Por Marcos Bombassaro.
O crédito rural foi instituído pela Lei nº 4.829/1965 e posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 58.380/1966, também contando com disposições previstas na Lei nº 492/1937, Decreto-Lei nº 167/1967 e Lei nº 8.171/1991, além de estar submetido às normas editadas pelo Conselho Monetária Nacional através do Manual de Crédito Rural (MCR).
Embora muitos agricultores não saibam, o crédito rural é dotado de uma finalidade que o diferencia de todos demais tipos de financiamentos, tendo como objetivo cumprir uma função social, que é promover a produção de alimentos.
Nesta ótica, embora presente também o interesse privado do tomador dos recursos que é o agricultor, a Lei do Crédito Rural visa garantir e resguardar o desenvolvimento da atividade agrária a fim de ter sua função produtiva alcançada. Trata-se, portanto, de instituto próprio de Direito Agrário[1], jamais podendo os contratos de crédito rural serem interpretados exclusivamente pela via do chamado Direito Bancário, uma vez que possuem uma exegese própria trazida pela lei agrária.
Além disso, o Crédito Rural, enquanto instrumento de Política Agrícola (inclusive contando com previsão constitucional, no artigo 187 da Constituição Federal de 1988), busca garantir uma melhor estabilidade ao produtor rural, já que este está sempre a mercê de inúmeros fatores imprevisíveis que podem assolar sua produção.
A consequência destas situações que como anteriormente ditas são imprevisíveis ao momento da formação da lavoura, levam muitas vezes os agricultores ao endividamento, e neste aspecto justamente pela falta de conhecimento do produtor rural sobre seus direitos quando da impossibilidade financeira de realizar o pagamento do mútuo rural na data de vencimento é que medidas equivocadas em renegociar este mútuo sem observância dos preceitos legais do crédito rural faz este endividamento aumentar de forma que possa até mesmo vir a comprometer seu patrimônio.
Muitas instituições financeiras oferecem renegociações aos agricultores fugindo dos juros pactuados nas cédulas rurais, aplicando taxas de juros comerciais, mantendo e ainda aumentando as garantias sejam elas reais ou fidejussórias já concedidas anteriormente.
Nota-se ainda que na maioria das vezes essas renegociações são oferecidas pelas instituições quando o nome do devedor ainda não foi negativado juntos aos órgãos de proteção ao crédito. Desta forma muitos produtores rurais se veem obrigados a renegociar nos moldes a eles impostos, pois necessitam de “nome limpo” para terem acesso ao crédito como único meio de obter recursos para formar a lavoura.
Embora aliviado em um primeiro momento, por manter o nome limpo, o agricultor logo se dará conta que essa renegociação irá culminar com expressivo aumento do endividamento, tornando o mútuo muitas vezes impagável ou então comprometendo parcial ou totalmente seu patrimônio, em total descompasso com os fins para os quais o crédito rural se originou.
Por conta disso, o ordenamento jurídico brasileiro ao longo dos anos vem reconhecendo o excesso de cobrança por parte das instituições financeiras em contratos de créditos rurais que foram transformados em cédulas de crédito bancário ou por aditamento em escrituras públicas de confissão de dívida, com juros acima do limite estabelecido pela lei que a instituíu e as demais que regulamentam o crédito rural no País.
