terça-feira , 23 abril 2024
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Direito Agrário

Comentários à lei da rastreabilidade da cadeia produtiva das carnes de bovinos e de búfalos (Lei nº 12.097/2009)

por Wilfrido Augusto Marques, André Sório e Rogério Oliveira Anderson.

Como corolário da Política Agrícola prevista no artigo 187, da Constituição Federal, e em atendimento a reclamos do mercado interno e, sobretudo, da União Européia, relacionados à sanidade animal, após muitas discussões travadas no âmbito da administração pública federal direta e indireta, foi aprovada a Lei nº 12.097/2009 – LRAST que, segundo sua ementa, “dispõe sobre o conceito e a aplicação de rastreabilidade na cadeia produtiva das carnes de bovinos e de búfalos.”

Cumprindo a determinação do artigo 3º, § único, da LRAST, a regulamentação do normativo veio através do Decreto nº 7.623/2011 -DRAST. Por outro lado, a Instrução Normativa nº 17/2006 – INRAST, do Ministro de Estado da Agricultura e Pecuária e Abastecimento, já estabelecia, em anexo I, a Norma Operacional do Serviço de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos – SISBOV, aplicável a todas as fases da produção, transformação, distribuição e dos serviços agropecuários. O SISBOV foi inaugurado em 2002, através da Instrução Normativa nº 01/2002, do MAPA.

Tratam da matéria, ainda, muito embora de forma não específica, os artigos 27-A, 28-A e 29-A, da Lei nº 8.171/91 – LPA, e o Decreto nº 5.741/2006 – DSUASA, que ao par de regulamentar os dispositivos legais em referência, organiza o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária, e dá outras providências.

Passados quase dez anos de sua entrada em vigor, a LRAST suscita algumas dúvidas e controvérsias, sobretudo com relação ao seu artigo 6º, que torna obrigatória a implantação de sistemas de rastreabilidade em todas as fazendas dedicadas à pecuária, conforme se passa a demonstrar. Antes, porém, cumpre recordar alguns dos aspectos principais do normativo para, então, analisar os desafios do segmento no cumprimento das exigências legais.

A LRAST, em seu artigo 2º caput, conceitua rastreabilidade como a capacidade de garantir o registro e o acompanhamento das informações referentes às fases que compõem a cadeia produtiva das carnes de bovinos e de búfalos, permitindo seguir um animal ou grupo de animais durante todos os estágios da sua vida, bem como seguir um produto por todas as fases de produção, transporte, processamento e distribuição da cadeia produtiva das carnes de bovinos e de búfalos.

Tal conceito está em conformidade com o Regulamento (CE) 178/2002, da União Européia, para o qual rastreabilidade “é a habilidade para acompanhar qualquer alimento, ração animal, animal utilizado para a produção de alimentos ou substâncias que serão utilizadas para consumo, ao longo de todos os estágios de produção, processamento e distribuição.”

Se é certo que a lei refere-se tão somente às cadeias bovina e bubalina, não existem razões para que não se apliquem seus dispositivos, no que couber, às demais espécies animais submetidas a regime de produção pecuário assemelhado, como, v. g., os ovinos e os caprinos.

A rastreabilidade tem por objetivo primordial o aperfeiçoamento dos controles e garantias no campo da saúde animal, saúde pública e inocuidade dos alimentos (LRAST, art. 2º, § único), propiciando a sanidade alimentar, em benefício do consumidor, e a certificação da produção, de modo a permitir agregação de valor nas cadeias produtivas da carne com aumento de renda, sobretudo para o produtor.

Para que se possa cumprir aos desideratos da lei, é mister identificar os animais destinados à produção através dos instrumentos de identificação. A rastreabilidade, ora discutida, deve ser implementada exclusivamente com base nos seguintes instrumentos, previstos no artigo 4º da lei:

  1. marca a fogo, tatuagem ou outra forma permanente e auditável de marcação dos animais, para identificação do estabelecimento proprietário;
  2. Guia de Trânsito Animal – GTA;
  3. nota fiscal;
  4. registros oficiais dos serviços de inspeção de produtos de origem animal nos âmbitos federal, estadual e municipal, conforme exigir a legislação pertinente;
  5. registros de animais e produtos efetuados no âmbito do setor privado pelos agentes econômicos de transformação industrial e distribuição.

