sábado , 23 novembro 2024
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Direito Agrário

Rescisão de pacto de exploração ambiental por violação da boa-fé objetiva

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) que, apesar de reconhecer violação da boa-fé objetiva em contrato acessório de exploração sustentável de área ambiental, rejeitou o pedido para a sua resolução, sob o argumento de que ainda seria possível mantê-lo, apenas determinando que o responsável cumprisse suas obrigações para licenciamento da área perante os órgãos ambientais.

Para a turma julgadora, a decisão do TJMT extrapolou os limites da petição inicial – em que não houve pedido de cumprimento do contrato –, violando o artigo 475 do Código Civil, segundo o qual a parte lesada pode pedir a resolução do contrato caso não prefira exigir-lhe o cumprimento – cabendo, em qualquer caso, indenização por perdas e danos.

De acordo com os autos, foi celebrado um contrato de compra e venda de área rural, no qual ficou estabelecido, por meio de pacto acessório, que os vendedores poderiam explorar de forma sustentável uma região de floresta. Em contrapartida, eles abateram do valor do imóvel o montante que seria potencialmente obtido com essa exploração.

Entretanto, segundo os vendedores, o comprador, logo após a celebração do contrato, passou a frustrar o cumprimento do pacto, deixando de assinar documentos essenciais para a obtenção de licenças nos órgãos ambientais e, assim, impedindo-os de explorar licitamente a área.

Para o TJMT, o contrato não deveria ser rescindido

Em primeiro grau, o juiz reconheceu a violação de cláusula adjeta de arrendamento florestal, em razão da omissão do comprador em atender o dever de colaboração e cooperação. Por isso, o magistrado condenou o réu à obrigação de assinar todos os documentos relativos às fases de aprovação ambiental, no prazo de 15 dias, sob pena de multa de R$ 10 mil por dia.

Ao manter a sentença, o TJMT afirmou que o fato de não haver relação cordial entre as partes não é motivo suficiente para pôr fim ao contrato. Embora a petição inicial tivesse como pedidos exclusivos a resolução parcial do contrato – especificamente em relação à exploração florestal – e o pagamento de indenização referente ao valor da área que seria explorada, a corte estadual entendeu que o cumprimento do acordo ainda era possível, bastando forçar o comprador a cumprir suas obrigações perante o órgão ambiental.

Dever de lealdade e respeito à confiança entre as partes contratantes

A ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso dos vendedores, explicou que a boa-fé objetiva constitui uma exigência de lealdade, impondo que cada parte se comporte de forma honesta, escorreita e leal, em conformidade com um padrão ético de confiança, a fim de permitir a concretização das legítimas expectativas que justificaram a celebração do acordo de vontades.

“O ordenamento jurídico, nesse contexto, repele a prática de condutas contraditórias, impregnadas ou não de malícia ou torpeza, que importem em quebra da confiança legitimamente depositada na outra parte da relação contratual”, completou a ministra.

No caso dos autos, Nancy Andrighi apontou que, como os autores da ação não pediram o cumprimento do acordo, o TJMT, após reconhecer a violação de dever contratual, não poderia atribuir consequência jurídica diferente daquela pleiteada na petição inicial, sob pena de violação ao princípio da congruência.

“Dessa forma, impõe-se a conclusão de que o tribunal de origem – ao deferir pedido não formulado pelos autores da ação – extrapolou os limites fixados na petição inicial, em afronta ao artigo 492 do Código de Processo Civil de 2015“, afirmou.

Em seu voto, a relatora ainda observou que o tribunal mato-grossense, ao entender que o inadimplemento do comprador não deveria resultar na resolução parcial da avença, ofendeu igualmente o artigo 475 do Código Civil.

“Por derradeiro, como corolário do reconhecimento do inadimplemento parcial da avença, que acarretou prejuízo econômico aos recorrentes, impõe-se ao recorrido a obrigação de reparar os danos materiais causados, cujo montante deve ser apurado pelo juízo de primeiro grau em liquidação de sentença, por arbitramento”, concluiu a ministra.