Abaixo seguem recentes julgados de alguns Tribunais:
DIREITO CIVIL. CONTRATO BANCÁRIO. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL. REPACTUAÇÃO MEDIANTE CONTRATOS ADITIVOS DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. APLICABILIDADE DA SÚMULA 286 DO STJ. JUROS REMUNERATÓRIOSLIMITADOS A 12 % AO ANO. JUROS MORATÓRIOS. ABUSIVIDADE CONFIGURADA. COBRANÇA INDEVIDA DA TAXA DE JUROS. AUSÊNCIA DE MORA. MULTA INDEVIDA. VALORES EXECUTADOS INDEVIDAMENTE. MÁ-FÉ NÃO DEMONSTRADA. DEVOLUÇÃO NA FORMA SIMPLES. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. SÚMULA 306 DO STJ. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO. 1 – “A negociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores” (Súmula 286 do STJ). 2 – Nas cédulas de crédito rural deve incidir a limitação dos juros remuneratórios em 12% (doze por cento), mediante aplicação do Decreto n. 22.626 /33, acrescidos dos juros moratórios de 1% (um por cento ao ano), consoante o art. 5º, p. único, do Decreto-Lei n. 167 /67. 3 – O contrato de confissão de dívida oriunda de cédula de crédito rural não afasta a incidência da legislação específica. 4 – A cobrança indevida dos juros remuneratórios descaracteriza a mora, excluindo a multa. 5 – Descabida a devolução em dobro da importância executada indevidamente, porquanto não tenha sido demonstrada a má-fé do banco exequente. 6 – Honorários advocatícios fixados em 10% sobre eventual diferença entre o valor cobrado e o efetivamente devido pelo embargante. Tendo em vista a procedência parcial dos embargos e a sucumbência recíproca, deve, cada parte arcar meio a meio com a verba honorária, devidamente compensada (Súmula306, do STJ). (TJ-PE, Embargos Infringentes EI 1453150 PE, Data de publicação: 25/02/2015)
APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO REVISIONAL. CÉDULAS DE CRÉDITO RURAL E ESCRITURA PÚBLICA DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR . Trata-se de ação revisional de contrato bancário, relativamente a 11 (onze) Cédulas Rurais Pignoratícias e uma escritura Pública de Confissão de Dívidas, julgada improcedente na origem. APLICAÇÃO DO CDC – O Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8078 /90)é aplicável às Instituições Financeiras e Bancos “ut” enunciado sumular nº 297/STJ. JUROS REMUNERATÓRIOS – O STJ já firmou o entendimento de que nas cédulas decrédito incentivado, os juros remuneratórios são limitados a 12% ao ano, inexistindo autorização do CMN para a cobrança em patamares superiores. Precedentes. No caso dos autos os juros remuneratórios foram contratados em percentuais superiores a 12% ao ano, pelo que os juros merecem ser limitados. CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS – Nas cédulas de crédito industrial, comercial e rural é possível a capitalização mensal dos juros mesmo nos contratos firmados anteriormente à entrada em vigor da MP n.1963-17/2000, tendo em vista a incidência do verbete sumular de n. 93 do e. STJ. No caso, apenas a escritura pública de confissão de dívidas prevê a incidência da capitalização mensal dos juros de forma expressa. Logo, nesta medida, cabível a capitalização mensal dos juros, posto que pactuada. Contudo, nas demais contratações a capitalização dos juros deve ser extirpada, eis que não pactuada. CORREÇÃO MONETÁRIA – A questão relativa à possibilidade da cobrança de correção monetária nascédulas rurais restou consolidada através do enunciado da Súmula 16 do e. STJ – “A legislação ordinária sobre crédito rural não veda a incidência da correção monetária.” Precedentes do STJ e do TJRS. REPETIÇÃO DO INDÉBITO ou COMPENSAÇÃO – Existindo pagamento a maior, a jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de admitir a compensação ou repetição do indébito, na forma simples, independentemente da prova. (TJ-RS, Apelação Cível AC 70034028787 RS, Data de publicação: 27/09/2013)
