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Estradas rurais: particulares podem ajuizar ação de reintegração de posse para garantir seu acesso a bem público de uso comum

Um particular pode ajuizar ação de reintegração de posse para garantir seu acesso a bem público de uso comum, segundo entendimento unânime da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso envolvendo uma estrada vicinal no Triângulo Mineiro.

Para a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, o usuário que se sentir impedido ou prejudicado na utilização de um bem público de uso comum por ato praticado por outro usuário poderá ajuizar ação judicial para restabelecer seu direito.

No entendimento da relatora, nesse caso vale o disposto no artigo 1.199 do Código Civil, segundo o qual, “se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores”.

Cerca na estrada

O caso em julgamento envolvia uma ação de reintegração de posse ajuizada por moradores para garantir passagem por uma estrada municipal na zona rural de Conceição das Alagoas, cidade a 50 quilômetros de Uberaba, no Triângulo Mineiro.

O tráfego local foi prejudicado depois que um fazendeiro modificou a cerca de sua propriedade, invadindo parte da estrada. A Justiça mineira determinou a retirada da cerca. Inconformado, o fazendeiro recorreu ao STJ, questionando, entre outras questões, a legitimidade dos moradores para ajuizar ação possessória sobre um bem público.

Direito de uso

Em seu voto, a ministra ressaltou que ação de reintegração de posse foi ajuizada por comunidades que desejam resguardar o direito de uso de estrada municipal. Em relação à legitimidade de um usuário para ajuizar ação sobre bem público de uso comum, Andrighi argumentou que a posse “pode ser exercida em comum, na convergência de direitos possessórios sobre determinada coisa”.

A ministra citou doutrina jurídica segundo a qual a posse de bem público de uso comum, como estradas e pontes, por exemplo, pode ser defendida pelo poder público ou por particulares.

“Na hipótese em exame, portanto, as recorridas (comunidades) têm legitimidade ativa para reclamar do recorrente (fazendeiro) a interdição do esbulho que pratica sobre o bem público de uso comum, objeto da composse”, afirmou a relatora, ao negar o recurso, decisão que foi acompanhada pelos demais ministros da Terceira Turma.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1582176
Fonte: STJ, 07/10/2016
Direito Agrário

Confira a íntegra da decisão:

CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2012/0031046-3
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.582.176 / MG
Números Origem: 10172100036562 10172100036562001 10172100036562003 10172100036562004 10172100036562005 6756822620108130000
PAUTA: 20/09/2016
JULGADO: 20/09/2016
Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : ANTONIO ROBERTO SANDOVAL FILHO
ADVOGADOS : DIAMANTINO SILVA FILHO E OUTRO(S) – MG010869, EDUARDO DIAMANTINO BONFIM E SILVA – MG062356, RUBENS ANTONANGELO JUNIOR E OUTRO(S) – MG054875B
RECORRIDO : ASSOCIAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS DAS CHÁCARAS DO LAGO
ADVOGADO : MARIA HELENA PANATTONI CHAVES E OUTRO(S) – MG093214
ASSUNTO: DIREITO CIVIL – Coisas – Posse
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, conheceu parcialmente do recurso e, nesta parte, negou-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze (Presidente) e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI:
Cuida-se de recurso especial interposto por ANTONIO ROBERTO SANDOVAL FILHO, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.
Ação: de reintegração de posse, com pedido de liminar, ajuizada pela ASSOCIAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS DAS CHÁCARAS DO LAGO e pela COMUNIDADE SÃO JOSÉ em face do recorrente e de USINA CAETÉ S/A – UNIDADE VOLTA GRANDE, devido a esbulho possessório supostamente praticado pelos últimos, que estariam invadindo a via que dá acesso ao Loteamento Chácaras do Lago e à Comunidade São José, a qual representa uma servidão de passagem que dá acesso aos mencionados loteamentos há mais de 17 (dezessete) anos.
Decisão: deferiu o pedido de liminar de reintegração de posse e fixou multa diária no valor de R$ 100,00 (cem reais) para a eventualidade de descumprimento da ordem.
Acórdão: negou provimento ao agravo de instrumento e, de ofício, limitou a multa ao valor máximo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Embargos de declaração: interpostos pelo recorrente, foram rejeitados.
Recurso especial: interposto em 09/05/2011, alega violação dos arts. 99, I, e 1.196 do CC/02, 333, I e II, 535, I e II, e 927 do CPC/73, além de dissídio jurisprudencial. Afirma que houve negativa de prestação jurisdicional, pois o Tribunal de origem não teria se manifestado sobre as teses de inexistência de: a) representação das recorridas; b) suposto direito possessório de particulares sobre bens públicos; e c) requisitos para a concessão da liminar. Aduz que a estrada objeto da controvérsia é bem público municipal de uso comum, não podendo sua proteção possessória ser requerida por particulares. Sustenta que foi demonstrada nos autos a inexistência de poderes de representação das recorridas, cabendo-lhes o ônus da prova dessa circunstância. Argumenta que não houve comprovação da posse das recorridas sobre a via pública, não estando, pois, presentes os requisitos exigidos para a concessão da liminar.
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cinge-se a controvérsia a determinar se: i) teria ocorrido negativa de prestação jurisdicional; ii) a representação processual das recorridas estaria regular e se competiria ao recorrente a prova da irregularidade; iii) particulares podem requerer a proteção possessória de bens públicos de uso comum; e iv) estariam presentes os requisitos necessários ao deferimento da liminar de reintegração de posse.
Julgamento: CPC/73
I – Da violação do art. 535, I e II, do CPC/73 – negativa de prestação jurisdicional
Aduz o recorrente que houve violação do art. 535, I e II, do CPC/73, porquanto o Tribunal de origem teria rejeitado seus embargos de declaração sem se manifestar sobre as teses de inexistência de: a) representação das recorridas; b) suposto direito possessório sobre bem público; e c) requisitos para a concessão da liminar.
No entanto, compulsando o acórdão, verifica-se que o TJ/MG apreciou fundamentadamente as questões pertinentes para a resolução da controvérsia, conforme se pode inferir das seguintes passagens:
Percebo que a questão, no caso, prende-se ao exame da possibilidade jurídica de um particular, no caso, duas associações de moradores, invocar proteção possessória contra outro particular, no caso, o ora agravante, tendo como objeto a utilização de um bem público de uso comum, uma estrada municipal rural, em seu estado físico original, ou seja, suas dimensões métricas.
Sobre essa matéria existem duas correntes doutrinárias.
[…]
Do exame do que consta nestes autos de agravo e em sede de julgamento liminar, a meu ver, aplica-se a segunda doutrina, haja vista que claramente demonstrado que o particular, no caso, as associações de moradores, não estão pleiteando a posse exclusiva do bem, mas sim, buscam resguardar o direito do uso comum do povo, no seu estado físico originário, e, neste contexto, entendo que plenamente viável que ele, particular, se utilize da proteção possessória.