Os instrumentos de rastreabilidade são típicos, ou seja, expressamente estabelecidos em lei e constituem-se num minus, ou seja, admite-se, outrossim, a adoção de mecanismos adicionais previstos em sistemas de adesão voluntária, observadas as regras acordadas entre as partes (pacta sunt servanda).

Cumpre observar que marca a fogo (ou tatuagens, em menor escala), conforme descritas acima, são formas que possibilitam a identificação do proprietário do animal. Para fins de gestão do rebanho, especialmente em sistemas mais modernos e sofisticados, a simples marca a fogo não proporciona o controle necessário, muito menos em sistemas de rastreabilidade que se dedicam a garantir a segurança da matéria-prima a consumidores estrangeiros, situados a milhares de quilômetros da origem do gado.

Por este motivo são utilizados outros meios adicionais de identificação do animal, que permitam, por um lado, maior acurácia na identificação dos animais e, por outro lado, maior rapidez operacional neste processo.

As marcas a fogo, ou tatuagens, ou, ainda, quaisquer formas permanentes e auditáveis para identificação do estabelecimento proprietário, v. g., brinco auricular, bottom, dispositivo eletrônico, e outros, para fins de adequação à lei da rastreabilidade, deverão ser obrigatoriamente apostos da seguinte forma: a) na perna ou na orelha esquerdas, conforme o caso, para indicar o estabelecimento de nascimento do animal; b) na perna ou na orelha direitas, conforme o caso, para indicar os estabelecimentos proprietários subsequentes.

Deverão, ainda, obedecer aos termos da Lei nº 4.714/1965, que dispõe sobre o uso da marca de fogo no gado bovino, bem como estar em conformidade com o que estabelecem os órgãos ou entes públicos municipais ou estaduais ou nas entidades locais do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária – SUASA, devendo a União Federal, através do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA providenciar sistema de inscrição de marcas em caráter suplementar (LRSAT, art. 5º, § 2º; DRAST, art. 1º, § 4º).

Ainda que na prática sejam raros, pra não dizer inexistentes, os produtores que abrem mão de marca a fogo em seu gado, pois esta é a melhor forma de garantir a identificação do proprietário do animal em caso de fuga ou roubo de animais, a LRAST, em seu artigo 5º, §§ 3º e 4º, permite a dispensa do uso de marca a fogo, tatuagem ou outra forma de marcação permanente quando for utilizado sistema de identificação dos animais por dispositivo eletrônico; bem como no caso de animais com registro genealógico em entidades privadas autorizadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, desde que obedecidos os parâmetros da Lei nº 4.716/1965 (que dispõe sobre a organização, funcionamento e execução dos registros genealógicos de animais domésticos no País).

O artigo 6º da LRAST, por sua vez, veicula a norma que mais críticas recebeu por parte do setor produtivo já que estabeleceu a obrigatoriedade da rastreabilidade para todos os produtores. Diz o dispositivo:

Os estabelecimentos rurais e os de abate somente poderão receber bovinos e búfalos identificados na forma do art. 4º desta Lei e acompanhados de GTA em que essa identificação esteja presente. – sem grifos e subscritos no original

Até então, nos termos do que dispunha o 1º, §§ 1º e 2º, da INRAST, vigia o princípio da voluntariedade dos produtores rurais e demais segmentos da cadeia produtiva de bovinos e bubalinos na adesão ao SISBOV. Tal situação se alterou a partir da LRAST que, como dito, tornou obrigatório tal registro.

Fora de cogitação levantar discussão a respeito da necessidade de se garantir a sanidade do rebanho. É evidente que enquanto aspecto de política de um Estado, com “E” maiúsculo, destinada a proteger a saúde e a economia do País, a qualidade do produto e a inocuidade do alimento são premissas nas quais não se deve transigir.

