quinta-feira , 28 março 2024
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Direito Agrário

10 RAZÕES PELAS QUAIS A MP 811 PREJUDICA O PRODUTOR RURAL AO DISPOR SOBRE CONTRATOS AGRÁRIOS

por Albenir Querubini e Francisco Torma.

 

A Medida Provisória 881/2019, conhecida por “MP da Liberdade Econômica”, trouxe uma série de avanços no sentido de desburocratizar a gestão pública, fomentando assim o desenvolvimento econômico através do fomento das atividades empresariais. Entretanto, uma inclusão posterior ao seu texto original tem causado polêmica no mundo do direito agrário. O art. 34 da MP inclui um parágrafo no art. 92 do Estatuto da Terra, que ficaria assim:

 

 Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa, nos termos desta Lei.

(…)

§ 10 – Prevalece a autonomia privada nos contratos agrários, exceto quando uma das partes se enquadre no conceito de agricultor familiar e empreendedor familiar rural, conforme previsto o art. 3º da Lei 11.326, de 24 de julho de 2006.

 

Mas o que essa alteração significa na prática para o produtor rural? É isto que demonstraremos nos itens que seguem:

1 – INSEGURANÇA JURÍDICA: O Estatuto da Terra é lei que traz várias regras aplicáveis aos contratos agrários. Na tramitação da MP nº 881 no Congresso, pretende-se inserir parágrafo que, genericamente, libera os contratantes da observância destas regras. Justamente por não especificar quais as regras que poderiam deixar de ser observadas no contrato é que a mudança proposta traz insegurança jurídica aos contratantes. Ninguém teria certeza, até o Poder Judiciário se manifestar em definitivo, sobre o alcance da alteração proposta, bem como sobre a sua validade frente aos demais dispositivos legais previstos no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 – que na parte dos contratos agrários sofreu atualização pela Lei nº 11.443/2007), Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966 e Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966. De acordo com dados do Censo de 2006, a medida atingiria diretamente cerca de 100.000 (cem mil) arrendatários e 40.000 (quarenta mil) parceiros-outorgados, sejam eles pequenos, médios ou grandes produtores rurais. Em algumas cadeias produtivas, como é o caso da cadeia produtiva do arroz, no Estado do Rio Grande do Sul, cerca de 70% dos produtores rurais exploram a atividade na condição de arrendatário e parceiro-outorgado, sendo diretamente atingidos pela respectiva medida, caso aprovada.

2 – PRODUTOR FAMILIAR COMO “PERSONA NON GRATA”: A segunda parte do parágrafo proposto deixa de fora do alcance da nova regra os contratos onde uma das partes é produtor familiar. Desta forma, os contratos continuariam rígidos para esta categoria de produtor e flexível para os demais. Assim, é possível prever que os produtores familiares seriam parceiros de negócios a ser evitados pelos demais contratantes, justamente por trazerem consigo o rigor contratual que os demais estariam dispensados de observar. Tal medida pode acarretar êxodo rural das famílias que hoje possuem seu sustento sem serem proprietárias, diante da consequência direta da dificuldade de acesso a terra por conta da medida discriminatória inserida na MP da Liberdade Econômica.

3 – INJUSTIFICADA DISCRIMINAÇÃO DO PRODUTOR FAMILIAR: A discriminação da agricultura familiar somente se justifica para fins de políticas agrícolas (a exemplo do PRONAF e Programas de Aquisição de Alimentos, Previdência Social), sendo que não há justificativa para tratamento diferenciado dos demais produtores rurais nas questões contratuais, a exceção da proteção da continuidade do contrato pactuado nas hipóteses da morte do chefe da família, tal como hoje previsto no parágrafo único do art. 26 do Decreto nº 59.566/1966. Portanto, no presente ponto a proposta inserida na MP reveste-se de tese ideológica que revela desconhecimento científico do Direito Agrário.

