quinta-feira , 21 novembro 2024
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Direito Agrário - Foto: Marcelo Valente Selistre

Sentindo na carne o Abigeato!

por Alexandre Valente Selistre.

A cada madrugada de lua cheia que ilumina a pampa, cresce o receio dos pecuaristas de encontrarem alambrados rebentados e deitados, focos de lanternas e faróis, rastros de veículos sobrecarregados ou carcaças mutiladas pelos potreiros das estâncias gaúchas. A insegurança e a indignação confirmam as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública do Estado, de que o abigeato cresceu em 13,4% em relação ao último ano, pois mais de 8,7 mil animais foram furtados, causando um dano de R$ 70,6 milhões. Porém, estes números não expressam a realidade do campo, já que se baseiam na quantidade de boletins de ocorrências registrados. De fato, frente à regular impunidade e falta de investigação, porque uma infinidade de inquéritos é arquivada sem autoria definida e somente 5,8% dos casos são esclarecidos. Os produtores rurais deixaram de crer que a propriedade privada e a segurança no meio rural sejam prioridade no Rio Grande do Sul.

No final de julho, foram veiculadas reportagens de Giovani Grizotti e Glaucio Oliveira, da RBSTV, nos programas Fantástico e Jornal do Almoço, sobre a subtração de animais no campo, ainda vivos ou abatidos, clandestinamente, denominada como crime de abigeato.

Diante do Estatuto do Desarmamento e o deslocamento de efetivo da Brigada Militar para a Capital, os bandidos, que assaltam na cidade, parece, dirigiram-se para o campo. O destemor dos criminosos, estimulados pela ausência e despreparo de vigilância policial, pela distância e a baixa densidade demográfica, causadoras de isolamento do criador indefeso, lhe expõe à mercê da violência.

O abigeato é tipificado como a subtração de animais (domesticáveis, semoventes, de produção e com valoração econômica) no campo, para negociação. Ocorre, geralmente, com animais de manada, de criação ou engorde, quando os ladrões se prevalecem da escuridão, do período noturno, do descampado e da longinquidade que dificultam o controle e facilitam a execução do delito, ocultando a identidade dos malfeitores. Os prejuízos não afetam tão só os proprietários rurais, passam por toda a cadeia produtora de carne, atingem o mercado e podem culminar na mesa da população, tratando-se, pois, de crime contra o patrimônio, a economia e a saúde pública!

Pontualmente é necessário esclarecer uma diferenciação. Uma circunstância é o denominado furto famélico, quando alguém pobre, forçado pela fome ou a privação urgente e considerável de alimentar sua própria família, carneia, furtivamente, e de forma eventual, uma ovelha ou uma galinha. Flagrado, perante o Princípio da Insignificância, ou o Estado de Necessidade, acaba sem punição, tendo sua ilicitude ou sua antijuricidade, excluída legalmente… Outra, diametralmente oposta, é a situação do abigeato, pois diante da Lei nº 13.330/2016, tornou-se qualificadora aos crimes de furto de animais (o § 6º do art. 155) e acréscimo de espécie de receptação (o art. 180-A), no Código Penal, para combater as quadrilhas de abigeatários que estão se formando.

Esta legislação pretende punir toda a cadeia de ações criminosas, desde quem vigia, para possibilitar a prática da ilicitude, até quem vende o produto da mesma. A receptação, no abigeato, constitui-se na aquisição, recebimento, transporte, condução ou ocultação, depósito ou comercialização de reses, vivas ou mortas clandestinamente, inteiras ou fracionadas, que o receptador saiba ser produto de crime. Tem a intenção de preservar a saúde do consumidor, porque carne barata, sem procedência, nem fiscalização ou inspeção, pode estar imprópria ao consumo, sem controle de qualidade, inclusive, porque o animal pode ter sofrido cruelmente, não tendo sido observada carência por medicamentos ou vacinas, recentemente ministrados, até mesmo por condições precárias de carneação, transporte ou acondicionamento, sem higiene alguma.

O Abigeato vem se alastrando, diante da crise e da impunidade, que compensam a prática e o ingresso do crime organizado no campo. Aproveitando-se da precarização das relações trabalhistas rurais, com o desemprego (diante dos altos encargos), o êxodo rural e à mecanização (efeito direto para driblar a falta de mão de obra) é que foram diminuindo o número de funcionários. O produtor não tem outra opção, senão os contratos temporários, favorecendo que os abigeatários possam recrutar, estes ex-empregados, como olheiros, fornecendo informações valiosas: horários, rotina, caminhos e locais onde tem gado gordo. Beneficiando-se da crise, também aliciam profissionais carniceiros experientes, que matam e destrincham animais com espantosa velocidade e crueldade, pois não têm tempo a perder. Em uma só noite, abatem dezenas de reses, inclusive vacas prenhes, usando armas de fogo e caminhões clonados, para o transporte, isto quando não ameaçam, covardemente, quem reside na estância.

