No nono episódio do Projeto “Direito Agrário Levado a Sério”, os professores Albenir Querubini e Francisco Torma discorrem sobre os princípios do Direito Agrário brasileiro.
Antes de adentrar no tema, é importante aos estudantes e profissionais entender que o estudo e compreensão dos princípios de determinada matéria é fundamental para a interpretação, compreensão dos institutos e para a exegese da disciplina a ser estudada. Portanto, o estudo teórico dos princípios também é de suma importância para a prática jurídica, uma vez que o Direito é por natureza uma ciência prática. E, nesse sentido, a prática do Direito deve ser uma prática refletida, onde o conhecimento teórico dos princípios e demais institutos possuem uma finalidade de manter o Direito “vivo” ou “renovado”, adaptando-se às necessidades e características, sociais, econômicas e tecnológicas de seu tempo. É por esse motivo que, desde já, ressaltamos a necessidade de um estudo dos princípios do Direito Agrário que leve em consideração os ciclos do agrarismo brasileiro, em especial atual fase de desenvolvimento do Agronegócio, com atenção à dinâmica das cadeias produtivas e sistemas agroindustriais.
Segundo definição de Humberto Ávila, os princípios “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”[1]. A partir de tal definição, projeta-se a ideia de princípios também como norma jurídica, e ressaltando-se seu o papel finalístico, tanto para a promoção do estado das coisas a ser alcançado (finalidade da norma), assim como parâmetro para a interpretação e da promoção de condutas. Por tal razão, os princípios que regem a disciplina de Direito Agrário devem ser observados e analisados pelos agraristas, especialmente para a correta aplicação e interpretação das normas de Direito Agrário.
Um rápido estudo pelas principais obras de Direito Agrário revela a falta de consenso quanto a diversidade de princípios que são elencados pela doutrina. Por exemplo, Raymundo Laranjeira lista como princípios (1) “princípio do aumento da produção e dos níveis de produtividade”, (2) “princípio de asseguramento da Justiça Social”, (3) “princípio da privatização das terras nacionais”, (4) “princípio da proteção à propriedade familiar camponesa”, (5) “princípio do dimensionamento eficaz das áreas exploráveis”, (6) “princípio do estímulo à produção cooperativista”, (7) “princípio do fortalecimento da empresa agrária”e (8) “princípio da proteção à propriedade consorcial indígena”[2]. Por sua vez, Benedito Ferreira Marques, lista 15 princípios: (1) “monopólio legislativo da União – art. 22, § 1º, CF”, (2) “utilização da terra se sobrepõe à titulação dominial”, (3) “propriedade da terra é garantida, mas condicionada ao cumprimento da função social”, (4) “Direito Agrário dicotômico: compreende política de reforma (Reforma Agrária) e política de desenvolvimento (Política Agrícola)”, (5) “normas jurídicas primam pela prevalência do interesse público sobre o individual”, (6) “reformulação da estrutura fundiária é necessidade constante”, (7) “o fortalecimento do espírito comunitário, através de cooperativas e associações”, (8) “combate ao latifúndio, ao minifúndio, ao êxodo rural, à exploração predatória e aos mercenários da terra”, (9) “privatização dos imóveis rurais públicos”, (10) “proteção à propriedade familiar, à pequena e à média propriedade”, (11) “fortalecimento da empresa agrária”, (12) “proteção da propriedade consorcial indígena”, (13) “dimensionamento eficaz das áreas exploráveis”, (14) “proteção do trabalhador rural” e (15) “conservação dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente”[3]. Nota-se que Benedito Ferreira Marques peca em termos didáticos e metodológicos, por vezes citando corolários e disposições normativas como se princípios fossem.
Por esse motivo, escolhemos trabalhar a partir da doutrina do agrarista Wellington Pacheco Barros, para quem o Direito Agrário está assentado em cinco princípios fundamentais, que são: (1) princípio da função social da propriedade, (2) princípio da justiça social, (3) princípio da prevalência do interesse coletivo sobre o individual, (4) princípio da reformulação da estrutura fundiária e (5) princípio do progresso econômico e social[4]. Além desses, acrescentamos em nossa abordagem mais um ponto: (6) princípio da privatização das terras públicas. Vejamos cada um deles:
1. Princípio da função social da propriedade
A lei agrária tratou de dizer que a função social da propriedade se alcança (consoante art. 2º, §1º, do Estatuto da Terra), quando atende simultaneamente: a) o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; e, d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam.
