sexta-feira , 19 abril 2024
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Direito Agrário - Foto: Caroline Mattioni

Os efeitos da interdição nos contratos agrários

por João Fernando Perusatto.

 

Qual seria o principal objetivo da interdição? Proteger a pessoa a ser interditada, preservando sua saúde, patrimônio e direitos perante terceiros de má-fé que busquem realizar negócio jurídico conveniente, aproveitando a falta de lucidez e, portanto, a incapacidade do outro. Além disso, a interdição possibilita a segurança jurídica dos negócios em geral, pois o interditado pode realizar negócios jurídicos desde que devidamente representado por seu curador.

A interdição pode ocorrer em razões de condições temporárias ou permanentes, que levem à incapacidade parcial ou total do interditando para os atos da vida civil e que, após sentença, deverá ser registrada no Registro Civil de Pessoas Naturais.

Cabe destacar que a jurisprudência[1] e a doutrina[2] predominante consideram a sentença de interdição de natureza constitutiva, sendo a formalização da realidade de fato, constituindo no momento da sentença uma nova realidade jurídica, em que o interditado fica sujeito à curatela a partir do trânsito em julgado da sentença, a qual possui efeito ex nunc.

Portanto, em regra geral, os efeitos da sentença de interdição não retroagem, desta forma, os atos praticados pelo incapaz antes da sentença constitutiva de interdição não se anulam automaticamente, isso ocorre em respeito ao ato jurídico perfeito, a segurança e estabilidade das relações jurídicas contratuais, preservando também os direitos de terceiros de boa-fé.

Mas e o que fazer com contratos pré-existentes, nos quais existem fortes indícios de má-fé de terceiros perante a pessoa que, na época da realização do negócio jurídico, ainda não havia sido interditada? Existe alguma forma de anular o negócio jurídico feito pelo interditado anteriormente a sua interdição?

Desfazer um ato realizado anteriormente a interdição exige a confirmação evidente da incapacidade ao tempo do negócio que se quer anular. Além disso, o Código Civil nos Artigos 178 e 179 apresenta prazo decadencial para buscar a anulabilidade do ato anterior à sentença de interdição, sendo que, a inobservância do prazo convalidará o negócio jurídico realizado, tornando-o imutável.

Considerando a hipotética situação de uma sentença de interdição que reconheceu que o interditado possui a enfermidade de Alzheimer e com isso foi nomeado um curador definitivo, para que lhe proporcione um digno cuidado com a saúde, patrimônio, negócios e demais direitos. Então, desta forma, desde a sentença o interditado passa a ser considerado absolutamente incapaz para os posteriores atos da vida civil, sendo que qualquer negócio jurídico a ser realizado em seu nome deverá ocorrer com a representação pelo curador, o qual poderá ter que prestar contas ao juízo sobre determinadas ações.

Agora imagine-se que esse interditado é dono de propriedades rurais e confeccionou contrato de arrendamento de suas áreas para outrem, com preço abaixo do mercado convencional regional, por um longo período de arrendamento, e, por fim, não recebeu o pagamento do arrendamento. Além disso, no momento da assinatura do contrato já sofria com severos impactos provocados pela doença de Alzheimer. Será possível anular esse contrato de arrendamento rural realizado antes da sentença de interdição? A resposta é positiva.

Elementar que o negócio jurídico que se quer anular não pode ter sido ratificado pelo curador. Além disso, é necessário a comprovação da ocorrência de prejuízo ao incapaz, pois inexistindo prova do prejuízo, o negócio jurídico não será anulado, conforme o princípio Pas de Nullité Sans Grief.

O Superior Tribunal de Justiça[3] já consagrou que, além do prazo decadencial, a ação de anulabilidade de negócio jurídico celebrado anteriormente à sentença de interdição deverá ser instruída com provas que demonstrem que no dia da celebração do contrato de arrendamento que se quer anular, o interditado já era incapaz para entender o caráter do ato jurídico que estava praticando. Ou seja, embora realizado anteriormente a sentença de interdição, é possível anular o contrato de arrendamento quando comprovado a existência da enfermidade, e consequentemente, a incapacidade fática no momento da assinatura do contrato rural.

É essencial comprovar a existência de prova inequívoca de que o interditado era incapaz ao tempo da realização do negócio que se quer anular. Em um caso como a ocorrência da Doença de Alzheimer, o histórico do acompanhamento médico, embasado com laudos, demonstrando a evolução da doença neurológica degenerativa que se manifesta de forma gradual, levando ao prejuízo cognitivo com o passar dos dias, meses e anos, é um fator determinante para levar a anulabilidade do ato pretérito, isso tudo, se confirmado que no momento da assinatura do contrato de arrendamento a enfermidade já havia ocasionado a incapacidade fática.

