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Direito Agrário

A fixação do preço do arrendamento em produtos: comentários ao entendimento adotado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça do Brasil no julgamento do Recurso Especial nº 1.266.975/MG

Por Albenir Querubini*

A questão do preço e do pagamento do contrato de arrendamento rural é tema de recorrente controvérsia jurídica, especialmente pela divergência existente entre o entendimento adotado pelos Tribunais de Justiça dos Estados em relação ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Isso ocorre porque, na prática, os produtores costumam fixar o valor do preço em produtos, enquanto que a legislação prevê que a fixação do preço ou remuneração do contrato agrário de arrendamento rural deve se dar em dinheiro, podendo o pagamento se dar em dinheiro ou no seu equivalente em produtos.

O preço no arrendamento rural consiste na quantia atribuída pelos contratantes a ser paga pelo arrendatário ao arrendador a título de remuneração pela cessão da posse do imóvel agrário, em decorrência da vantagem obtida com a exploração da terra, também denominado aluguel. Não deve ser confundido com o pagamento, que é forma de extinção das obrigações, correspondendo ao cumprimento da obrigação avençada no contrato. Nesse caso, o pagamento corresponderá ao cumprimento da obrigação caracterizada pela entrega do valor do aluguel na quantia, na forma e no prazo ajustados no contrato de arrendamento rural.

A norma agrária brasileira define que o preço do arrendamento deve ser fixado em quantia fixa em dinheiro, sendo possível que o pagamento se dê em produtos. Nesse sentido, ressalta-se que a opção do pagamento do preço no arrendamento é obrigação facultativa ao arrendatário, sendo que, uma vez convencionada, não pode o arrendador se opor ao recebimento na forma de pagamento escolhida pelo arrendatário, ou mesmo exigir uma forma ou outra.

É importante mencionar que a razão da opção do legislador agrário brasileiro, desde a elaboração do Estatuto da Terra e da legislação agrária complementar aplicável aos contratos agrários (Lei nº 4.749/66 e Decreto nº 59.566/66), sempre teve como base proteger o arrendatário (considerado como hipossuficiente na relação contratual agrária) de prejuízos decorrentes da falta de certeza do preço a ser pago pelo uso da terra, mormente pela grande variação do preço dos produtos agrícolas. Com isso, a fixação do preço do arrendamento em quantia fixa em dinheiro resguardaria a certeza do valor a ser pago ao arrendador, evitando que o arrendatário fosse obrigado a entregar quantias maiores de produtos se a cotação do período fosse baixa.

Ocorre que as disposições referentes aos contratos agrários de arrendamento e parceria rural, previstas nos arts. 95 e 96 do Estatuto da Terra, sofreram alteração pela Lei nº 11.443, de 5 de janeiro de 2007, com a intenção de atualizar suas disposições. Especificamente ao contrato de arrendamento rural, a Lei nº 11.443/07 trouxe nova redação ao art. 95, inc. XI, “a”, do Estatuto da Terra, dispondo que deverá ser obrigatoriamente observado os “limites da remuneração e formas de pagamento em dinheiro ou no seu equivalente em produtos”, de acordo com a regulamentação da lei, a qual se dá pelo art. 18 do Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966[1]. Note-se que, se o legislador teve a intenção de flexibilizar a legislação agrária para permitir a fixação dos contratos de arrendamento rural em produtos, de forma contrária ao disposto no art. 18 do Decreto nº 59.566/66, em nenhum momento o fez de forma explicita, pecando pela falta de clareza na atual redação do Estatuto da Terra.

Por conta disso, o comando contido no art. 95, inc. XI, “a”, do Estatuto da Terra vem sendo objeto de interpretação, tanto por parte da doutrina quanto pela jurisprudência dos Tribunais Estaduais, no sentido de que o art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66 encontra-se superado pela nova redação conferida pela Lei nº 11.443/07, possibilitando a aceitação de contratos de arrendamento fixados em produtos como válidos.

Para demonstrar a existência de divergência existente na interpretação da legislação agrária brasileira, colaciona-se a ementa de recentes julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que reconhecem como válida a fixação do preço do arrendamento em produto, inclusive para o fim do ajuizamento de ação de despejo pela hipótese de inadimplemento do arrendatário:

APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATOS AGRÁRIOS. ARRENDAMENTO RURAL. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO E DESPEJO. ARRENDAMENTO RURAL. DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO. PROVA DO PAGAMENTO. Na ação que visa à rescisão de contrato de arrendamento rural, por ausência de pagamento dos aluguéis, uma vez demonstrado o fato constitutivo do direito do autor, ao réu incumbe fazer prova da quitação por aplicação da regra contida no inc. II do art. 333 do CPC. Ausente comprovação do pagamento impunha-se a rescisão do contrato e o consequente despejo. – Circunstância dos autos em que se impõe manter a sentença recorrida. RECURSO DESPROVIDO. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70068714161, Décima Oitava Câmara Cível, Relator: Desembargador João Moreno Pomar, Julgado em 16/06/2016)[2]