A recente iniciativa do legislador, no sentido de intimidar o abigeato, viria ao encontro dos anseios dos criadores. Todavia, esta alteração legislativa não alcança, na prática, seu intuito, porque, na maioria dos casos concretos, que chegam aos tribunais, o furto de gado é praticado durante o repouso noturno, por mais de um criminoso, caracterizando-se concurso de agentes, além de ser perpetrado com o rompimento de obstáculo (corte do aramado), circunstâncias que qualificariam a pena. Entretanto, ao estabelecer o novo § 6º, ao art. 155, do Código Penal, criando a figura específica do abigeato, a pena prevista passou a ser de prisão de 2 a 5 anos de reclusão, quando, antes da alteração legislativa, estas qualificadoras, para qualquer crime de furto, poderiam ser aplicadas em até 8 anos de reclusão!

Em relação à configuração do crime de receptação de animais, que agora requer “a finalidade de produção ou comercialização”, acaba por privilegiar aquele que exerce a atividade comercial ou industrial, porque, antes, sua conduta era enquadrada no § 1º do art. 180 do Código Penal, punível com reclusão de 3 a 8 anos, independentemente do objeto material do crime. É bem verdade que o projeto de lei previa a mesma pena máxima quando da aprovação na Câmara dos Deputados, mas, lamentavelmente, a modificação, pelo Senado, resultou em torna-la mais benéfica ao ladrão e ao receptador!

A situação, para os interesses dos pecuaristas, da economia e até mesmo da saúde dos consumidores, na verdade, ficou pior.

Desassistido pelo Poder Público, o movimento dos produtores rurais tem sido no sentido de se defenderem, como podem. Assim, a vigilância com câmeras e seguranças particulares (que nem armadas poderiam estar),  tornou-se alternativa para enfrentar o abigeato. Mas o esforço para obter porte, armamento e munição, tem ocasionado, cada vez mais, a clandestinidade e a criação de milícias…

Um avanço foi a licença do Porte de Arma Rural para a defesa da família. Porém, um alerta deve ser feito: a lei, como está redigida, em princípio, não garante o que seria a Legítima Defesa do patrimônio, pois, para o Direito, deve haver uma proporção entre o bem defendido (legitimamente) e o bem atingido (atacado pela injusta agressão). Não haveria proporcionalidade entre o animal abatido (o objeto do crime) e a vida do abigeatário (aquele que seria o alvo da agressão defensiva). Naturalmente, um abigeatário portará, no mínimo, uma faca, mas o fazendeiro, estando no uso de arma de fogo ou utilizando-se de uma escolta armada, contratada para este fim, caso haja morte, pode acabar por se envolver na esfera criminal, por porte ilegal de arma de fogo, pelo excesso de defesa ou formação de milícia privada.

Infelizmente, não há uma forma legal e eficaz de se defenderem do abigeato!

Para que as forças-tarefas da Brigada Militar possam ter efetividade, mapeando os abigeatos, identificando marginais, indicando matadouros suspeitos e açougueiros receptadores, para que sofram supervisão dos órgãos de saúde municipais e estaduais, o Boletim de Ocorrência é o único recurso dos pecuaristas. Melhores armamentos, veículos, contingente e soldos mais adequados, também seriam relevantes… Mesmo diante da situação financeira do Estado, com toda esta precariedade, as operações têm promovido ações positivas (em ambos os sentidos), realizando prisões e fiscalizações consideráveis.

Foto: Brigada Militar / Divulgação

Cobrar dos Municípios e do Estado fiscalizações sanitárias e inspeções veterinárias, o transporte mediante expedição de GTA’s (Guias de Trânsito de Animais) regulares, a rastreabilidade e a certificação são possibilidades, de modo que, de fato, basta estar dentro da lei, para que se possam alcançar melhores resultados.  Além disto, a mobilização, fortalecendo os Sindicatos Rurais, a troca de ideias e debates, e o monitoramento, seja até por contatos com celular, ao identificar movimento furtivo, noticiando às autoridades, são fundamentais para frear este crime com mais rigor.

O Ministério da Justiça elabora um plano nacional de combate ao abigeato. As estratégias de monitoramento de rebanho por satélite e reforço do policiamento, talvez mediante suporte da Força de Segurança Nacional, são cogitados, antes que este delito venha a ser totalmente absorvido pelo crime organizado e se perca completamente o controle.

A bancada ruralista tem realizado projetos de lei interessantes, pretendendo desestimular o abigeato, como a vedação de crédito rural àqueles que são condenados por estes crimes, o que, todavia, tem esbarrado nos legisladores urbanos e pouco versados no Direito Penal, que desconhecem o cenário criminal no campo e a aplicabilidade da pena. Houvessem exacerbado a punição do abigeato, fosse pela manutenção da pena base máxima anterior, fosse para incidir como causa de aumento de pena, para finalizar o cálculo da condenação, e poderia haver a adequada repreensão e resposta à ousadia temerária dos abigeatários.

Notícias na mídia diminuem o descaso do consumidor urbano, ignorante da conjuntura que o pecuarista vem enfrentando isoladamente. O abigeato atinge toda a população, afronta à segurança alimentar, gera evasão de tributos e relativiza o mercado da produção de carne.

Portanto, concluindo, quero esclarecer que, como pecuarista que já sentiu a impotência frente a uma carcaça, sangrando no pasto, “sentindo na carne” de meus animais, não pretendo passar o conceito de que muito pouco podemos fazer, ao contrário, a conscientização dos nossos direitos é o primeiro passo para diminuirmos ou erradicarmos o abigeato.

Alexandre Valente Selistre – Advogado agrarista, Especialista em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio pelo I-UMA e produtor rural. É membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.

Direito Agrário

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