Para Orlando Gomes a subordinação do proprietário à função social implica uma noção de dever, pois “se o proprietário deve conformar o exercício de seu direito ao bem-estar social ou qualquer interesse superior, ou por outras palavras, se a propriedade tem uma função social, o titular está adstrito ao cumprimento de deveres”[5]. Nesse viés, destaca-se que a lei agrária é expressa ao dizer que os requisitos devem ser observados simultaneamente, pois a inobservância de qualquer um deles pode acarretar sanções ao proprietário, a exemplo da desapropriação para fins de reforma agrária e o aumento da tributação.
O legislador constituinte de 1988 também cuidou dos requisitos para atender a função social da propriedade rural no art. 186, no capítulo III, que versa sobre a Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, assim se manifestando:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Além disso a função social da propriedade é evidenciada no art. 5º, inc. XXII, da Constituição Federal, traduzindo-se em direito e garantia fundamental dos cidadãos, sendo, portanto, cláusula pétrea conforme o art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição Federal. De outra banda, a Carta Magna também incluiu a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, inc. III), na finalidade de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Chamamos a atenção que o princípio da função social da propriedade deveria ser ampliado não apenas para o uso da terra, mas para toda a atividade agrária, para todas as cadeias produtivas e sistemas agroindustriais, bem como ser observada e interpretada conjuntamente com a ideia de função social dos contratos, da empresa, da posse e demais bens materiais e imateriais que envolvem o setor agrário e seus sujeitos.
2. Princípio da justiça social
O princípio da efetivação da justiça social dita que as relações sociais devem atender a uma justiça social, através da garantia do acesso à terra para todos, bem como do equilíbrio das desigualdades existentes entre proprietários e trabalhadores. Nesse contexto, os contratos agrários, ao regular o uso e a posse da terra, são instrumentos de realização de uma efetiva justiça social. É a partir dele que decorrem determinadas ações de política agrícola, a exemplo do tratamento diferenciado dos produtores familiares, dos pequenos e médios produtores rurais, a impenhorabilidade da pequena propriedade rural etc.
3. Princípio da prevalência do interesse coletivo sobre o individual
É no princípio da prevalência do interesse coletivo sobre o individual ou princípio da supremacia da ordem pública que se manifesta o interesse Estatal em regular as relações agrárias, até mesmo como meio de se atingir à justiça social e a harmonia das relações no campo, através de normas cogentes que se sobrepõem as normas de cunho privado, prevalecendo sobre a vontade particular. Nos contratos agrários o referido princípio é verificado nas restrições à liberdade de contratar, por meio da imposição de normas protetivas aos arrendatários e aos parceiros-outorgados.
No crédito rural, o princípio se manifesta no direito dos produtores em prorrogar as dívidas agrícolas em caso de frustração de safra. Por sua vez, no contrato de integração agroindustrial, o princípio encontra-se presente nas normas de proteção do produtor rural integrado com relação à justa remuneração.
4. Princípio da reformulação da estrutura fundiária
Já o princípio da reformulação da estrutura fundiária visa a constante melhoria das relações no campo, proporcionando uma melhor distribuição da terra, a extinção de propriedades improdutivas ou antieconômicas, com a permanência na terra daqueles que a tornem produtiva. Importante destacar que o referido princípio está diretamente ligado àquelas demandas fundiárias do chamado 1º ciclo do agrarismo no Brasil, cuja preocupação principal está em realizar a regularização fundiária. É por tal motivo que o Estatuto da Terra originalmente fala em Política Fundiária, englobando diversos institutos, a exemplo da desapropriação para fins de reforma agrária das grandes propriedades improdutivas, assim como o combate aos minifúndios (“parvifúndios“). Por fim, jamais pode ser esquecido que a reformulação da estrutura fundiária (reforma agrária) não é permanente, sendo que o principal problema fundiário atual é a regularização fundiária.
5. Princípio do progresso econômico e social
Pelo princípio do progresso econômico e social as relações agrárias devem atender a um fim econômico, porém sem descuidar de atender aos interesses sociais. Tal princípio se correlaciona diretamente com princípio do desenvolvimento sustentável.