Fonte: Notícias do STJ, 30/05/2022 – referente ao REsp nº 1.944.616/MT.

Dica de leitura:

Na obra Função ambiental da propriedade rural e dos contratos agrários,  publicado pela Editora LEUD, em 2013, os autores Albenir I. Querubini Gonçalves e Cassiano Portella Ceresér já apontavam a violação de deveres de proteção ao meio ambiente como causa de rescisão dos contratos agrários.

 

Confira o julgado:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.944.616 – MT (2021/0186469-6)

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por VICTORIO ROMANINI NETO e ELEONORA ANTUNES TEIXEIRA ROMANINI, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional.

Ação: de resolução de contrato de compra e venda e de indenização, ajuizada pelos recorrentes em face de JOSÉ DELCARO.

Sentença: julgou parcialmente procedentes os pedidos, “para, reconhecendo a existência de violação positiva da cláusula adjeta de arrendamento florestal, pela omissão do promitente comprador em atender aos ditames do dever de colaboração e cooperação, cominando ao requerido a obrigação de assinar todos os documentos atinentes às fases de aprovação do PMFS, no prazo improrrogável de 15 dias, sob pena de multa diária (astreinte)” fixada “em R$ 10.000,00/dia, até o limite do valor da obrigação inadimplida” (e-STJ fl. 388).

Acórdão: negou provimento às apelações e interpostas por ambas as partes, nos termos da seguinte ementa:

APELAÇÕES – PRELIMINAR – CERCEAMENTO DE DEFESA – ALEGAÇÃO QUE DEVE SER REALIZADA NA PRIMEIRA OPORTUNIDADE – INTIMAÇÃO VÁLIDA – PROVA INJUSTIFICADA – PRELIMINAR REJEITADA – RESOLUÇÃO DE CONTRATO – COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – RESERVA DE DIREITO DE EXPLORAÇÃO DE MADEIRA NO IMÓVEL PELO VENDEDOR – PROCEDIMENTO FRENTE À SEMA – OBRIGAÇÃO ASSUMIDA PELO COMPRADOR – PRIMEIRA FASE DO PROCEDIMENTO QUE SE DEU COM PRESENÇA DO COMPRADOR – OMISSÃO DE PROSSEGUIMENTO DA SEGUNDA FASE – ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO PELO VENDEDOR NÃO PREVISTA NO CONTRATO – BOA-FÉ OBJETIVA – ATITUDE CONTRADITÓRIA DO COMPRADOR – INÍCIO DO PROCEDIMENTO QUE SE INICIOU POR ELE POR LIBRE E ESPONTÂNEA VONTADE – VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM – DEVER DE CUMPRIMENTO – RESCISÃO DO CONTRATO – DESNECESSIDADE – EXPLORAÇÃO ECONÔMICA QUE AINDA É POSSÍVEL – ALEGADA AUSÊNCIA DE CORDIALIDADE ENTRE AS PARTES – MOTIVO INJUSTIFICADO À RESCISÃO – AMBOS OS RECURSOS DESPROVIDOS.

1- O art. 278 do CPC estabelece que “A nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão”.

2- A Lei nº 11.419, de 19 de Dezembro de 2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 –Código de Processo Civil; e dá outras providências, estabelece que as intimações feitas por meio eletrônico em portal próprio dispensam a publicação no Diário Eletrônico, e dão legalidade à intimação eletrônica automática, considerada pelo juiz de primeiro grau, quando fez referência à ciência das partes quanto à de designação de audiência.

2- O requerido não diz qual a necessidade de se anular o ato judicial e retornar o processo ao primeiro grau para realização da audiência. Sequer destaca qual ponto foi prejudicado na demonstração de suas alegações. Apenas faz destaques e fundamentações genéricas de violação ao devido processo legal, sem dizer qual prova fez e o que desejaria provar com isso.