4 – FRAGILIZAÇÃO DO ARRENDATÁRIO/PARCEIRO-OUTORGADO: O Estatuto da Terra busca criar condições de segurança e tranquilidade para o arrendatário/parceiro-outorgado, contratante que efetivamente produz as riquezas na terra. A alteração proposta fragiliza de inopino o produtor, subtraindo-lhe garantias legais que lhe permitem o exercício pleno da atividade.

5 – ENFRAQUECIMENTO DA RELAÇÃO DO PRODUTOR COM A TERRA: O Estatuto da Terra prevê tempo mínimo para os contratos, que obrigatoriamente devem ser respeitados. Isto para que a terra tenha seu melhor potencial produtivo com a observância das melhores técnicas pelo produtor, as quais demandam mais tempo e conhecimento da área cultivada. Respectiva regra tem por fundamento a preservação e o uso racional dos recursos naturais, estando em conformidade com a previsão constitucional. Sem que exista o tempo mínimo ou regras claras sobre hipóteses em que é possível a exploração em prazos menores àqueles atualmente previstos na lei agrária, os contratos poderão ser entabulados por períodos muito menores, gerando uma alternância muito grande de arrendatários/parceiros-outorgados sobre a área, sem que seja possível ocorrer uma íntima relação entre o produtor e a terra. É como se os municípios alternassem de prefeito todo ano: quando o gestor começar a entender o município, já é momento de dar lugar a outro.

6 – INSUCESSO NA GERAÇAO DE NOVOS EMPREGOS: A lógica da MP nº 881/2019 é a chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, com o propósito de desburocratizar a relação entre o Estado e os cidadãos, reduzindo entraves burocráticos colocados pela Administração Pública, a exemplo de taxas, procedimentos administrativos, licenciamentos, alvarás etc. Busca-se com tal medida criar um melhor ambiente de negócios e impulsionar a economia com criação de empregos. Nesse sentido, a inserção do dispositivo sobre os contratos agrários vai na contramão da ideia originária da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, pois trará insegurança jurídica, criará conflitos desnecessários entre proprietários e produtores rurais, além de viabilizar a discriminação dos agricultores familiares. Portanto, a inserção do art. 54 no Relatório da MP nº 881 não vai contribuir para a geração de empregos e, ainda, poderá impulsionar o êxodo rural, contribuindo para o agravamento de problemas sociais.

7 – INSUCESSO NO ACESSO À TERRA E REDUÇÃO DAS MARGENS DE LUCRO DOS CONTRATANTES: Assim, como não contribuirá para a criação de novos empregos, deve ficar claro que a inserção do art. 54 no Relatório da MP nº 881 também não significará maior acesso à terra para quem pretende empreender na atividade agrária. Pelo contrário, vai reduzir o acesso aos produtores familiares, além de favorecer o aumento do preço cobrado pelos arrendamentos, refletindo diretamente na perda de renda dos produtores arrendatários. Remotamente, o encarecimento do preço dos arrendamentos (efeito imediato) também terá reflexo no endividamento de arrendatários (efeito remoto), pois reduz a margem da renda/lucro de quem explora a atividade agrária sem ser proprietário.

8 – AUSÊNCIA DE DADOS PARA JUSTIFICAR A INSERÇÃO DOS CONTRATOS AGRÁRIOS PELA MP DA LIBERDADE ECONÔMICA: A medida introduzida na MP nº 881/2019 não resolverá questões tais como a possibilidade fixação do preço do arrendamento rural em produtos sem caracterizar cláusula nula para fins de propositura de ação de despejo por inadimplemento, prazo dos contratos, direito de retomada sem a observância das formalidades de notificação premonitória válida, notificações para exercício de preferência, retenção de benfeitorias, etc. Nesse sentido, faz-se necessária elaboração de estudo por intelectuais da matéria (agraristas) e debate com entidades de produtores rurais e demais interessados sobre quem recairão os efeitos da legislação agrária. Importante salientar que o argumento genérico da necessidade de alteração da legislação contratual agrária brasileira por “estar ela defasada”, sem a apresentação de critérios e justificativas técnicas não se sustenta, pois basta uma simples comparação em sede de direito agrário comparado, pegando como exemplo a lei portuguesa de arrendamentos aprovada em 2009 (Decreto-Lei nº 294, de 13 de outubro de 2009), para demonstrar que a lei agrária hoje vigente no Brasil não é assim tão protetiva quanto os autores da proposta da MP induzem como verdade. Nesse sentido, a lei portuguesa prevê como prazo mínimo 7 anos (no Brasil, o prazo mínimo é de 3 anos), fixação do preço e pagamento exclusivamente em dinheiro (no Brasil, a lei prevê a fixação em dinheiro e faculta a possibilidade de pagamento em produtos) e retomada com notificação por prazo mínimo de 1 ano (enquanto que pela lei brasileira, o prazo é de 6 meses antes do término do prazo contratual ou de sua renovação). Diante disso, qualquer alteração sem embasamento teórico e prático é temerário e pode ser prejudicial à segurança jurídica.

