sexta-feira , 26 abril 2024
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Direito Agrário - Foto: Gustavo Chavaglia (áera de cana em Ituverava - @Gf_agro)

Originação de Cana: Formação e Gestão dos Contratos

por José Roberto Reis da Silva.

 

O presente artigo abordará o processo de aquisição de matéria prima por Usinas Sucroalcooleiras. Será adotada uma abordagem jurídica simples e prática do tema, sem a expectativa de esgotar o assunto, que é complexo e envolve diversas outras ciências, dentre elas o planejamento agroindustrial, contabilidade e a formação de relacionamentos sustentáveis.

Originação de cana é o nome dado ao processo de prospecção, produção e obtenção da matéria prima que será industrializada por uma Usina, com vistas à produção de açúcar, etanol e energia, além de subprodutos como bagaço, torta de filtro, óleos, fuligens industriais etc.

Via de regra, a obtenção da cana é materializada em contratos de parceria agrícola, de fornecimento e mais recentemente nos modelos de negócio chamados de tripartite. Também existe o contrato de arrendamento rural, que atualmente é pouco usado por questões fisco-tributárias e a existência de alguns modelos mais sofisticados.

 

1 Parceria agrícola 

Este modelo de contrato ainda é o majoritário e preferido por algumas Usinas, pois a gestão do canavial pertence exclusivamente à empresa, o que normalmente garante menor custo da cana – questão chave na sobrevivência da Usina – e maior segurança ao negócio em razão de a vigência contratual ser mais dilatada. No dia-a-dia as Usinas chamam esta cana de ‘cana própria’.

Via de regra o contrato é celebrado por 6 anos. No primeiro ano a lavoura será formada (plantio) e a passa a ser colhida a partir do segundo ano.

parceria agrícola está prevista no Estatuto da Terra e, em síntese, o proprietário (‘parceiro outorgante’) cede a posse da fazenda à Usina (‘parceira outorgada’), para que ela faça a formação do canavial e a colheita, dividindo-se os frutos ao final, que normalmente é 80% para a Usina e 20% ao proprietário.

Desde a contratação fica estabelecido, também, que a Usina comprará os 20% do parceiro, cujo preço será definido pelo sistema Consecana/SP, com realização de adiantamentos de preço ao parceiro outorgante-vendedor ao longo do contrato, conforme a quantidade de toneladas estimada para cada alqueire cultivado.

E aqui residem pontos importantes:

  • Toneladas/Alqueires/ano ou toneladas/alqueires/safra ?: a quantidade de toneladas e ser paga/adiantada será apurada por ano civil de vigência contratual ou por ano-safra, assim entendido como sendo o ano em que ocorre colheita? O contrato deve ser preciso e induvidoso neste ponto, pois a diferença financeira será de 20%. Por exemplo, 50 toneladas por alqueire/ano será 20% mais caro do que 50 toneladas por alqueire/safra
  • Ajuste ao final do ciclo: o contrato precisa dizer claramente se ao final do ciclo haverá ajuste de pagamentos entre a produção real e os valores adiantados, pois se o recebimento dos adiantamentos for garantido, independente da produção, o fisco poderá entender que há, em essência, contrato de arrendamento,gerando autuações e riscos tributários; e
  • Custo (fora da caixa): em Usinas, o custo é medido de forma unitária, ou seja, R$/tonelada de cana produzida. Se o valor do ‘adiantamento’ pago ao proprietário é fixo em “toneladas por alqueire”, quanto maior a produtividade menor será o custo. E, atualmente, produtividade é medida pelo TAH – toneladas de açúcar por hectare, em substituição ao tradicional TCH – toneladas de cana por hectares. O teor de ATR na cana faz toda a diferença, ainda que a massa ainda tenha a sua importância.

objeto do contrato também deve ser muito bem determinado pelas partes. É muito comum que os contratos estabeleçam que o objeto do contrato é a exploração agrícola da área agricultável, ou seja, apenas o canavial.

Assim, a posse das demais áreas da Fazenda permanecem com o proprietário, cabendo a ele a preservação ambiental, a proteção contra eventuais invasões etc.

O período de vigência do contrato também merece atenção especial.