O direito contratual brasileiro apresenta preceitos essenciais e norteadores, como os princípios contratuais da estabilidade e da força obrigatória dos contratos, respeitando também o ato jurídico perfeito e consequentemente a segurança jurídica dos negócios jurídicos. Não menos importante, cabe destacar a existência do direito de terceiros de boa-fé. Porém a flexibilização de tais normas pode ocorrer quando o negócio jurídico for realizado por incapaz, comprovando o prejuízo ocasionado pelo negócio jurídico, seja após a sentença de interdição ou anterior a ela, desde que devidamente comprovada a incapacidade já existente no momento da realização do contrato agrário.

Portanto, um contrato agrário praticado pelo interditado, após a sentença de interdição, se não for realizado com a representação do curador, é nulo por força de lei. Contudo, os contratos agrários praticados pelo interditado anteriores à sentença da interdição, são anuláveis e dependem de prova concreta de sua invalidação e consequente anulabilidade.

Notas:

[1] AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. PROCESSO CIVIL. NULIDADE DA CITAÇÃO. REJEITADA. INCAPACIDADE. SENTENÇA DE INTERDIÇÃO. NATUREZA CONSTITUTIVA. PREJUÍZO. AUSÊNCIA. CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. REEXAME. SÚMULA Nº 7/STJ. (…) O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que (i) a sentença de interdição produz efeitos ex nunc, salvo expresso pronunciamento judicial em sentido contrário, e (ii) a ausência de intervenção do Ministério Público nos processos que envolvam interesse de incapaz não implica automaticamente a nulidade do julgado, sendo imprescindível a demonstração de prejuízo. Precedentes. 3. Rever as conclusões das instâncias ordinárias acerca da não demonstração de prejuízo concreto à defesa do incapaz demandaria o reexame de matéria fática e das demais provas dos autos, o que é absolutamente inviável nesta via recursal, consoante o óbice da Súmula nº 7/STJ. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no REsp n. 1.705.385/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/10/2019, DJe de 17/10/2019.)

[2] “O elemento declarativo é alto, porém não preponderante. O estado da pessoa é declarado e o que se constitui é a incapacitação”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalvanti. Comentários ao Código de processo Civil, TOMO XVI. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. “Indubitavelmente, a sentença é constitutiva, pois diz com o estado da pessoa. Ainda que a incapacidade preceda à sentença, só depois da manifestação judicial é que passa a produzir efeitos jurídicos, torna a pessoa incapacitada para os atos da vida civil”. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 32.

[3] RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. CITAÇÃO EM NOME DE INCAPAZ. INCAPACIDADE DECLARADA POSTERIORMENTE. NULIDADE NÃO RECONHECIDA. INTERVENÇÃO DO MP. NULIDADE. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. LEI N. 13.146/2015. DISSOCIAÇÃO ENTRE TRANSTORNO MENTAL E INCAPACIDADE. 1. A sentença de interdição tem natureza constitutiva, caracterizada pelo fato de que ela não cria a incapacidade, mas sim, situação jurídica nova para o incapaz, diferente daquela em que, até então, se encontrava. 2. Segundo o entendimento desta Corte Superior, a sentença de interdição, salvo pronunciamento judicial expresso em sentido contrário, opera efeitos ex nunc. Precedentes. 3. Quando já existente a incapacidade, os atos praticados anteriormente à sentença constitutiva de interdição até poderão ser reconhecidos nulos, porém não como efeito automático da sentença, devendo, para tanto, ser proposta ação específica de anulação do ato jurídico, com demonstração de que a incapacidade já existia ao tempo de sua realização do ato a ser anulado. 4. A intervenção do Ministério Público, nos processos que envolvam interesse de incapaz, se motiva e, ao mesmo tempo, se justifica na possibilidade de desequilíbrio da relação jurídica e no eventual comprometimento do contraditório em função da existência da parte vulnerável. 5. A ausência da intimação do Ministério Público, quando necessária sua intervenção, por si só, não enseja a decretação de nulidade do julgado, sendo necessária a demonstração do efetivo prejuízo para as partes ou para a apuração da verdade substancial da controvérsia jurídica, à luz do princípio pas de nullité sans grief. (…) Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.694.984/MS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/11/2017, DJe de 1/2/2018).

João Fernando Perusatto – Advogado com atuação especializada em demandas do agronegócio (www.wba.adv.br). Especialista em Direito Agrário.  Foi aluno do Curso de Formação em Direito Agrário aplicado ao Agronegócio da Liga Universitária de Agraristas – LUA.

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