quinta-feira , 25 abril 2024
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Colheita de arroz - foto: Albenir Querubini

Direito de preferência nos contratos agrários

por Wellington Pacheco Barros.

 

Sumário: 

I – Do conceito de direito de preferência nos contratos agrários; II – Do direito de preferência na renovação dos contratos agrários; III – Do direito de preferência na alienação do imóvel objeto do contrato agrário.

 

I – Do conceito de direito de preferência nos contratos agrários

 Existem institutos de direito agrários que são relevante, mas passam desapercebidos na vida cotidiana por desinteresse ou por omissão deliberada em não os respeitar. E um desse temas é o direito de preferência.

 Direito de preferência é aquele que garante a alguém a preferência no exercício de um direito frente aos demais. Nos contratos agrários essa preferência pode ocorrer de duas formas: na cedência do imóvel para arrendamento ou parceria rural e na sua alienação.

Os dispositivos que regem esses dois direitos estão assim postos:

 

Art. 95. Quanto ao arrendamento rural, observar-se-ão os seguintes princípios:

IV – em igualdade de condições com estranhos, o arrendatário terá preferência à renovação do arrendamento, devendo o proprietário, até 6 (seis) meses antes do vencimento do contrato, fazer-lhe a competente notificação extrajudicial das propostas existentes. Não se verificando a notificação extrajudicial, o contrato considera-se automaticamente renovado, desde que o arrendador, nos 30 (trinta) dias seguintes, não manifeste sua desistência ou formule nova proposta, tudo mediante simples registro de suas declarações no competente Registro de Títulos e Documentos; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).

Art. 92, § 5º:

§ 5º – A alienação ou a imposição de ônus real ao imóvel não interrompe a vigência dos contratos de arrendamento ou de parceria ficando o adquirente sub-rogado nos direitos e obrigações do alienante.

 

É sempre necessário rememorar que a estrutura dos contratos agrários, e nisso se encontra o direito de preferência, é própria, no sentido de que todo o seu conteúdo é pautado por regras expressadas pelo legislador com visão tópica da realidade agrária e que por isso mesmo exige que tenha aplicação obrigatória, sob pena de nulidade absoluta do que for feito ao seu alvedrio.[1]

Diante dessa tipicidade que torna o direito agrário um ramo autônomo do direito brasileiro, é preciso se ter presente que qualquer regra contratual agrária não pode ser interpretada da mesma forma que os contratos regidos pelo Código Civil. Embora não se negue que a estrutura básica e genérica de qualquer contrato encontra montagem nos fundamentos da legislação civil, como, por exemplo, a existência de agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não proibida em lei (art. 104 do CC), a estrutura sistemática dos contratos que este regramento estabelece está calcada na plena autonomia de vontade ou liberdade contratual. Isso significa que as partes são livres contratualmente e o que firmarem terá a força de lei entre elas.

Já nos contratos agrários, não existe esta plenitude de vontade. As partes são tuteladas pela lei do Estado, representadas pelo Estatuto da Terra e pelo Decreto nº 59.566/66. E como já se viu no tópico anterior, os protegidos pelo direito sequer podem dispor ou renunciar os direitos que estes dispositivos legais preveem. Por conseguinte, autonomia de vontade nos moldes preceituados no Código Civil existirá apenas na decisão ou não de contratar, pois se houve opção de contrato, a vontade se subsumirá nos ditames da lei. Os contratantes deverão cumprir a vontade do legislador.

Mas qual é a vontade do legislador agrário? É, em tese, a de proteger economicamente aqueles que consideram os mais fracos. A tônica é a mesma do contrato de trabalho e da relação de consumo. Portanto, o Estatuto da Terra e o Regulamento que trata dos contratos agrários têm uma nítida proteção ao arrendatário e ao parceiro-outorgado, que são as partes visionadas como economicamente mais débeis nessas relações.

Por via de consequência, não havendo dispositivo expresso, a exegese deverá se inclinar pela proteção do que a lei entendeu ser o mais fraco.

 

II – Do direito de preferência na renovação dos contratos agrários

 

Demonstrando mais uma vez a sua intenção de proteger o arrendatário ou parceiro-outorgado, o legislador estabeleceu que, em igualdade de condições com estranhos, terão eles preferência na renovação do contrato, desde que o arrendador ou parceiro-outorgante lhes comunique, através de notificação válida, a existência de outras propostas, até 6 (seis) meses antes de seu vencimento. É o que dispõe o art. 95, inciso IV, c/c o art. 96, II, do Estatuto da Terra, e art. 22 e § 1º do Decreto nº 59.566/66.