Corriqueiramente o contrato garante à Usina a possibilidade de cortes adicionais ao final do ciclo, caso a soqueira ainda seja economicamente viável. Ocorre que esta análise de viabilidade de soqueira será feita após a última colheita, ou seja, poucas semanas antes do término do contrato inicialmente convencionado.

Entretanto, é bastante comum os contratos de parceria agrícola preverem que a eles aplica-se o artigo 95 do Estatuto da Terra, que regula a renovação automática do contrato, se o proprietário não notificar a Usina com 180 dias de antecedência.

Imaginemos um contrato que vencerá em 30/11/2018, podendo a Usina, se assim quiser, realizar até 02 (dois) cortes adicionais. Enquanto o parceiro outorgante terá até 30/05/2018 para Notificar a Usina de eventuais propostas de terceiro ou retomada para uso próprio, a Usina terá até o final da safra para dizer se exercerá o corte adicional ou não, podendo surgir dúvidas e conflitos entre as partes.

Em que pese a divergência jurisprudencial sobre aplicação do artigo aos contratos de parceria, é recomendável que o contrato previna este conflito e estabeleça, claramente, o cronograma de comunicação entre as partes.

A propósito da comunicação entre as partes, é bastante útil a cláusula que reconhece como válida e eficaz a comunicação feita por e-mail. Por exemplo, após o plantio o proprietário poderá ser informado eletronicamente sobre a área agricultável definitiva.

forma de devolução da área ao proprietário também exige atenção dos contratantes. Ela será devolvida com a soqueira já erradicada ou na condição em que estiver? É prudente que o contrato preveja a forma de devolução ou qual das partes poderá impor sua vontade ao término da vigência contratual.

Se esta decisão for tomada apenas no momento da devolução, o contrato precisa prever qual das partes terá esta prerrogativa.

1.1 A falsa parceria

Vale lembrar os riscos da chamada “falsa parceria”.

Se o contrato prever, por exemplo, o pagamento ao parceiro outorgante independente da produção ou, ainda, que os adiantamentos realizados não serão objeto de ajuste à efetiva produção ao término da safra, a natureza jurídica poderá ser desconstituída e o contrato ser tratado como arrendamento rural, com as seguintes consequências:

a) Cobrança da diferença de imposto de renda do proprietário pessoa física, pois sua receita perderá o tratamento de receita agrícola;

b) Incidência de algumas regras do arrendamento inaplicáveis à parceria agrícola, tal como indenização por benfeitorias, preferência na aquisição em caso de alienação do imóvel; e,

c) Atentado à soberania nacional, nos casos em que a Usina seja empresa cujo controle seja estrangeiro e não tenha havido autorização do INCRA.

2 Fornecimento de Cana

Embora a estrutura jurídica do fornecimento derive do tradicional contrato de compra e venda, eles têm amplitude maior, pois a obrigação do fornecedor (produtor rural) não limita-se à entrega da coisa, mas também em fazê-la de forma que não prejudique a atividade do adquirente (Usina).

Diferencia-se da simples compra de cana em razão do período de vigência mais dilatado, que é normalmente por 5 anos (1 ciclo canavieiro) e de algumas obrigações acessórias relacionadas a manutenção da qualidade do canavial, à cadência de entrega e, em contrato mais sofisticados, à variedade a ser plantada, à não interferência no sequenciamento de colheita pré-ajustado e à manutenção das condições de colheitabilidade.

Corriqueiramente as partes adotam as regras do Regulamento Consecana, que devem ser de total domínio dos profissionais da área de originação (compradores e advogados).

Importante estabelecer uma importante premissa do negócio, que será mencionada nas linhas seguintes: o mais importante para a Usina é o teor de ATR da cana comprada, pois todo o restante é considerado “impureza mineral ou vegetal”.

Pois bem.

Em princípio, a posse do imóvel não é objeto do contrato, que permanece integralmente com o produtor rural. Mas se aquele determinado imóvel servir de passagem da Usina para acesso a outras propriedades ou for ser usado como depósito de foligens e resíduos industriais, é salutar que o contrato preveja isso expressamente.

O primeiro aspecto importante do fornecimento é o seu OBJETO que, em simples palavras, consiste na compra e venda de um volume de cana determinado, quando as partes definem objetivamente a quantidade (p.ex. 10 mil toneladas) ou determinável, quando fica estabelecido apenas, por exemplo, a totalidade da produção da Fazenda XXXX.