No caso, percebo que a ação de reintegração de posse ajuizada visa proteger, não apenas a utilização efetiva da via pública, mas, principalmente, a preservação de suas dimensões originais, que estariam sendo reduzidas por ato de terceiro, que ao modificar o local das cercas divisórias, invadiu a pista e estreitou a passagem.
Em consequência, o pedido inicial se me afigura, si et in quantum , juridicamente possível […] (e-STJ, fls. 241-243).
Adiante, no que tange a alegação do agravante de que não restou demonstrado que os Senhores José Carlos da Silva e Hernany Andrade Junior têm poderes para representar a Comunidade São José e a Associação dos Proprietários das Chácaras do Laudo, entendo que competia ao próprio agravante, que denunciou a suposta irregularidade da representação, comprová-la, o que, efetivamente não foi feito.
Ressalte-se que essa Câmara Julgadora, em harmonia com o entendimento da jurisprudência e da doutrina, tem entendido que a análise das condições da ação deve ser realizada in statu assertionis , com base na narrativa realizada pelo autor na petição inicial. Em se concluindo que o autor é o possível titular do direito sustentado na inicial, bem como que o réu deve suportar a eventual procedência da demanda, estar consubstanciada a condição da ação relativa à legitimidade das partes.
[…]
Destarte, se na inicial os Senhores José Carlos da Silva e Hernany Andrade Junior alegaram deter poderes para representar a Comunidade São José e a Associação dos Proprietários das Chácaras do Laudo, e não restando demonstrada no autos, até então, qualquer irregularidade de representação, estou que não se justifica a arguição, devendo ser, também, afastada a preliminar.’
Com relação ao argumento do embargante, f. 248, no sentido de que o mandato de Hermany Andrade Júnior já teria se expirado há 8 anos, e, assim, haveria inexistência de representação, o argumento é de uma inconsistência absoluta.
Isso porque, como se vê no Estatuto da Associação dos Proprietários das Chácaras do Lago, cuja cópia está às f. 69/80-TJ, verifica-se no art. 26, f. 73-TJ, que o mandato do presidente teria prazo de 2 anos, admitida uma reeleição consecutiva.
Ora, como se vê na Ata de f. 78/79-TJ, Hermany Andrade Júnior foi eleito em 24/11/2001.
Assim, como a demanda originária foi ajuizada em 2010, ele, Hermany Andrade Júnior, poderia ter cumprido seu mandato de 2 anos, ter sido reeleito e em seguida, após eventual período fora da presidência, poderia ter retornado ao cargo, nos termos do Estatuto. Como se vê, tudo são hipóteses, que somente teriam consistência se houvesse prova cabal que as secundasse e tal prova cabia ao ora Embargante, que não se dispôs a usá-las com eficácia.
[…]
Quanto à regularidade da representação da Comunidade São José, da mesma forma cumpria ao embargante fazer comprovação atual e não fazer ilações que passam ao largo do senso comum, como a que após apresentar premissa de f. 249, no sentido de que não teria sido provada a existência da Comunidade São José, nem provada a representatividade de José Carlos da Silva, concluiu que teria havido afronta ao art. 6º, do CPC (e-STJ, fls. 276/280, sem destaque no original).
Assim, da análise das informações que vieram a estes autos de agravo, concluo que restou demonstrada a existência de servidão de passagem, e mais, percebo que não foram, de pronto, derruídos os fundamentos da decisão agravada no sentido de que houve invasão da via pelo agravante, e que ela impõe risco à circulação de pessoas e veículos, o que justifica o deferimento da liminar de reintegração de posse.
[…]
Assim, para a concessão da medida, torna-se imprescindível que se constate a existência dos requisitos basilares exigidos pela norma processual, de modo que o fumus boni iuris e o periculum in mora devem estar demonstrados.
No caso dos autos, percebo que o agravante, até então, não conseguiu demonstrar qualquer fato que derruísse o entendimento do juízo de que houve efetiva invasão da via pública, como também, que a redução da área transitável tem causado prejuízos aos moradores, colocando em risco a integridade física dos transeuntes.
E de se ressaltar, como já dito linhas cima, que o núcleo da pretensão dos postulantes é que a via de trânsito tenha o seu estado físico original restaurado, assegurando-se a eles, o direito de utilização dela, o que demonstra a pertinência subjetiva do direito dos agravados.
Dessa forma, tendo o douto juiz a quo, que est mais próximo das provas e dos fatos, indicado estarem presente os requisitos necessários ao deferimento da liminar, o que se me afigura corroborado pelas provas dos autos, não há como censurar a decisão primeva. (e-STJ, fls. 248-250).
Diante disso, não ocorreu violação do art. 535 do CPC/73.
II – Da regularidade da representação processual da pessoa jurídica em juízo – incidência da Súmula 83/STJ