9 – TÉCNICA LEGISLATIVA INADEQUADA: É fato que a legislação dos contratos agrários necessitam de atualização no sentido de modernizar seu conteúdo, abrangendo soluções como a possibilidade de fixação do preço do contrato em produto ou flexibilidade quanto aos prazos mínimos; bem como a eliminação de formalidades, a exemplo da necessidade de notificação premonitória em cartório hoje prevista para o exercício do direito de retomada. Entretanto, essa alteração deve ser feita por lei própria, indicando claramente quais são os direitos e deveres dos contratantes, a fim de evitar incertezas e retrocessos. A alteração via Medida Provisória impede o pleno debate e tampouco se justifica, posto que não existe urgência alguma na matéria. Além disso, na redação original da MP, elaborada pela competente equipe do Min. Paulo Guedes, houve o cuidado para não dispor sobre questões de direito agrário, sendo que o § 1º do art. 1º da MP é expresso que seus dispositivos serão observados “na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente”. Desta forma, além de acrescentar inovação refutada em sua redação original, é possível que esta alteração por MP, se efetivada, venha a ser anulada futuramente, trazendo ainda mais insegurança ao produtor.

10 – INCONSTITUCIONALIDADES DA MEDIDA: O objeto do contrato agrário recai sobre bem constitucionalmente tutelado pelas disposições referentes à função social da propriedade e da posse. Portanto, qualquer alteração genérica da legislação dos contratos agrários sem precisar parâmetros incorre em vício de constitucionalidade material. Além disso, ainda há de alertar que a referida disposição por inserção na MP também incorrerá em inconstitucionalidade por vício de iniciativa legislativa.

Desta forma, resta inequívoco que a alteração do Estatuto da Terra pela MP da Liberdade Econômica, de forma afoita e sem discussão prévia com os produtores rurais atingidos pela medida, somente trará prejuízos a quem efetivamente produz nossas riquezas e alimentos, justamente quem precisa trabalhar com segurança e tranquilidade.

Não nos resta outro caminho senão alertar a sociedade e a comunidade jurídica dos perigos desta alteração legislativa e apelar para o bom senso dos responsáveis pela matéria, para que, em respeito aos nossos produtores rurais, retirem da MP o art. 54, possibilitando o adequado debate sobre as necessárias modificações na legislação agrarista, sempre ouvindo os efetivos destinatários da norma.

 

Albenir Querubini – Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFSM, Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional e Mestre em Direito pela UFRGS. Professor de Direito Agrário e Ambiental, lecionando junto aos cursos de Pós-Graduação do I-UMA, UniRitter e Faculdade IDC. Membro da União Mundial dos Agraristas Universitário (UMAU) e Vice-Presidente da União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU).

 

Francisco Torma – Advogado agrarista com atuação especializada em questões envolvendo crédito rural e financiamento da atividade agrária. Coordenador do Portal AgroLei (www.agrolei.com.br). Professor de crédito rural na Especialização em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio do I-UMA. É membro da UBAU – União Brasileira dos Agraristas Universitários.

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