REVISIONAL. Cédulas de crédito bancário e de crédito rural. Renegociação de dívida. Possibilidade de revisional de contratos anteriores à dívida renegociada. Juros. Capitalização. Comissão de permanência. 1. Inobstante o instrumento particular de confissão de dívida goze, em princípio, de exequibilidade autônoma, nada impede sejam discutidos os contratos que originaram a dívida confessada (Súmula 286, STJ). 2. Admite-se a capitalização mensal de juros em contratos firmados posteriormente a edição das Medidas Provisórias nº 1.963/2000 e 2.170/2001, com previsão expressa dos juros mensais e anuais contratados (Recurso Especial Repetitivo nº 973.827 – RS – 2007/0179072-3). Todavia, nos contratos que antecederam à emissão da cédula de crédito bancário o banco não demonstrou a existência de pactuação expressa de capitalização mensal de juros, nos termos do art. 333, II, do CPC. Contudo, sobre o saldo devedor que se apurar até a data de sua emissão, poderá incidir os juros capitalizados expressamente previstos neste instrumento. 3. Nas cédulas de crédito rural admite-se o pacto de capitalização de juros (Súmula 97, do STJ). 4. Na cédula de crédito bancário e nos contratos de abertura de crédito renegociados, nada há na legislação de regência que vede a pactuação de juros acima de 12% ao ano, bastando à instituição financeira obedecer aos parâmetros estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional. 5. Já na cédula de crédito rural há a possibilidade de se limitar os juros a 12% ao ano, diante de norma de regência específica (D.L. nº 167/67) e da omissão do Conselho Monetário Nacional na fixação do limite da taxa de juros. Limitação determinada. 6. É ilegal a cobrança de comissão de permanência em cédula de crédito rural, cuja legislação equivalente determina para os casos de mora, a incidência de juros remuneratórios. Encargos inacumuláveis (Súmula 296, STJ). Exclusão determinada. 7. A incidência de comissão de permanência na cédula de crédito bancário e nos contratos de abertura de crédito renegociados só se justifica se limitada à taxa contratada (soma dos encargos remuneratórios e moratórios) e desde que não cumulada com correção monetária, juros remuneratórios e moratórios e multa contratual (Súmulas 30 e 472 do STJ). Limitação determinada. Recurso provido em parte. (TJ-SP – APL: 00069791620128260597 SP 0006979-16.2012.8.26.0597, Relator: William Marinho, Data de Julgamento: 28/01/2015, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/02/2015)
Como se extrai dos julgamentos acima colecionados, resta pacificado perante os Tribunais Estaduais e STJ o entendimento de que é ilegal a repactuação de dívidas originárias de crédito rural regido por legislação própria com juros acima do limite para ele estabelecido.
Além dos dispositivos normativos próprios já invocados, a Súmula nº 286 do STJ assegura como um direito do produtor rural a possibilidade de revisão das ilegalidades contidas nos contratos de crédito rural anteriores à renegociação ou a confissão da dívida.
Portanto, cabe sempre ao agricultor ficar atendo antes de firmar qualquer renegociação oriunda de crédito rural com sua respectiva instituição bancária, devendo preferencialmente buscar sempre uma orientação especializada para que não corra o risco de vir a ser envolver em uma situação de endividamento excessivo e indevido.
Nota:
[1] Sobre o objeto do Direito Agrário brasileiro, vide o artigo: ZIBETTI, Darcy Walmor; QUERUBINI, Albenir. O Direito Agrário brasileiro e sua relação com o agronegócio. In: Direito e Democracia – Revista de Divulgação Científica e Cultural do Isulpar. Vol. 1 – n. 1, jun./2016, disponível em: <http://www.isulpar.edu.br/revista/file/130-o-direito-agrario-brasileiro-e-a-sua-relacao-com-o-agronegocio.html>.
Veja também:
– STJ define o prazo de prescrição para repetição de indébito em cédula de crédito rural contra o Banco do Brasil (Portal DireitoAgrário.com, 04.11.2016)
– Publicada lei que autoriza a liquidação e a renegociação de dívidas de crédito rural (Portal DireitoAgrário.com, 29.09.2016)
– Produtores rurais afetados pela seca poderão renegociar dívidas de crédito rural de custeio e de investimento (Portal DireitoAgrário.com, 15.09.2016)
– Crédito rural: CMN autoriza renegociação das dívidas dos arrozeiros da Região Sul afetados pelas enchentes (Portal DireitoAgrário.com, 04.07.2016)
– As novas modalidades de Crédito Rural: breve análise da nova redação do art. 11 do Decreto nº 58.380/1966 introduzida pelo Decreto nº 8.769/2016 (Portal DireitoAgrário.com, 13.05.2016)