3- “Em questões probatórias, não há preclusão para o magistrado” (AgInt noAREsp 508.604/DF, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA,julgado em 20/03/2018, DJe 27/03/2018).

4- “1. Segundo disposto no artigo 422 do Código Civil, os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Assim, trata-se a boa-fé de norma ética de condutado direito contratual, pautada na crença efetiva no comportamento alheio, caracterizado por padrões sociais de conduta honesta, devendo ser observada do início à execução e conclusão do contrato. 2. O contrato não se esgota na obrigação de dar, fazer ou não fazer, sendo permeado por deveres jurídicos anexos ou de proteção decorrentes da boa-fé objetiva, tais como a lealdade, confiança, assistência, informação, confidencialidade e sigilo. 3. Desdobra-se ao conceito de lealdade processual, a vedação do comportamento contraditório, não se mostrando razoável que uma pessoa pratique determinado ato ou conjunto de atos e, em seguida, realize conduta diametralmente oposta. Espera-se, portanto, dos contraentes, um comportamento coerente, sendo que “cada um deve guardar fidelidade à palavra dada e não defraudar ou abusar da confiança alheia.” (FARIAS, 2015). 4. Classificam-se exercício abusivo do direito, os casos em que o titular deste direito adota atitudes contraditórias, ferindo a confiança contratual da outra parte. No venire contra factum proprium, o titular do direito coloca-se em posição jurídica contraditória com o comportamento assumido anteriormente; na supressio, deixa de exercitar o seu direito em determinada circunstância, não podendo fazê-lo posteriormente, sob pena de contrariar a boa-fé. […].” (TJ-GO – AC: 01119111320158090051 GOIANIA, Relator: DES. GERSON SANTANA CINTRA, Data de Julgamento: 12/04/2016, 3ACAMARA CIVEL, Data de Publicação: DJ 2012 de 20/04/2016).

5- A fato de as partes não terem relação de cordialidade entre si não é motivo suficiente para se pôr fim ao contrato, com a consequente condenação em milhões contra o requerido. Se a discordância entre partes fosse motivo para o fim à qualquer relação contratual, este seria o destino de todas as ações judiciais, em verdadeira frustração aos fins que se espera da Justiça, que não se limita a resolução contratual, mas também nas possíveis obrigações de se fazer e não fazer, quando possível, como no caso em questão, em que a exploração econômica do imóvel pelos autores é possível”. (e-STJ fls. 484/485)

Embargos de declaração: opostos por ambas as partes, foram rejeitados.

Recurso especial: alegam ofensa ao art. 422 do Código Civil. Sustentam, em síntese, que, tendo sido constatada, pelo Tribunal de origem, violação da boa-fé objetiva por parte do recorrido, a consequência direta deve ser a resolução do contrato e o pagamento de indenização, conforme pleiteado na inicial.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

O propósito recursal consiste em definir se o reconhecimento de violação da boa-fé objetiva durante a execução de contrato de compra e venda de imóvel rural com pacto adjeto de arrendamento e exploração florestal enseja, nas circunstâncias dos autos, a resolução parcial da avença.

1. SÍNTESE DA LIDE.

1. Os recorrentes (vendedores) celebraram com o recorrido (comprador), em 30/4/2015, contrato de compra e venda de uma área rural de aproximadamente 3.500 hectares, no qual ficou estabelecido, segundo o Tribunal de origem, pacto acessório de arrendamento para exploração florestal com manejo sustentável (e-STJ fl. 495).

2. Conforme consta do acórdão recorrido (e-STJ fls. 495 e 499), o montante relativo à expressão econômica da madeira presente na área a ser explorada pelos recorrentes não fora incluído no preço pago pelo recorrido (equivalendo a um abatimento do preço total do imóvel), de modo que, na hipótese de resolução parcial do contrato, fariam eles jus à indenização correspondente.