A Lei nº 11.443/2007 modificou o art. 95. inciso IV, do Estatuto da Terra apenas para enfatizar que a notificação a ser feita pelo proprietário seria extrajudicial. Isso porque a substituição de locatário por arrendador no corpo do inciso IV modificado é claro erro de redação, pois a mudança radical não se explica dentro da estrutura do artigo. Ora, ao admitir-se como pertinente a modificação estar-se-ia criando um prêmio ao proprietário faltoso, que, além de manter-se silente na notificação, poderia rescindir o contrato em completo desvirtuamento da estrutura protetiva que o legislador pretendeu dar ao arrendatário. Além disso, o complemento da frase “não manifeste sua desistência ou formule nova proposta” ficaria sem nexo, pois, estando o contrato já renovado, o ato de desistir seria manifestação de vontade exclusiva do arrendatário, circunstância que também se estende à possibilidade de formulação de nova proposta, já que proposta alguma pode o arrendador fazer. Ele apenas as recebe.

A notificação duvidosa, quer quanto aos conteúdos das propostas recebidas, quer quanto à sua forma expressa de comunicação, ou mesmo sua inexistência, proporcionará a renovação automática do contrato nas mesmas bases e condições.

O legislador, no entanto, abriu a possibilidade de o arrendatário ou o parceiro-outorgado não pretenderem mais continuar contratando, quando lhes fixou prazo de 30 (trinta) dias, contados da terminação do contrato, para expressar essa desistência através de declarações registradas no Cartório de Títulos e Documento.

Questão de interesse é quanto ao prazo dessa renovação, seja ela porque a oferta do arrendatário ou parceiro-outorgado é igual à dos estranhos ou porque houve silêncio ou notificação viciada do arrendador ou parceiro-outorgante. Tenho, numa exegese protetiva de acordo com toda a estrutura imposta pelo legislador, que se o contrato anterior tinha prazo indeterminado, e a lei não faz qualquer distinção a respeito quando afirma expressamente que haverá renovação, conceito jurídico que significa repetição do existente ou algo novo, há de se entender que este novo contrato deverá respeitar o prazo mínimo de acordo com o tipo de exploração pactuada. Essa é a melhor lógica na interpretação. Se, todavia, o contrato anterior for tácito ou verbal, que significam coisas diferentes, neste caso entender-se-á que aquele contrato foi fixado pelo prazo mínimo, e, portanto, a renovação implicará a existência de um novo prazo mínimo. Dúvida não pairará se o contrato anterior for por prazo determinado, pois nesta situação o novo contrato se renovará por igual período.

III – Do direito de preferência na alienação do objeto do contrato agrário

Qualquer modificação que ocorra na titularidade do imóvel arrendado ou cedido em parceira, resultante de alienação, não prejudicará o contrato agrário. O novo titular se subsume na condição de arrendador ou parceiro-outorgante no contrato agrário. No caso de venda de um imóvel arrendado, por exemplo, o comprador assumirá a condição de arrendador no pacto firmado por seu antecessor.

A situação de imutabilidade contratual também se verificará na circunstância de incidência de ônus real sobre o imóvel. É o caso de ocorrência de hipoteca sobre um imóvel cedido em parceria. Este ônus real não afetará o contrato agrário.

O art. 92, § 5º, do Estatuto da Terra e o art. 15 do Decreto nº 59.566/66 dão lastro legal a esta interpretação.

O direito de preferência do arrendatário na alienação do imóvel rural arrendado será caracterizado nos arts. 92, §§ 3º e 4º, do Estatuto da Terra, e 45 do Decreto nº 59.566/66.

Dúvida poderia haver quanto à aplicação desse direito ao contrato de parceria. Inicialmente, coloco que a previsão da preferência do arrendatário na alienação do imóvel arrendado se encontra nas disposições gerais inerentes aos contratos, tanto de arrendamento, como de parceria, como se observa nos demais parágrafos do art. 92, o que dá ideia da aplicação comum do instituto. Não bastasse, inexiste qualquer conflito entre a preferência e o contrato de parceria, o que, nos termos do art. 34 do Decreto nº 59.566/66, significa sua plena aplicação. Por fim, é do sistema dos contratos de sociedade de pessoas, como se assemelha a parceria, a preferência do sócio que fica pelos direitos existentes na sociedade do sócio que se retira, consoante se deduz do art. 334 do Código Comercial Brasileiro.

Superada a dúvida, é de se colocar que a preferência surge para o arrendatário ou parceiro-outorgado no momento que o arrendador ou parceiro-outorgante pretende alienar o bem objeto do contrato agrário. É uma restrição ao seu direito de propriedade, pois a disposição da coisa fica condicionada à aceitação de uma pessoa certa. Pouco importa a existência, por exemplo, de animosidade entre as partes contratantes, a oferta tem que ser feita para que a venda do bem imóvel rural seja perfeita.