O que se conjectura é a respeito da obrigatoriedade da medida. Proibir, permitir e obrigar são, como se sabe, os modais deônticos segundo os quais se assenta o positivismo jurídico, referencial teórico ainda não superado totalmente na Ciência do Direito.

Justamente pela característica da coercitividade a norma jurídica, e seus modais, devem ser utilizados com parcimônia, com equilíbrio, sob pena do Estado, fonte primordial do direito, invadir de forma desmedida, como no caso em estudo, o direito fundamental à liberdade econômica.

Antes da LRAST, e até a presente data, não há notícia de falha sistêmica na cadeia produtiva da carne no Brasil, sobretudo no segmento “dentro da porteira”. Havia sim, como sabido, reclamos da União Européia no sentido de melhoria dos sistemas de rastreabilidade e de certificação ocasionados, inclusive, por problemas internos àquele bloco que, v. g., ocasionaram a suspensão de embarques de 2008.

Mais recentemente houve a denominada “Operação Carne-Fraca” que apontou, pelo menos até onde se apurou, indícios de práticas de corrupção no âmbito do MAPA, ou seja, aparentemente fiscais federais agropecuários e outros agentes públicos, em conluio com empresários de frigoríficos, maltraram a legislação nos seus respectivos âmbitos de responsabilidade. Os resultados são por todos conhecidos: queda de preços, perda de credibilidade, suspensões de embarques e quejandos.

Outrossim, aos poucos, dita operação tem tido sua idoneidade questionada, seja em razão da extensão dos danos causados (materialidade) pelas condutas criminosas apuradas, seja pela identificação de indícios de autoria por parte dos agentes que foram apontados no início da operação. Prometia-se um caso maior do que a “Lava Jato” e entregou-se, até o presente momento, algo muito menor e localizado. Restaram os prejuízos à cadeia da carne, sobretudo aos pecuaristas.

Seja como for, é fato que não há, e não houve, no Brasil, contaminação sistêmica na cadeia produtiva da carne, suficiente a ensejar imposição de custosas medidas de rastreabilidade de forma genérica e obrigatória por todo o País, como se o rebanho, em algum dia, estivera comprometido e como se a estrutura de fiscalização já existente não fosse apta para o mister.

Some-se, por fim, a inocuidade da medida na melhoria dos preços pagos ao pecuarista pelo produto rastreado em comparação com o produto não rastreado (que ainda existe, e muito).

Ézio Gomes da Mota[1], em precioso estudo, conclui que os resultados desta pesquisa somados às diversas informações relacionadas com a rastreabilidade bovina no Brasil, descritas nos trabalhos pesquisados e notícias afins, apontam no sentido de que existe significativa falta de coordenação na cadeia dessa importante atividade. Isto gera um desequilíbrio entre a oferta e a procura por animais rastreados acarretando instabilidade no diferencial de preços pagos pela arroba do boi rastreado em relação ao comum.

O resultado é ora a ocorrência de oportunismos na cadeia, ou seja, obtenção de melhores preços pelo produto rastreado não em razão de uma política pública pré-ordenada de agregação de valor, mas, sim, em decorrência de desequilíbrios sazonais e locais no mercado. Ora constatar, em muitos momentos, a paridade de preços entre o produto rastreado e o não rastreado, situação que, como se pode concluir, não é desejável e contraria os próprios objetivos da norma.

Melhor seria, como de resto ocorre no exercício de atividades econômicas em geral, incentivar a rastreabilidade mediante mecanismos de mercado que premiassem o produtor pela adesão ao sistema, proporcionando melhores condições de competitividade àqueles que investissem em sua atividade.