3. Ocorre que, embora a cláusula em questão tenha sido dimensionada para perdurar por aproximadamente seis anos, constatou-se que o recorrido, em curto espaço de tempo após a celebração do contrato, passou a se comportar de modo a frustrar o cumprimento do pacto, deixando de assinar documentos essenciais para a obtenção de licenças junto aos órgãos ambientais e, assim, impedindo que os recorrentes pudessem explorar licitamente a área identificada na avença.

4. De acordo com o aresto impugnado, os motivos apresentados pelo recorrido para não contribuir com o procedimento de licenciamento ambiental necessário à exploração florestal pelos recorrentes “são totalmente alheios aos deveres e obrigações contratuais, impondo ao autor obrigação de terceiro, mais especificamente servidão de passagem em imóvel de Antônio Sansão […]” (e-STJ fl. 498).

5. Diante desse contexto, os juízos de origem reconheceram que houve violação da boa-fé objetiva por parte do recorrido, haja vista que a paralisação do processo administrativo perante a Secretaria Estadual do Meio Ambiente – SEMA ocorreu única e exclusivamente por sua omissão injustificada (e-STJ fl. 500).

6. Todavia, a despeito de a petição inicial da presente ação veicular como pedidos exclusivamente a resolução parcial do contrato (no que se refere à exploração florestal) e o pagamento de indenização referente ao valor da madeira que seria explorada pelos recorrentes (e que teria sido abatida do preço pago pelo imóvel), o Tribunal a quo decidiu manter a higidez do pacto acessório, ao fundamento de que a exploração da área de vegetação não se tornou impossível, bastando, para isso, que ao recorrido seja imposto o dever de cumprir com sua obrigação junto ao órgão ambiental.

7. A tese defendida pelos recorrentes, por seu turno, é no sentido de que o não cumprimento da cláusula deve conduzir, conforme requerido especificamente na petição inicial, à resolução (parcial) da avença, uma vez que, diante das dificuldades impostas pelo recorrido, não possuem mais interesse na exploração florestal, devendo a eles ser entregue o montante correspondente ao valor da madeira passível de manejo existente na área.

2. DA BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS.

8. Como é cediço, a boa-fé objetiva (art. 422 do CC) apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual se impõe o poder-dever de que cada parte da relação jurídica ajuste o próprio comportamento a esse modelo, atuando de forma honesta, escorreita, leal, em conformidade a um padrão ético de confiança, a fim de permitir a concretização das legítimas expectativas que justificaram a celebração do acordo de vontades.

9. Nos termos da jurisprudência desta Corte, “a boa-fé objetiva restringe o exercício abusivo de direitos, impondo que as partes colaborem mutuamente para a consecução dos fins comuns perseguidos com o contrato – que não é um mero instrumento formal de registro das intenções –, e também encontra a sua vinculação e limitação na função econômica e social do contrato, visando a fazer com que os legítimos interesses da outra parte, relativos à relação econômica nos moldes pretendidos pelos contratantes, sejam salvaguardados” (AgInt no REsp 1.779.763/SP, Quarta Turma, DJe 13/8/2020).

10. Da função integrativa da boa-fé objetiva decorre a existência de deveres jurídicos anexos, laterais, secundários ou acessórios, a serem observados desde a fase de formação do contrato.

11. Tais deveres compreendem, entre outros: “a) os deveres de cuidado, previdência e segurança; b) os deveres de aviso e esclarecimento; c) os deveres de informação; d) o dever de prestar contas; e) os deveres de cooperação e colaboração; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e seu patrimônio; g) os deveres de omissão e de segredo” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 439).

12. Assim, como desdobramento do princípio da boa-fé, as partes de uma relação contratual não podem exercer direitos, ainda que assegurados na própria avença de maneira formalmente lícita, quando, em sua essência, se verificar que esse exercício represente deslealdade ou gere consequências danosas para a contraparte.