O Tribunal de origem entendeu que os questionamentos suscitados pelo recorrente não representariam objeções fortes o suficiente para pôr em dúvida a representação processual das recorridas, porquanto a suposta irregularidade somente poderia ser reconhecida na hipótese de ser comprovada de modo cabal. É o que se infere do seguinte excerto:
Ressalte-se que essa Câmara julgadora, em harmonia com o entendimento da jurisprudência e da doutrina, tem entendido que a análise das condições da ação deve ser realizada in statu assertionis, com base na narrativa realizada pelo autor na petição inicial. Em se concluindo que o autor é o possível titular do direito sustentado na inicial, bem como que o réu deve suportar a eventual procedência da demanda, estar consubstanciada a condição da ação relativa à legitimidade das partes.
[…]
Com relação ao argumento do embargante, f. 248, no sentido de que o mandato de Hermany Andrade Júnior já teria se expirado há 8 anos, e, assim, haveria inexistência de representação, o argumento é de uma inconsistência absoluta.
[…]
Assim, como a demanda originária foi ajuizada em 2010, ele, Hermany Andrade Júnior, poderia ter cumprido seu mandato de 2 anos, ter sido reeleito e em seguida, após eventual período fora da presidência, poderia ter retornado ao cargo, nos termos do Estatuto.
Como se vê, tudo são hipóteses, que somente teriam consistência se houvesse prova cabal que as secundasse e tal prova cabia ao ora Embargante, que não se dispôs a usá-las com eficácia.
[…]
Quanto à regularidade da representação da Comunidade São José, da mesma forma cumpria ao embargante fazer comprovação atual e não fazer ilações que passam ao largo do senso comum, como a que após apresentar premissa de f. 249, no sentido de que não teria sido provada a existência da Comunidade São José, nem provada a representatividade de José Carlos da Silva, concluiu que teria havido afronta ao art. 60, do CPC.
Sabe-se em logica que de duas premissas negativas não se pode extrair conclusão positiva. Isso é mesmo um truísmo.
Além desse elementar equívoco lógico, é de se ressaltar o fato de que também quanto á Comunidade São José e seu representante, o ora embargante, nada provou nos autos do agravo, daí a inconsistência de seus argumentos e a permanência de tudo o quanto se disse na decisão embargada, (e-STJ, fls. 277-280).
A orientação do Superior Tribunal de Justiça é de que a demonstração da regularidade da representação da pessoa jurídica em juízo somente é necessária na hipótese de existir dúvida fundada a respeito da questão. Nesse sentido: AgRg no REsp 920.437/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 01/12/2010; e AgRg no Ag 1084141/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe 24/08/2009.
III – Do pedido de proteção possessória de bem público de uso comum
III.1. – Condições da ação – aplicação da teoria da asserção – Possibilidade jurídica do pedido e legitimidade “ad causam”
Sustenta o recorrente que as recorridas não teriam legitimidade para proteger a posse de bem público de uso comum e, além disso, o pedido seria impossível, haja vista que bens públicos não se sujeitam à posse de particulares. Assim, o pedido não poderia ser apreciado por ausência de condições da ação.
Consoante o entendimento consolidado do STJ, as condições da ação são averiguadas de acordo com a teoria da asserção, sendo definidas da narrativa formulada inicial e não da análise do mérito da demanda (REsp 1561498/RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 07/03/2016; AgRg no AREsp 452.737/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 16/09/2015).
Diante disso, para que se reconheça a possibilidade jurídica do pedido o que importa não é o mérito, mas a possibilidade – em abstrato – daquilo que se pede, dentro do ordenamento jurídico. Ou seja, “há impossibilidade jurídica do pedido quando o autor pleitear que o réu cumpra alguma prestação não prevista no ordenamento jurídico, ou quando exista norma jurídica que vede, proíba ou exclua a pretensão do autor” (ALVIM, Eduardo Arruda, Curso de Direito Processual Civil, Vol. 1, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 1998, p. 160).
O mesmo se pode dizer em relação à legitimidade ativa, verificada de acordo com a possibilidade de o autor ser o titular de uma dada relação jurídica, diante daquilo que é alegado na petição inicial.
III.2. Da possibilidade jurídica do pedido
III.2.1. – Da afetação do bem público de uso comum
Na hipótese em exame, a ação de reintegração de posse foi ajuizada por comunidades que desejavam resguardar o direito de uso de determinada via pública municipal.
Para tanto, alegaram que o recorrente estaria esbulhando parte dessa via pública, na qual teria sido instituída servidão de passagem para beneficiar a comunidade carente São José e a qual seria aparente pela própria caracterização como via de passagem e pela sua utilização contínua.