Ademais, configurando o arrendador ou parceiro outorgante em pluralidade de pessoas, a intensão de vender sua parte por qualquer um deles, não altera o direito de preferência do arrendatário ou parceiro outorgado em adquirir essa parte do todo. Aplica-se a máxima interpretativa do direito romano “a maiori, ad minus” ou “quem pode o mais, pode o menos”.

O arrendatário ou parceiro-outorgado não leva qualquer vantagem na aquisição preferencialmente do imóvel rural. Seu direito se restringe à possibilidade de adquirir o bem existindo iguais condições de ofertas de preço. Portanto, se os estranhos ao contrato rural oferecerem 100, sendo também esta a proposta do arrendatário ou parceiro-outorgado, surge para ele o direito de preferir aos demais na compra do imóvel rural e a obrigação do arrendador ou parceiro-outorgante de lhes vender o bem.

O arrendador ou parceiro-outorgado deve comunicar a intenção de venda e as ofertas recebidas 30 (trinta) dias antes de realizá-la, mediante notificação judicial ou qualquer outra forma que possa demonstrar a ciência do arrendatário ou parceiro-outorgado interessado, como o Aviso de Recebimento dos Correios.

Todavia, se não houver notificação, ou ainda se ela se operou de forma viciada, como fora do trintídio ou com dúvida de recebimento, surge para o arrendatário ou parceiro-outorgado a possibilidade de exercitar o seu direito de preferência, também conhecido como direito de preempção ou de adjudicação compulsória. A lei estabeleceu o prazo de 6 (seis) meses para o efetivo exercício desse direito, fixando seu início na data de transcrição da escritura de compra e venda no Registro de Imóveis, decorrido o qual a venda embora inicialmente viciada se consolida.

Questão interessante pode surgir se a escritura de compra e venda foi firmada quando estava em vigor o contrato agrário e somente registrada após sua terminação. Como fica evidente que o registro posterior ocorreu com claro intuito de prejudicar o detentor do direito de preferência, é possível ao arrendatário ou ao parceiro outorgado beneficiar-se desse direito de preferência a qualquer tempo por se constituir a omissão em ato juridicamente nulo, mais precisamente por simulação, quer seja por violação ao disposto no art. 2º, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66, quer por força do art. 169, do Código Civil.  A importância dessa conclusão é que, por se tratar a compra e venda de ato nulo, fica sem qualquer relevância jurídica o prazo decadencial de 6 (seis) meses para o exercício da decadência a contar de seu registro. Aqui é aplicável a teoria do fruto da arvora envenenada pelo qual o vício da planta é transmitido aos seus frutos. Pode o beneficiário da preferência ainda cumular o seu pedido com indenização ou só pedir exclusivamente esta.

Como já disse acima, o arrendatário ou parceiro-outorgado não adquire qualquer vantagem econômica na venda do imóvel rural a terceiro pelo arrendador ou parceiro-outorgante. Seu direito se exaure em poder adquiri-lo. Portanto, na ação de preempção, preferência ou de adjudicação compulsória que deverá ajuizar para o exercício efetivo desse direito, o depósito do preço é condição essencial de recebimento de seu pedido.

O preço que deverá depositar é integrado do valor constante na escritura de compra e venda firmada entre o arrendador ou parceiro-outorgante e o terceiro, devidamente corrigido, acrescido de juros legais e as despesas da venda, como as de pagamento de impostos, comissão de corretagem e gastos com a própria escritura. O valor depositado se constituirá na parcela a ser devolvida ao terceiro.

A ação de preempção, preferência ou adjudicação compulsória é de rito ordinário e deverá necessariamente trazer no seu polo passivo o arrendador ou parceiro-outorgante e o terceiro, pois seu universo de abrangência é de verdadeira cumulação de pedidos. Isso porque, no primeiro momento, ela desconstituirá a venda efetuada entre o arrendador ou parceiro-outorgante e o terceiro e, no segundo momento, a constituirá agora entre aqueles e o autor da ação. O Ministério Público será cientificado do feito.

Nota:

[1] Decreto n° 59.566/66.

Art. 2º – Todos os contratos agrários reger-se-ão pelas normas do presente Regulamento, as quais serão de obrigatória aplicação em todo território nacional e irrenunciáveis os direitos e vantagens nelas instituídos.

Parágrafo único – Qualquer estipulação contratual que contrarie as normas estabelecidas neste artigo, será nula de pleno direito e de nenhum efeito.

Wellington Pacheco Barros – Advogado sócio de Wellington Barros Advogados Associados. Desembargador aposentado do TJRS. Professor universitário em várias instituições, detre elas Escola da Ajuris e FMP. Especialista e Mestre em Direito. Conferencista e Palestrante em eventos nacionais e internacionais. Autor de mais de 100 artigos jurídicos e 55 livros, dentre eles o Curso de Direito Agrário (Livraria do Advogado – 9ª edição) e o Curso de Direito Ambiental (Editora Atlas). Comendador da UFSM. Membro fundador da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.

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