13. O ordenamento jurídico, nesse contexto, repele a prática de condutas contraditórias, impregnadas ou não de malícia ou torpeza, que importem em quebra da confiança legitimamente depositada na outra parte da relação contratual.

14. A proibição à contraditoriedade desleal no exercício de direitos, poderes ou situações manifesta-se, de acordo com o magistério de JUDITH MARTINS-COSTA, em diversas figuras (suppressio, surrectio, tu quoque, venire contra factum proprium etc.), as quais apresentam, como conteúdo comum, a “vedação a exercitar um direito subjetivo, faculdade, ou posição jurídica em contradição com a sua anterior conduta interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, ou quando o exercício posterior se choque [com] a boa-fé” (op. cit., p.614).

15. Segundo a renomada Professora, o efeito primordial dessas figuras “é impedir que a parte que tenha violado deveres legais ou contratuais exija o cumprimento pela outra parte, ou valha-se do seu próprio incumprimento para beneficiar-se de disposição contratual ou legal” (op. cit., p.616).

3. DA HIPÓTESE DOS AUTOS.

16. No particular, verifica-se que o Tribunal de origem reconheceu, expressamente, que o recorrido violou a boa-fé objetiva e agiu de maneira contraditória, uma vez que, após ter dado início ao procedimento de licenciamento ambiental da área a ser explorada pelos recorrentes junto ao órgão ambiental estadual, negou-se a dar-lhe continuidade, sem justificativa plausível. Eis o teor do acórdão recorrido, quanto ao ponto:

Depreende-se dos autos que plano de manejo foi iniciado pelo apelado/José Delcaro, e ele quem assinou os respectivos documentos junto ao Órgão Ambiental correspondente – SEMA, conforme Requerimento Padrão de licenciamento (id. 45912553, p. 17), Requerimento Padrão de Dinâmica de Desmate (id. 45912554, p. 02) e ART’s de Prestação de Serviço (id. 45912554, p. 04/07), documentos datados de 01/02/2016 até 10/07/2016.

A partir de agosto de 2016, verificam-se diversos documentos sem a assinatura do apelante/requerido, como ART’s, Declarações e ‘Requerimento Padrão de Manejo'(id. 45912553, p. 14; 45912554, p. 09/11), apesar de constar como devido responsável pelo pleito frente à SEMA. Em documentação enviada ao requerido José Delcaro, depreende-se expressa afirmação do respectivo engenheiro florestal no sentido de que “Conseguimos aprovar a primeira fase do manejo da Fazenda Matão, e agora estou providenciando a segunda fase”, remetendo em anexo justamente estes documentos, não assinados pelo requerido (id. 45912554,p. 16). Em outro email, analista do pedido junto à SEMA confirma a necessidade do início da segunda fase, com a captação das assinaturas do requerido (id. 45912554, p. 17).

Em notificações constantes dos autos, enviadas pelo requerido José Delcaro ao autor Victório, verifica-se que os motivos para deixar de contribuir com o projeto junto à SEMA são totalmente alheios aos deveres e obrigações contratuais, impondo ao autor obrigação de terceiro, mais especificamente servidão de passagem em imóvel de Antônio Sansão […].

[…]

Não há nos contratos realizados entre as partes qualquer obrigação de cumprimento de servidão de passagem pelo autor, de maneira que a omissão ao ideal andamento do plano de manejo florestal, necessário para a quitação da compra e venda do imóvel em questão, não é justificável, sendo ato de pressão e imposição dissociados dos deveres contratuais.

O fim precípuo para o cumprimento das obrigações foi impedido por José Delcaro, ante a demonstração de documentação a ele encaminhada para continuidade da segunda fase do procedimento junto à SEMA, e por ele iniciado por livre e espontânea vontade, de maneira que, se não uma obrigação contratual escrita, foi uma obrigação verbal, moral e mantida com boa-fé, até que foi paralisada por desejos estranhos aos termos do instrumento entabulado.