Referida servidão de passagem teria sido declarada de utilidade pública por Lei Municipal de Conceição de Alagoas, a qual classificou a mencionada via como “Estrada Municipal do Lago”.
Conforme asseverado no acórdão recorrido, a questão, na hipótese tem “como objeto a utilização de bem público de uso comum” (e-STJ, fl. 241, sem destaque no original).
Os bens públicos são classificados, de acordo com a norma constante no art. 99 do CC/02, em de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais, segundo sua destinação ou afetação. Conforme esse critério, os bens públicos de uso comum do povo são aqueles destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os de uso especial são os utilizados pela Administração para a satisfação de seus objetivos; sendo os dominicais aqueles que não têm destinação pública definida, abrangendo o denominado domínio privado do Estado (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo – 27ª ed., São Paulo: Atlas, 2014. p. 744-746). A afetação ao uso comum coletivo deve ser entendida como a que se exerce, em igualdade de condições, por todos os membros da coletividade (Op. cit., p. 763).
Diante dessa definição, o particular, em face do bem de uso comum do povo, pode ser “individualmente considerado, como usuário em concreto do bem de uso comum” hipótese na qual será “titular de direito subjetivo público, defensável nas vias administrativa e judicial, quando sofrer cerceamento no livre exercício do uso comum, em decorrência de ato de terceiro ou da própria Administração. Tomando como exemplo a hipótese de fechamento de praias para utilização privativa, as pessoas que forem afetadas pelo ato de cerceamento serão titulares de verdadeiro direito subjetivo, tutelável por meio de ações judiciais, inclusive com vistas à indenização por perdas e danos ” (Op. cit., p. 763-764).
III.2.2. – Da possibilidade jurídica de o particular requerer a proteção possessória de bem público de uso comum – distinção entre posse e detenção
O Código Civil de 2002 adotou, quanto à posse, o conceito de Ihering, segundo o qual, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade ”, distinguindo-se da detenção, por sua vez, pela circunstância de a lei, por determinação expressa, excluir “a proteção possessória, atendendo às circunstâncias peculiares da causa detentionis, do motivo que provocou a situação material ” (WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. III, Direito das Coisas. São Paulo, Revista dos Tribunais: 1993, p. 44).
Com efeito, “para Ihering, toda situação material de poder exercido conscientemente sobre uma coisa constitui uma posse, salvo se a lei, por motivo de ordem prática, determinou o contrário ” (Op. cit., p. 44).
A importância da distinção entre posse e mera detenção, para o deslinde da presente controvérsia, refere-se ao fato de que a mera detenção não confere a seu titular o direito de proteção jurídica, o que acarretaria a impossibilidade jurídica do pedido formulado na presente ação de reintegração de posse.
Se, todavia, se entender que se trata de posse, não haverá que se cogitar de ausência dessa condição da ação.
A adoção do conceito objetivo de posse de Ihering, contudo, simplifica a solução do problema: haverá posse sempre que exercidos os poderes inerentes à propriedade, desde que não haja exclusão expressa da proteção desse estado de fato pelo ordenamento jurídico.
Com relação ao tema, a possibilidade de defesa da posse de bens públicos é matéria recorrente nas lides apreciadas pelo Superior Tribunal de Justiça.
A jurisprudência desta Corte é pacífica quanto ao entendimento de que a ocupação irregular de bem público dominical não caracteriza posse, mas mera detenção, hipótese que afasta o reconhecimento de direitos em favor do particular com base em alegada boa-fé.
Por esse motivo, nas discussões relativas à proteção possessória, adotou-se o entendimento de que a ocupação do bem público não passa de mera detenção, sendo incabível, portanto, invocar proteção possessória contra o órgão público. Nesse sentido: AgRg no AgRg no AREsp 66.538/PA, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 01/02/2013; e AgRg no REsp 1.190.693/ES, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 23/11/2012.
As mesmas conclusões podem ser adotadas no caso de conflito entre particulares que ocupam imóveis públicos, também bens públicos dominicais (REsp 998.409/DF, de minha relatoria, Terceira Turma, DJe 03/11/2009).
Esse entendimento, porém, não se aplica à defesa de situações de fato relacionadas à bens públicos de uso comum do povo.
Consoante a doutrina, “a posse de bens públicos de uso comum, como estradas e pontes, tanto pode ser defendida em juízo pelo Poder Público como pelos particulares que habitualmente se valem de ditos bens”, pois “a legitimidade, na espécie, é tanto para agir isoladamente como em litisconsórcio ” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Procedimentos Especiais – vol. III, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.122)