CONTRATOS AGRÁRIOS. AÇÃO DE CONHECIMENTO CONDENATÓRIA. ARRENDAMENTO RURAL. PAGAMENTO DO PREÇO. Não há razões para modificar a sentença, mormente levando em consideração que os costumes da região onde a sentença foi prolatada é de que o pagamento, em contratos dessa natureza, seja feito em sacas de soja. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70068294172, Décima Nona Câmara Cível, Relator: Desembargador Voltaire de Lima Moraes, Julgado em 16/06/2016)

Porém, em sentido contrário, a 3ª Turma Recursal do Superior Tribunal de Justiça, na sessão do dia 10/03/2016, reafirmou a jurisprudência firmada em precedentes da Corte acerca do polêmico tema da validade da cláusula do contrato de arrendamento fixada em produtos, no julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1.266.975/MG. No presente caso, a 3ª Turma destacou que “é nula cláusula contratual que fixa o preço do arrendamento rural em frutos ou produtos ou seu equivalente em dinheiro, nos termos do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 54.566/66”. Eis a ementa do referido julgado:

RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À AÇÃO MONITORIA. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. FIXAÇÃO DE PREÇO. CLÁUSULA. NULIDADE. PROVA ESCRITA. INSTRUÇÃO DO FEITO. POSSIBILIDADE.

1. Discute-se nos autos se contrato de arrendamento rural em que se estipulou o pagamento da dívida mediante entrega de produtos agrícolas  serve  como “prova escrita sem eficácia de título executivo”, hábil a amparar propositura de ação monitória.

2. A teor do disposto no art. 1.102-A do Código de Processo Civil, a prova escrita capaz de respaldar a demanda monitória deve apresentar elementos indiciários da materialização de uma dívida decorrente de uma obrigação de pagar ou de entregar coisa fungível ou bem móvel.

3. É nula cláusula contratual que fixa o preço do arrendamento rural em frutos ou produtos ou seu equivalente em dinheiro, nos termos do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66. Essa nulidade não obsta que o credor proponha ação de cobrança, caso em que o valor devido deve ser apurado, por arbitramento, em liquidação. Precedentes.

4. O contrato de arrendamento rural que estabelece pagamento em quantidade de produtos pode ser usado como prova escrita para aparelhar ação monitória com a finalidade de determinar a entrega de coisa fungível, porquanto é indício da relação jurídica material subjacente.

5. A interpretação especial que deve ser conferida às cláusulas de contratos agrários não pode servir de guarida para a prática de condutas repudiadas pelo ordenamento jurídico, de modo a impedir, por  exemplo,  que  o credor exija o que lhe é devido por inquestionável descumprimento do contrato.

6. Recurso especial não provido.

(Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, REsp. nº 1266975/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 10/03/2016, DJe 28/03/2016)

Embora o REsp nº 1.266.975/MG tenha reafirmado a jurisprudência da Corte, é importante destacar que a própria 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Agravo Regimental no REsp nº 1.062.314/RS, julgado na data de 16/08/2012, havia mantido decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entendendo pela possibilidade da fixação do preço do arrendamento rural em produtos (no caso, foi fixado em “quilos de vaca viva”), com base em princípios e nos usos e costumes da Região[3].

Tecnicamente, a inobservância da fixação do preço em dinheiro traz como principal problema a impossibilidade de o arrendador (em regra o proprietário da terra) manejar ação de despejo contra o arrendatário inadimplente, ou seja, é um problema cujo maior reflexo se dá no campo processual, uma vez que para o ajuizamento da ação de despejo se faz necessário título líquido, certo e exigível. Isso ocorre uma vez que a legislação dos contratos agrários não estabelece critérios para a liquidação do preço fixado em produtos, a exemplo da previsão legal estabelecida para a Cédula de Produto Rural financeira (CPRf)[4].

Salienta-se que tal problema ainda poderá ser objeto de muitas demandas judiciais, pois muitos produtores ainda ignoram o texto legal e continuam a seguir o costume de fixar o preço da remuneração dos arrendamentos rurais em produtos (ex.: sacas de soja por hectare, quilos de boi, etc). Além disso, deve ser destacado que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre a questão levando em consideração as alterações trazidas pela Lei nº 11.443/07 ao art. 95, inc. XI, “a”, do Estatuto da Terra, inclusive se manifestando sobre a superação ou não do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 54.566/66.

Para evitar problemas aos contratantes diante de um cenário de insegurança jurídica, recomenda-se que os contratantes sigam observando a regra de fixar o preço do arrendamento em quantia fixa em dinheiro, com a possibilidade do pagamento se dar em produtos (se for o caso). Com isso, os produtores rurais evitam futuros gastos de tempo e dinheiro com demandas judiciais que possam trazer prejuízos ainda maiores do que o inadimplemento do arrendatário ou, até mesmo, inviabilizar o exercício do direito de retomada do imóvel agrário cedido em arrendamento. Já para os casos de inadimplemento nos quais o contrato de arrendamento foi firmado em produtos, a solução prática sugerida aos arrendadores é o ajuizamento de ação de cobrança cumulada com reintegração de posse ou, conforme o caso, ação monitória, lembrando que o arrendatário inadimplente continua obrigado a pagar pelas vantagens obtidas pelo uso do imóvel cedido em arrendamento, sob pena de atentar contra a função social dos contratos e a boa-fé contratual.