A primeira fase se deu com a presença de José Delcaro, e não existe nos autos qualquer prova de que foi coagido a tanto, de sorte que o simples dizer de não ter qualquer obrigação contratual é verdadeira atitude contraditória. Se realmente não tivesse qualquer obrigação, mesmo que de boa-fé, por qual motivo iniciou o processo junto à SEMA quando os contratos já vigoravam? É certo que a sua omissão está impedindo o ideal cumprimento contratual e a finalização do procedimento, estando os autores diretamente prejudicados pela não possibilidade de exploração econômica da área, meio ajustado entre as partes como forma de “pagamento” pela compra do imóvel pelo requerido.

Nos termos do art. 422 do CC, “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

As obrigações e os deveres contratuais não são limitados e concretados, e devem sempre permear a boa-fé objetiva, cumprindo com os interesses que atendem a lealdade, a confiança, a assistência, dentre outros elementos que visam que as partes, conjuntamente, possam chegar ao objetivo comum.

É verdadeiro venire contra factum propriumque o requerido pratique ato ou conjunto de atos e, em seguida, diga que não há obrigação a tanto, frustrando todo o que realizou desde então.

[…]

Logo, por todo o consignado nos autos, conclui-se que a paralização [sic] do processo junto à SEMA se deu por omissão injustificada do requerido, que deve ser compelido ao cumprimento, nos termos constantes da sentença. (e-STJ fls. 498/500)

17. Em resumo, reconheceu-se a conduta contrária ao dever de cooperação e lealdade, caracterizada pela omissão do recorrido em praticar atos relevantes à execução do contrato, o que frustrou a expectativa legítima dos recorrentes, causando-lhes prejuízo.

18. Todavia, apesar de deixar assentado que o recorrido violou frontalmente a boa-fé objetiva, impedindo injustificadamente a integral execução do contrato entabulado, a Corte a quo rejeitou a pretensão formulada na inicial pelos recorrentes, que haviam postulado a resolução parcial da avença (em relação à exploração florestal da área arrendada).

19. O pedido, quanto ao mérito da ação, vale consignar, foi deduzido nos seguintes termos:

Meritoriamente,

c) A procedência da demanda, para resolver parcialmente o Contrato de Compra e Venda das Fazendas Vale do Rio Verde, ao que se refere ao Parágrafo Quarto, Cláusula 5, com a condenação do Réu ao pagamento atualizado, com juros legais, de R$ 4.531.692,60, valor este relativo ao preço da madeira presente no Manejo Florestal frustrado, com danos morais a serem arbitrados por Vossa Excelência.

d) A condenação do Réu em custas e honorários de advogado. (e-STJ fl. 20)

20. O acórdão recorrido, por seu turno, entendeu que “o simples descumprimento contratual, por si só, não é suficiente para a rescisão do instrumento, “sem que se demonstre ser impossível que, ainda que tardiamente, sejam executadas as obrigações inadimplidas e, assim, explorada economicamente a área de mata reservada para execução do arrendamento em comento” (e-STJ fl. 501).

21. E acrescentou:

Em outras palavras, mas com mesmo sentido, não há motivos para a não execução da exploração quando possível a imposição deste dever ao requerido e não existe ônus aos autores. Ainda é possível a exploração na área com lucro auferido pelos autores, já que não existe nos autos qualquer prova ou elemento mínimo suficiente a se concluir que não existe mais área a ser explorada e que a continuidade da relação é juridicamente impossível.

O fato de as partes não terem relação de cordialidade entre si, como afirmado pelos próprios autores em sua apelação, ao afirmarem que tomarão com “briga, litígio e etc” quando da execução do contrato, não é motivo suficiente para se pôr fim ao contrato, com a consequente condenação em milhões contra o requerido. Se a discordância entre partes fosse motivo para o fim à qualquer relação contratual, este seria o destino de todas as ações judiciais, em verdadeira frustração aos fins que se espera da Justiça, que não se limita a resolução contratual, mas também nas possíveis obrigações de se fazer e não fazer.