Portanto, nos termos da jurisprudência desta Corte, se pode entender que o ordenamento jurídico excluiu a possibilidade de proteção possessória à situação de fato exercida por particulares sobre bens públicos dominicais, classificando o exercício dessa situação de fato como mera detenção.
Essa proposição, não obstante, não se estende à situação de fato exercida por particulares sobre bens públicos de uso comum do povo, razão pela qual há possibilidade jurídica na proteção possessória do exercício do direito de uso de determinada via pública.
III.3. – Da legitimidade ativa – composse exercida sobre o bem público de uso comum
Como já afirmado, a posse consiste numa situação de fato criadora de um dever de abstenção oponível erga omnes. A posse, no entanto, pode ser exercida em comum, na convergência de direitos possessórios sobre determinada coisa.
Nessa hipótese, incide o disposto no art. 1.199 do Código Civil, segundo o qual “se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores ”.
Na posse de bens públicos de uso comum do povo, portanto, o compossuidor prejudicado pelo ato de terceiro ou mesmo de outro compossuidor poderá “lançar mão do interdito adequado para reprimir o ato turbativo ou esbulhiativo ”, já que “pode intentar ação possessória não só contra o terceiro que o moleste, como contra o próprio consorte que manifeste propósito de tolhê-lo no gozo de seu direito ” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Coisas. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1970, p. 81).
Na hipótese em exame, portanto, as recorridas têm legitimidade ativa para reclamar do recorrente a interdição do esbulho que pratica sobre o bem público de uso comum, objeto de composse.
IV – Do reexame de fatos e provas
Alterar o decidido no acórdão impugnado, no que se refere à comprovação da posse, do esbulho e da presença dos elementos suficientes à concessão da medida liminar de reintegração de posse, exige o reexame de fatos e provas, o que é vedado em recurso especial pela Súmula 7/STJ.
V – Dispositivo
Forte nessas razões, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial e, nessa parte, NEGO-LHE PROVIMENTO, para manter o acórdão recorrido quanto ao reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade ativa “ad causam ” das recorridas para proteger sua posse em relação ao bem público de uso comum do povo objeto do litígio.
É o voto.
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS COISAS. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POSSESSÓRIA. ESBULHO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. REGULARIDADE DA REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. PRESENÇA DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA LIMINAR. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. POSSIBILIDADE DO PEDIDO E LEGITIMIDADE AD CAUSAM . CONDIÇÕES DA AÇÃO. TEORIA DA ASSERÇÃO. POSSE DE BEM PÚBLICO DE USO COMUM. DESPROVIMENTO.
1. Ação ajuizada em 20/10/2010. Recurso especial interposto em 09/05/2011. Conclusão ao gabinete em 25/08/2016.
2. Trata-se de afirmar se i) teria ocorrido negativa de prestação jurisdicional; ii) a representação processual das recorridas estaria regular e se competiria ao recorrente a prova da irregularidade; iii) particulares podem requerer a proteção possessória de bens públicos de uso comum; e iv) estariam presentes os requisitos necessários ao deferimento da liminar de reintegração de posse.
3. Ausentes os vícios do art. 535 do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração.
4. O reexame de fatos e provas em recurso especial é inadmissível.
5. As condições da ação devem ser averiguadas segundo a teoria da asserção, sendo definidas da narrativa formulada inicial e não da análise do mérito da demanda.
6. O Código Civil de 2002 adotou o conceito de posse de Ihering, segundo o qual a posse e a detenção distinguem-se em razão da proteção jurídica conferida à primeira e expressamente excluída para a segunda.
7. Diferentemente do que ocorre com a situação de fato existente sobre bens públicos dominicais – sobre os quais o exercício de determinados poderes ocorre a pretexto de mera detenção –, é possível a posse de particulares sobre bens públicos de uso comum, a qual, inclusive, é exercida coletivamente, como composse.
8. Estando presentes a possibilidade de configuração de posse sobre bens públicos de uso comum e a possibilidade de as autoras serem titulares desse direito, deve ser reconhecido o preenchimento das condições da ação.
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso e, nesta parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 20 de setembro de 2016(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora

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