É por força do referido princípio, associado ao eixo produtivo da função social da propriedade e a previsão do dever de produção constante no art. 185 da Constituição, que é fundamental a análise agroeconômica dos empreendimentos rurais e das ações de política agrícola, uma vez que a exploração da atividade agrária deve sempre buscar garantir o progresso econômico de quem explora os imóveis rurais e isso também está correlacionado com o acesso dos produtores aos mercados.
Ademais, o princípio do progresso econômico e social está diretamente associada aos institutos do módulo rural, da propriedade familiar e ao combate dos minifúndios (“parvifúndios”).
Por decorrência lógica do princípio do progresso econômico e social, levando em consideração o atual contexto social, em que a maioria da população é urbana, não faz mais sentido falar em agricultura de subsistência ou formulações ideológicas que pregam retorno a um “modo de ser campesino”. Nesse sentido, cumpre questionar: se os produtores rurais praticassem atividade agrária de subsistência como a população urbana faria para se alimentar?
6. Princípio da privatização das terras públicas
Por fim, o princípio da privatização das terras públicas encontra-se materializado no art. 10 do Estatuto da Terra, que assim preceitua:
“Art. 10. O Poder Público poderá explorar direta ou indiretamente, qualquer imóvel rural de sua propriedade, unicamente para fins de pesquisa, experimentação, demonstração e fomento, visando ao desenvolvimento da agricultura, a programas de colonização ou fins educativos de assistência técnica e de readaptação.
§ 1° Somente se admitirá a existência de imóveis rurais de propriedade pública, com objetivos diversos dos previstos neste artigo, em caráter transitório, desde que não haja viabilidade de transferi-los para a propriedade privada.”
Note-se que o referido dispositivo deixa expresso que a exploração da atividade agrária nos imóveis agrários é uma atividade de natureza privada. Como consequência, deve-se proteger a liberdade e a livre iniciativa da atividade agrária pelos produtores rurais. Por decorrência, a exploração da atividade agrária, enquanto atividade econômica está diretamente vinculada aos preceitos constitucionais da Ordem econômica estabelecidos no art. 170 da Constituição Federal. Nesse sentido, a intervenção estatal deve se dar apenas na forma e nos limites estabelecido pela lei agrária, sobe pena de violação dos direitos dos produtores rurais.
Em síntese, a importância da observação de tais princípios se dá principalmente na aplicação e interpretação do Direito Agrário. Como ensina Paulo Torminn Borges: “ao aplicar qualquer texto do Direito Agrário, oriundo de suas fontes primárias ou de suas fontes secundárias, é inarredável que o interprete o faça como agrarista”[6]. Salientando-se, que devido ao caráter de ordem pública evidenciada em vários dos princípios citados, em análise ao fato concreto, os aplicadores do Direito têm obrigação de observá-los, inclusive podendo proceder ex officio, independentemente de provocação das partes.
(* o presente texto foi elaborado pelo Prof. Albenir Querubini)
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Notas:
[1] ÁVILA, Humberto. Teoria geral dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 70.
[2] LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do Direito Agrário. 2. ed., São Paulo: LTr, 1981, pp. 160-195.
[3] MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário brasileiro. 7. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 17.
[4] BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Direito Agrário, volume 1. 9. Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 21.
[5] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 76.
[6] BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos de direito agrário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 79.
Assista ao episódio:
*Confira abaixo a lista de materiais indicados para que você se aprofunde no estudo do Direito Agrário:
– REFLEXOS DA NOVA ORDEM CONTRATUAL CIVIL NOS CONTRATOS AGRÁRIOS (2005)
– Os ciclos do agrarismo e o Direito Agrário brasileiro
– Bases científicas do Direito Agrário
– A impenhorabilidade da pequena propriedade rural
Nesse episódio participam:
– Francisco Torma (instagram: @franciscotorma.adv @agrolei)
– Albenir Querubini (instagram: @albenirquerubini @direitoagrariocom)
O canal Direito Agrário Levado a Sério é um projeto dos Portais DireitoAgrário.com e AgroLei.com, com apoio da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.
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Episódios anteriores:
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 2: Os Ciclos do Agrarismo no Brasil
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 3: A atividade agrária como objeto do Direito Agrário
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 4: O dever de produção agrária
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 5: A função ambiental da atividade agrária
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 7: Competência legislativa em matéria agrária
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 8: O Direito Agrário e a sua origem