A justificativa de não interação cordial entre as partes caso mantida a sentença não prospera, até porque, não se pode presumir que eles terão interação pessoalmente, a considerar que têm funcionários, podem ter procuradores, dentre outros meios de interação, já que o contato pessoal seria impedimento para o cumprimento do contrato.” (e-STJ fl. 501)

22. Ocorre, em primeiro lugar, que, diante da ausência de pedido formulado pelos recorrentes no sentido de que se impusesse obrigação de fazer ao recorrido (no intuito de dar continuidade ao procedimento junto ao órgão ambiental), não cabia aos julgadores, após reconhecer a ocorrência de descumprimento de dever contratual, atribuir consequência jurídica diversa daquela postulada na inicial, sob pena de violação ao princípio da congruência.

23. De fato, e como é cediço, é defeso ao juiz proferir decisão que não guarde correlação com o pedido, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado (art. 492 do CPC/15). Os limites da demanda constituem os limites da atuação do julgador. Acerca do tema, vale a transcrição de doutrina de escol:

A lide, mesmo no sentido sociológico com que a configura Carnelutti, apresenta-se no processo em limites fixados pela parte. Isto é, mesmo que a lide, como entidade sociológica, fora do processo, tenha determinada extensão, ela pode ser apresentada apenas parcialmente no processo. E é nesse limite em que ela foi trazida ao juiz que este deve ser exercer a sua atividade.

Em outras palavras, o conflito de interesses que surgir entre duas pessoas será decidido pelo juiz não totalmente, mas apenas nos limites em que elas o levarem ao processo. Usando a fórmula antiga, significa o artigo que o juiz não deve julgar além do pedido das partes: ne eat judex ultra petita partium. Esse brocardo se aplica com maior rigor, quando se tratar dos limites postos pelo pedido do autor, os quais nunca podem ser ultrapassados. E, do mesmo modo que não deve decidir mais do que o autor pediu, o juiz também não lhe pode conceder coisa diferente da que foi pedida, isto é, não pode decidir fora do pedido.

(BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 1º a 153. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 403)

24. No particular, a partir de um exame atento da petição inicial, depreende-se que em nenhuma passagem fez-se referência à imposição de obrigação de fazer ao recorrido; tampouco se constata a existência de pedido nesse sentido.

25. Dessa forma, e como consequência do que foi até aqui exposto, impõe-se a conclusão de que o Tribunal de origem – ao deferir pedido não formulado pelos autores da ação – extrapolou os limites fixados na petição inicial, em afronta ao art. 492 do CPC/15.

26. Em segundo lugar, constata-se que, na hipótese dos autos, o Tribunal de origem, ao entender que o inadimplemento do recorrido não deveria – ao contrário da pretensão afirmada em juízo pelos recorrentes – ensejar a resolução (parcial) da avença, acabou por violar, igualmente, o enunciado do art. 475 do CC, cujo conteúdo normativo assegura expressamente à parte lesada pelo inadimplemento, caso prefira não exigir o cumprimento do acordo, pedir a resolução do contrato. In verbis:

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

27. Tal regra revela que, se não mais interessar ao contratante prejudicado pelo descumprimento da obrigação exigir da contraparte o adimplemento tardio, terá ele a faculdade de postular a resolução do negócio jurídico. Trata-se de direito potestativo que lhe assiste em função da norma precitada.

28. Ademais, de acordo com a doutrina especializada, “também o descumprimento de deveres laterais, decorrentes da incidência do princípio da boa-fé, pode ensejar a resolução, se for capaz de comprometer o interesse do credor na utilidade da prestação” (TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil, vol. 3. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 159, ed. eletrônica).

29. Diante de todo o exposto, portanto, impõe-se a modificação do acórdão recorrido, a fim de reconhecer, a partir das premissas fáticas assentadas pelo juízo a quo, a procedência do pedido de resolução parcial do “Contrato de Compra e Venda das Fazendas Vale do Rio Verde, ao que se refere ao Parágrafo Quarto, Cláusula 5” (e-STJ fl. 20).