Por fim, destaca-se que a solução definitiva para o problema passa por uma necessária modificação legislativa, a qual pode ocorrer, inclusive, por atualização do Regulamento dos contratos agrários (ou seja, pela alteração do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 54.566/66). Nesse sentido, como sugestão de lege ferenda e conforme referido anteriormente, o legislador poderia adotar critério de liquidação tal qual previsto hoje para a Cédula de Produto Rural financeira, prevista no art. 4ª- A da Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, o qual foi incluído pela Lei nº 10.200, de 14 de fevereiro de 2001[5]. Desta forma, possibilitar-se-ia que os contratantes passem fixar o preço do arrendamento rural em produtos quando constar cláusula de liquidação financeira válida, mediante adoção de fórmula ou critério de apuração da quantia fixada em produtos para valor em dinheiro.

Notas:

* Professor de Direito Agrário, Mestre em Direito pela UFRGS, Vice-Presidente da União Brasileira dos Agraristas Universitários-UBAU e Membro da União Mundial dos Agraristas Universitários – UMAU. Coordenador do Portal DireitoAgrário.com (www.direitoagrario.com). E-mail: [email protected].

[1] Assim prevê o referido dispositivo do Regulamento: “Art 18. O preço do arrendamento só pode ser ajustado em quantia fixa de dinheiro, mas o seu pagamento pode ser ajustado que se faça em dinheiro ou em quantidade de frutos cujo preço corrente no mercado local, nunca inferior ao preço mínimo oficial, equivalha ao do aluguel, à época da liquidação.
Parágrafo único. É vedado ajustar como preço de arrendamento quantidade fixa de frutos ou produtos, ou seu equivalente em dinheiro”.
[2] No respectivo caso, conforme consta no relatório: “Aduziu o autor ter celebrado com todos os réus um contrato de arrendamento rural de 400 Ha, e com o primeiro réu, outro contrato de arrendamento de uma área de 300Ha. Referidos contratos iniciaram em 2002, e foram renovados por mais cinco anos em 30/04/2007 (até 30/04/2012. Ficou fixado como pagamento nos contratos 7,14 sacas de soja por hectare plantado, totalizando 2856 sacas por ano; ou 6 sacas de soja, nos anos em que decretado estado de calamidade no município. Referiram que os pagamentos sempre ocorreram de forma fracionada, sendo que atualmente, os réus estão inadimplentes em 6.635,60 sacas de soja, e se negam, mesmo notificados, a desocupar as áreas”.
[3] Acerca da questão, destacamos a pesquisa elaborada por Alexandre JAENISCH MARTINI em: “Contrato de arrendamento: o preço em produto sob um novo paradigma interpretativo”, monografia apresentada em 2015 como trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio do Instituto Universal de Marketing em Agribusiness (I-UMA).
[4] A Cédula de Produto Rural – CPR é título de crédito rural instituída pela Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, a qual é representativa de uma promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantia cedularmente constituída. Por sua vez, a Cédula de Produto Rural financeira – CPRf trata-se de modalidade incluída pela Lei nº 10.200, de 14 de fevereiro de 2001, a qual tem por característica a possibilidade de liquidação financeira, tornando o título líquido, certo e exigível mediante o resultado da multiplicação do preço, apurado segundo a utilização de índice de preço apurado por instituições idôneas e de credibilidade junto às partes que tenham divulgação periódica, preferencialmente diária, com ampla divulgação ou facilidade de acesso (conforme previsto no art. 4 -A da Lei nº 8.929/1994).
[5] Assim consta previsto para a CPRf:
“Art. 4 A. Fica permitida a liquidação financeira da CPR de que trata esta Lei, desde que observadas as seguintes condições:
I – que seja explicitado, em seu corpo, os referenciais necessários à clara identificação do preço ou do índice de preços a ser utilizado no resgate do título, a instituição responsável por sua apuração ou divulgação, a praça ou o mercado de formação do preço e o nome do índice;
II – que os indicadores de preço de que trata o inciso anterior sejam apurados por instituições idôneas e de credibilidade junto às partes contratantes, tenham divulgação periódica, preferencialmente diária, e ampla divulgação ou facilidade de acesso, de forma a estarem facilmente disponíveis para as partes contratantes; (…)
§ 1 A CPR com liquidação financeira é um título líquido e certo, exigível, na data de seu vencimento, pelo resultado da multiplicação do preço, apurado segundo os critérios previstos neste artigo, pela quantidade do produto especificado”.

[OBSERVAÇÃO: O respectivo artigo foi publicado originalmente na Revista Iberoamericana de Derecho Agrario – Número 5 – Febrero 2017, disponível em: http://www.ijeditores.com.ar/pop.php?option=articulo&Hash=895c0c96a3625ce25303f69e48d10a0c].

 

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