O PREÇO é o outro aspecto fundamental do negócio, existindo no mercado algumas formas tradicionais de fixação:

a) ATR Relativo: é o método previsto no regulamento Consecana e considera, em síntese, o teor de ATR da cana do fornecedor em comparação às demais canas adquiridas pela Usina naquela mesma quinzena;

b) ATR Real: neste modelo a Usina paga ao fornecedor o valor correspondente ao teor de ATR apurada na cana dele;

c) Quantidade fixa de ATR: as partes estabelecem, previamente, qual é a quantidade de ATR por tonelada que será paga, independente do teor existente na cana;

d) Valor nominal fixo: é o método mais simples e também o menos usado.

Com exceção do item “d”, as demais formas dependem do preço do ATR divulgado pelo Consecana. Esta divulgação ocorre mensalmente, a partir de uma complexa metodologia baseada nos preços de mercado do açúcar e etanol, sendo consolidado no mês de março de cada ano, fechando-se aquele determinado ano-safra.

Quanto a época do pagamento, é comum estabelecer que parte do pagamento (%) ocorrerá no mês subsequente ao da entrega da cana, conforme preço do ATR acumulado até aquele mês, e o restante será pago entre janeiro e abril do ano seguinte, conforme as divulgações de preço forem ocorrendo, até que seja consolidado em março.

A partir destas abordagens sobre os principais itens do contrato, quais sejam a coisa e o preço, passaremos a tratar dos 03 (três) principais modelos de contratos de fornecimento, surgidos a partir do modo de entrega da cana à Usina e da parte responsável pela realização da colheita, do transbordamento e do transporte da cana (‘CTT’), cada qual com a sua especificidade.

E são eles: i) cana em pé; ii) cana embarcada; e iii) cana na esteira.

i) Cana em pé

Neste contrato o fornecedor é o responsável pelo preparo, plantio e os tratos no canavial, ficando a Usina responsável por todo o CTT.

Via de regra, a época de colheita é definida pela Usina a partir da variedade de cana plantada, aliada ao planejamento feito com ajuda de software, tal como o ICOL.

A propósito da época de colheita, recomenda-se que o contrato preveja se haverá uso de maturador na cana ou não, notadamente se a cana for colhida no início da Safra.

É que o maturador estabiliza o crescimento da cana com o concomitante aumento do teor de ATR. Embora a perda de crescimento seja compensada com a menor quebra de produção entre os anos do ciclo, uma ou outra parte pode sentir-se prejudicada com este efeito agronômico do produto, dependendo da forma de fixação de preço adotada em contrato.

Ainda quanto ao preço, é comum que as partes elejam uma das modalidades tratadas em linhas pretéritas, aliadas a uma redução no preço apurado em dos custos da Usina com a realização do CTT.

Este decréscimo pode ser fixado em percentual (%), em quilos de ATR ou em valor fixa em reais, mas precisa, acima de tudo, ser claro que refere-se aos custos da Usina com o CTT, sob pena de caracteriza prestação de serviços da Usina ao prestador e gerar autuações tributárias.

ii) Cana embarcada

Enquanto no contrato ‘cana em pé’ a Usina faz todas as atividades do CTT, neste modelo o fornecedor faz a colheita e o transbordamento (CT), cabendo à Usina apenas o transporte da cana (T) do campo para o parque industrial.

Muitos aspectos sofrem alteração entre um e outro modelo, a começar pela definição da época de colheita e entrega, que geralmente é feita em comum acordo das partes, conforme cronograma agroindustrial da Usina.

Importante estabelecer em contrato, também, a cadência de colheita e entrega, que normalmente será ditada pelo limite operacional da estrutura do fornecedor, aliada ao cronograma produtivo da Usina.

Mas este contrato precisa ter uma cláusula vital: regras sobre as impurezas vegetais e minerais, o que normalmente é esquecido pelas partes e pode gerar conflitos ao longo da sua execução.

É que, como o CT será realizado pelo fornecedor, eventual deficiência técnico-operacional contaminar a cana com palha, capim e mato (impureza vegetal) e/ou terra e pedra (impureza mineral), causando graves problemas ao processo industrial (buchas, p.ex.), além de desperdício de recursos logísticos no transporte da cana.