30. Por derradeiro, como corolário do reconhecimento do inadimplemento parcial da avença, que acarretou prejuízo econômico aos recorrentes, impõe-se ao recorrido a obrigação de reparar os danos materiais causados, cujo montante deve ser apurado pelo juízo de primeiro grau em liquidação de sentença, por arbitramento.

31. A compensação reclamada em virtude da ocorrência de danos morais, por outro lado, não comporta acolhida, haja vista que, consoante entendimento firmado no STJ, o descumprimento contratual não acarreta, por si só, danos morais indenizáveis, exceto quando as circunstâncias da hipótese concreta demonstrarem a efetiva lesão extrapatrimonial, o que não foi sequer alegado nestes autos. Nesse sentido, a título ilustrativo: AgInt no REsp 1.922.431/SP, Quarta Turma, DJe 3/8/2021, e REsp 1.637.627/RJ, Terceira Turma, DJe 14/12/2016.

 

4. CONCLUSÃO.

Forte nessas razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para julgar procedente o pedido de resolução parcial culposa do contrato (inadimplemento do comprador), quanto às obrigações atinentes ao arrendamento para manejo florestal, conforme postulado na inicial, e condenar o recorrido a reparar os danos materiais causados (preço do imóvel), em valor a ser apurado em liquidação de sentença, por arbitramento.

 

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL. COMPRA E VENDA. PACTO ADJETO. MANEJO FLORESTAL. BOA-FÉ OBJETIVA. ART. 422 DO CC/02. DEVERES ANEXOS. COOPERAÇÃO E LEALDADE. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. DESCUMPRIMENTO CONFIGURADO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE RESOLUÇÃO. FACULDADE DO CONTRATANTE. JULGAMENTO. CORRELAÇÃO COM O PEDIDO. AUSÊNCIA. DECISÃO EXTRA PETITA. DANOS MATERIAIS DEVIDOS.

1. Ação ajuizada em 25/9/2017. Recurso especial interposto em 16/6/2021. Autos conclusos ao Gabinete em 24/6/2021.

2. O propósito recursal consiste em definir se o reconhecimento de violação da boa-fé objetiva durante a execução de contrato de compra e venda de imóvel rural com pacto adjeto de arrendamento e exploração florestal enseja, nas circunstâncias dos autos, a resolução parcial da avença.

3. A boa-fé objetiva, prevista de forma expressa no art. 422 do Código Civil, impõe às partes da relação jurídica o dever de comportar-se de acordo com padrões éticos de confiança e de lealdade, de modo a permitir a concretização das legítimas expectativas que justificaram a celebração do contrato.

4. O ordenamento jurídico, nesse contexto, repele a prática de condutas contraditórias, impregnadas ou não de malícia ou torpeza, que importem em quebra da confiança legitimamente depositada na outra parte da relação contratual.

5. O descumprimento de deveres laterais, decorrentes da incidência do princípio da boa-fé, pode ensejar a resolução do contrato, se for capaz de comprometer o interesse do credor na utilidade da prestação. Doutrina.

6. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido está a merecer reforma, pois, a par de reconhecer o descumprimento culposo da avença em prejuízo dos recorrentes (violação da boa-fé objetiva), decidiu de forma descorrelacionada com o pedido deduzido na inicial e impediu os recorrentes de exercerem a faculdade que lhes assegura expressamente a norma do art. 475 do CC (resolver o contrato).

7. Pedido de resolução parcial do contrato deferido, com condenação ao pagamento de reparação por danos materiais, cujo montante deve ser apurado em liquidação de sentença, por arbitramento. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Dr. RENATO MELÓN DE SOUZA NEVES, pela parte RECORRENTE: VICTORIO ROMANINI NETO e Outra

Brasília (DF), 08 de março de 2022(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

 

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