Aliás, isso já ocorre na produção destinada à exportação onde os produtores adotam voluntariamente sistemas de rastreabilidade não apenas como uma exigência da lei, mas, sim, e como deve ser, em decorrência de condições de mercado, obtendo, assim, melhores preços em função do investimento realizado. Por oportuno, diga-se, o boi rastreado pronto para abate, com destino à União Europeia, costuma ser cotado entre R$ 2,00 (dois reais) a R$ 5,00 (cinco reais) a mais por arroba do que o preço referência de mercado, o que significa de 1,5% a 4% de valorização.

No Estado contemporâneo, assevera Norberto Bobbio[2],

é cada vez mais freqüente o uso de técnicas de estímulo de comportamentos, de tal sorte que junto à concepção tradicional de direito como ordenamento protetivo-repressivo, forma-se uma nova concepção do ordenamento com função promocional. Há, com isso, uma verdadeira mudança no modo de realizar o controle social: passa-se de um controle passivo, que se preocupa mais em desfavorecer as ações nocivas do que as ações vantajosas, a um controle ativo, que se preocupa em favorecer as ações vantajosas, mais do que desfavorecer as ações nocivas.

Ou seja, ajustam-se os comportamentos dos particulares, isto é, dos agentes econômicos, à vontade da lei mas não por exigência, mas sim por incentivo, não pela “dor”, mas pelo “amor”. Em outras palavras, rastreia-se não por imposição legal, mas por incentivo econômico à medida, em típica hipótese de incidência do denominado ordenamento jurídico premial. Pragmatismo maior não pode existir.

Prosseguindo, a LRAST estabelece a possibilidade emissão de documentos fiscais próprios e específicos por parte dos produtores, observadas, por evidente, as normas das autoridades tributárias locais (LRAST, art. 7º). Outrossim, recorde-se que as notas fiscais são instrumentos de rastreabilidade, conforme dispõe o artigo 4º da LRAST.

Por fim, o artigo 8º, da LRAST, nada mais veicula que o princípio da reciprocidade, fundamental no Direito Internacional, ao exigir do importador de animais e produtos de origem animal a comprovação de que foram cumpridas as regras de rastreabilidade do país de origem e que essas normas sejam pelo menos equivalentes as do direito nacional.

Tal disposição visa, por outro lado, impossibilitar a entrada de produtos em território nacional em melhores condições de competitividade das que condicionam o produto brasileiro. Sabe-se que o produtor nacional possui inúmeros desafios nas áreas da logística e da infraestrutura, sem contar na da regulação, que superam, em muito, a pretensa condição igualitária posta na norma. Mesmo assim, a previsão é necessária já que seria verdadeiro absurdo exigir rastreabilidade do produtor nacional, sem fazer o mesmo em relação ao estrangeiro.

Como se vê, a LRAST cuida de interessante mecanismo legal que veicula verdadeiro avanço nas relações de produção dentro da cadeia da carne bovina e bubalina. Com exceção da questão atinente à obrigatoriedade da rastreabilidade, digna de críticas, as demais disposições da norma conferem relativa segurança jurídica nas operações, constituindo-se em importante medida de melhoria da qualidade do rebanho e na aquisição de renda pelo setor pecuarista.

Notas:

[1] MOTA, E. G.. A rastreabilidade bovina no Brasil: histórico, evolução e perspectivas de futuro. Brasília: Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária, Universidade de Brasília, 2011, 138p. Dissertação de Mestrado.

[2] BOBBIO, Norberto. Contribuición a la teoria del derecho. Madri: Fernando Torres, 1980, p. 367.

Os autores:

Wilfrido Augusto Marques

Advogado, Especialista em Direito Tributário e Internacional, Empresário Rural, Diretor da Escola Superior do Agronegócio Internacional – ESAI

André Sório

Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronegócios, Consultor de Empresas Agroindustriais no Brasil e Exterior, Diretor da Escola Superior do Agronegócio Internacional – ESAI

Rogério Oliveira Anderson

Procurador do Distrito Federal, Mestre em Direito Agrário, Secretário-Geral da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/DF, Professor da Escola Superior do Agronegócio Internacional – ESAI. É membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.

Direito Agrário

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