diretrizes genéricas sobre o cumprimento da função social. Logo, a propriedade produtiva não pode ser objeto de desapropriação por descumprimento da função social (art. 185, II, da CF) enquanto não existente a legislação prevista no parágrafo único do artigo 185 da CF.

Consoante o arcabouço constitucional e legal vigente, o descumprimento de normas ambientais e trabalhistas, por exemplo, pode submeter o proprietário infrator à responsabilização administrativa, criminal ou civil junto aos órgãos competentes e perante o Poder Judiciário, mas jamais conduzir a uma desapropriação sanção. No mesmo passo, diferentemente do previsto no decreto, em hipótese alguma compete ao Incra regulamentar procedimentos administrativos para a expropriação de imóveis rurais por exploração de trabalho em condições análogas à escravidão.

Mais dois pontos chamam a atenção para a sanha arrecadadora de terras motivadora do decreto: ao estabelecer que a União e o Incra poderão arrematar judicialmente imóveis rurais penhorados em processos de execução, independentemente da aferição do cumprimento da função social, prevê a possibilidade da solicitação de informações ao Poder Judiciário, aos leiloeiros públicos ou a outros órgãos federais ou estaduais sobre imóveis rurais ofertados em leilão. Neste caso, o pagamento do valor após a arrematação será efetuado em moeda corrente ou em TDA, observada a legislação aplicável e de acordo com a determinação judicial.

Ademais, outra modalidade prevista no decreto é a adjudicação de imóveis rurais em execuções relativas a débitos federais tributários ou não tributários, tais como, por exemplo, dívidas de ITR e multas por infrações ambientais. A adjudicação independe da aferição do cumprimento da função social e, para a operacionalização desta modalidade, a União e o Incra poderão solicitar informações ao Poder Judiciário, aos leiloeiros públicos ou a outros órgãos públicos sobre imóveis rurais penhorados em execuções fiscais relativas a débitos federais tributários ou não tributários. Esta modalidade certamente conta com o amparo do recente parecer da Advocacia Geral da União que, modificando entendimento anterior, opinou pela desnecessidade de recursos orçamentários, empenho e transferência financeira entre o Incra e a entidade credora para a adjudicação de imóveis rurais em execuções promovidas pela União, suas autarquias e fundações públicas.

Enfim, o decreto, em diversos pontos, acentua a insegurança jurídica e a relativização do direito de propriedade, afrontando direitos e garantias fundamentais asseguradas em cláusulas pétreas da Constituição Federal. Na nossa ótica, cabe ao Poder Legislativo, no uso de suas exclusivas atribuições e competências, regulamentar e pacificar estas questões em consonância com o texto constitucional.

Nota:

[1] Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei.
§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.
§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.
§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.
§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.

Nestor Hein
Advogado com atuação especializada no Agronegócio. Sócio do Escritório HBS Advogados. Diretor do Departamento Jurídico da Federação
da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul – Farsul.
Frederico Buss
Advogado com atuação especializada no Agronegócio. Sócio do Escritório HBS Advogados. Consultor Jurídico da Federação
da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul – Farsul.

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