por Albenir Querubini.
No dia 30 de abril o Presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória nº 881, que ficou conhecida como Medida Provisória da Liberdade Econômica, instituindo a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, além de estabelecer garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório e outras providências[1]. Em linhas gerais, a “MP da liberdade econômica, como tem sido chamada, pretende garantir a livre-iniciativa e o amplo exercício da atividade econômica, previstos no artigo 170 da Constituição Federal, favorecendo especialmente os pequenos empreendedores”[2].
Ocorre que durante a análise da MP pelo Congresso[3], o relator, Deputado Jerônimo Goergen (PP/RS), surpreendeu ao introduzir o art. 54 no relatório, contendo disposição acerca dos contratos agrários, ao propor o acréscimo do § 10 ao art. 92 do Estatuto da Terra – Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, nos termos que transcrevo:
Art. 54. A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa, nos termos desta Lei.
………………………………………….
§ 10. Prevalece a autonomia privada nos contratos agrários, exceto quando uma das partes se enquadre no conceito de agricultor familiar e empreendedor familiar rural, conforme previsto o art. 3º da Lei 11.326, de 24 de julho de 2006.” (NR)
Tal fato causou perplexidade na comunidade científica que se dedica ao estudo do Direito Agrário, uma vez que a aprovação do dispositivo inserido no relatório vai ser responsável por trazer grave insegurança jurídica aos produtores rurais, gerando imediato conflito entre proprietários e arrendatários rurais e parceiros-outorgados, posto que não especifica sobre quais disposições contratuais prevalece a autonomia da vontade. Além disso, criar uma injustificada discriminação com relação aos produtores rurais familiares.
Inicialmente, vale lembrar que os contratos agrários são regidos a partir de um regime contratual especializado, cuja matéria é de direito privado (ou seja, trata-se de modalidade de contrato entre cidadãos), sendo por isso a proposta incluída no relatório é incompatível com a ideia e a finalidade original da MP da Liberdade Econômica de desburocratizar a relação entre o Estado e os empreendedores:
“A MP traz uma série de orientações referentes a atos públicos como licenças, autorizações, inscrições, registros, alvarás e outros exigidos pela administração pública como condição prévia para o exercício de atividade econômica. A MP reafirma a liberdade de preços, tanto para produtos quanto para serviços, obedecendo a oferta e a demanda do mercado não regulado. Essa liberdade só será restringida nos casos declarados de emergência ou calamidade pública.
A medida também busca padronizar a interpretação de fiscais e agentes públicos para atos de autorização de atividade econômica. As decisões sobre pedidos de alvará e licença terão efeito vinculante: o que for definido para um cidadão deverá valer para todos em situação similar”[4].
Não se desconhece o fato de que os contratos agrários necessitam de atualização. Porém, cabe ressaltar que a tentativa de mudança via inclusão do art. 54 da MP nº 881/2019 trata-se na verdade daquilo que chamamos de “jabuti na árvore”, que mais traz incertezas do que soluções, uma vez que não informa quais dispositivos seriam abrangidos pela proposta de prevalência da autonomia da vontade. Sem entrar no mérito da constitucionalidade do referido dispositivo, desde já advertimos que a inserção do o § 10 no art. 92 do Estatuto da Terra, por falha de técnica legislativa, não afasta as demais disposições constantes nos arts. 92 a 96 do Estatuto da Terra e na Lei nº 4.749/1966, a exemplo da fixação do preço, prazos, exercício de direito de preferência, retomada dos imóveis agrários, direitos e garantias dos arrendatários e parceiros-outorgados, etc. Muito pelo contrário, a disposição contida no § 10 gera contradição lógica entre tais conflitos.
A generalidade do dispositivo, ao não determinar sobre o que prevalece a autonomia da vontade, vai trazer como consequência direta uma enxurrada de ações judicias e instalará a insegurança jurídica nas relações contratuais agrárias, onde quem sai perdendo serão os produtores rurais.
Porém, o grande absurdo está na exceção trazida no § 10, pois na prática vai acabar por discriminar os produtores rurais qualificados como agricultor familiar e empreendedor familiar rural. Isso porque o efeito prático de tal disposição será a restrição do acesso à terra para tais produtores rurais, visto que para os proprietários não vai ser vantajoso firmar contratos agrários com agricultores familiares, gerando um inadmissível problema de exclusão social.
Por conta disso, cumpre o Congresso “retirar o jabuti da árvore”, razão pela qual a exclusão do art. 54 é a medida mais correta a fim de não gerar os conflitos anteriormente descritos, evitando a insegurança jurídica para os produtores rurais, salientando que a atualização dos contratos agrários deve ser feita mediante lei específica para tal fim, com ciência jurídica, conhecimento e técnica.
—
Notas:
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm
[2] Conforme síntese elaborada por POMPEU, Ana. Bolsonaro assina MP que diminui ingerência do Estado na atividade econômica. In: Conjur, 01. Mai. 2019, disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-01/bolsonaro-assina-mp-diminui-ingerencia-estado-economia
[3] https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/136531
[4] POMPEU, Ana. Bolsonaro assina MP que diminui ingerência do Estado na atividade econômica. In: Conjur, 01. Mai. 2019, disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-01/bolsonaro-assina-mp-diminui-ingerencia-estado-economia