E se o preço for apurado em quantidade fixa de ATR, o prejuízo da Usina pode ser ainda maior, pois pagará pelos quilos de impurezas recebidos.

iii) Cana na esteira

Neste modelo o fornecedor realizada todas as atividades agrícolas da cadeia, desde o preparo e plantio até o transporte da cana até o parque industrial.

Reitera-se nesta modalidade as observações do item anterior sobre a definição  da época de colheita, sobre a cadência de colheita e entrega e também sobre as previsões de impurezas minerais e vegetais.

Neste modelo de contrato é importante analisar previamente se a frota do fornecedor, notadamente as carretas, é compatível com a estrutura de recepção de cana da indústria.

Ademais, nos modelos cana embarcada e cana em pé o preço pode ser formado de forma conjugada. Por exemplo, para cada tonelada de cana entregue serão pagos 98 kg/ATR, acrescido de R$ 24,00.

3 Contratos Tripartite

Os contratos tripartites consistem num modelo de negócio que reúne os dois tipos anteriores. Nele, a Usina prospecta a propriedade rural e repassa ao produtor-fornecedor para que ele implante o canavial, trate e cultive a cana, vendendo-a exclusivamente à Usina.

Com a prospecção da fazenda pela Usina surge uma parceria agrícola entre ela e o proprietário da terra. Além dos cuidados comuns a qualquer contrato de parceria agrícola, é importante que o instrumento contratual preveja a anuência prévia do proprietário à cessão do imóvel a terceiros, pois sabe-se, de antemão, que a cana será produzida por outrem.

Neste contrato a Usina (parceira outorgada) fica responsável pelos adiantamentos ao proprietário parceiro-outorgante previstos em contrato.

O repasse da área ao produtor-fornecedor ocorre, via de regra, por instrumento de arrendamento, pois na opinião do autor os contratos de parceria agrícola são incompatíveis com as contratações derivadas ou secundárias, inexistindo, por exemplo, contratos de sub parceria.

Algumas Usinas fazem o repasse da área via instrumento de cessão de contrato, em que a posição de parceira outorgada naquele contrato é cedida ao produtor-fornecedor. Este modelo jurídico de repasse é plenamente possível e proporciona alguns benefícios, a começar pela inexistência de receita com arrendamento a ser tributada.

Contudo, há uma questão de compliance financeiro a ser resolvida, pois não sendo mais parte no contrato, uma vez que a sua posição é cedida, faltará lastro contratual para realizar os adiantamentos ao proprietário parceiro outorgante. Seria possível, por exemplo, fazer a cessão parcial do contrato, inserindo uma cláusula sobre a obrigação dos adiantamentos permanecerem com a Usina cedente.

E, por fim, haverá um contrato de fornecimento de cana entre a Usina e o produtor-fornecedor cessionário da parceria agrícola, observando-se, ainda, as questões típicas do fornecimento tratados no capítulo próprio.

Além disso, este contrato é marcado por grande ingerência da Usina adquirente, sendo ela que, muitas vezes, definirá a variedade a ser plantada, época e tipo de colheita, sistematização da propriedade etc.

Uma das cláusulas contratuais mais relevantes deste modelo de fornecimento é a previsão de venda exclusivamente àquela Usina cedente-adquirente. O descumprimento deste dever gera a rescisão não apenas do contrato de fornecimento, mas também do repasse da fazenda ao produtor-fornecedor, com imediato retorno da fazenda à posse da empresa.

Este modelo de negócio vem ganhando espaço no setor sucroenergético, notadamente no triângulo mineiro, oeste paulista e o estado do Mato Grosso do Sul, em que as Usina viram nele uma saída para reduzir investimentos em ativos agrícolas, como a compra de colhedoras, transbordos, tratores e mão de obra.

Encerramos o singelo artigo lembrando a importância do setor sucroenergético para o Brasil, sendo importante gerador de empregos, recolhimento de impostos e posicionamento estratégico do país no mercado mundial de açúcar.

José Roberto Reis da Silva – Advogado com atuação no agronegócio (OAB/SP 218.902), Coordenador da Comissão de Gestão de Departamentos Jurídicos e Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP (Ribeirão Preto). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (UNIDERP), em Gestão Empresarial (FGV), em Direito Processual Civil (ESD) e Compliance (INSPER). Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil. Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.

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