sábado , 23 novembro 2024
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Luís XIV, o Rei Sol - créditos: Wikimedia Commons

A deslegitimação dos títulos de propriedade e o Rei da França que queria ver o testamento de Adão

por Rogério Reis Devisate.

Durante a semana, impactante fala de um político paranaense que questionou a legitimidade dos títulos de propriedade ganhou grande repercussão nas redes sociais, incentivando invasões de terra ao dizer que só reconhece título “assinado por Deus”.

A fala soou algo parecida com o que disse o Rei da França, contra o Tratado de Tordesilhas, arbitrado pelo Papa, indagando se a divisão das terras entre Portugal e Espanha estaria no Testamento de Adão.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS – UM POUCO DE HISTÓRIA, QUE PULSA EM CICLOS, NAS AÇÕES HUMANAS

 

É sempre bom lembrar que os  portugueses se tornaram os melhores navegadores, ampliaram as suas conquistas, dominaram a região e iniciaram o movimento de expansão europeia, até contornar o cabo da Boa Esperança, em idos de 1448, inaugurando lucrativa rota comercial para o Oriente.

Isso não aconteceu por acaso.

Portugal, em idos de 1249, já tinha as fronteiras semelhantes às atuais e foi o primeiro país da Europa a escapar da pressão dos Mouros.

Cerca de 100 anos depois, 1/3 da sua população morreu pela Peste e, tendo perdido tanta força de trabalho para a produção de alimentos, Portugal lançou-se ao mar.

Não havia outro caminho e, sob os ecos dos brados do romano General Pompeu, Portugal se valia da máxima de que “Navegar é preciso, viver não é preciso”, também acolhida e difundida por Fernando Pessoa, o grande Poeta (palavra aqui grafada com letra maiúscula, intencionalmente, para enaltecer a sua estatura cultural e valor).

Os detalhes fazem a diferença e Portugal, confortável com sua hegemonia, não quis financiar a viagem de Cristóvão Colombo, que pretendia se aventurar em cruzar o Oceano em busca de novas terras.

Colombo, então, procurou Fernando e Isabela, os reis da Espanha, ao tempo poderosa, fortalecida e unificada, compreendendo os reinos de Castela, Leão e Aragão.

Devidamente financiado, Colombo partiu para a descoberta do Novo Mundo: a América.

O Rei João I, de Portugal, se arrependeu de não ter apoiado Colombo.

Fortalecida, a Espanha passa a disputar com Portugal o poder e os dois países passaram a viver sob o risco de iminente conflito.

Então, Espanha e Portugal apelaram à autoridade superior, da época: o Papa Alexandre VI.

Naquele tempo, o Papa era o todo poderoso representante de Deus na Terra e, por isso, foi convocado a mediar a situação, dividindo o hemisfério ocidental em duas partes, pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494.

Em seguida, os dois países se lançaram ao Atlântico e as terras do Brasil (descoberto em 1500) ficaram com Portugal e com a sua língua e cultura e todo o Oeste de Tordesilhas ficou sob o domínio Espanhol.

Óbvio que tal solução não agradou a todos.

O todo poderoso Rei da França não concordava com aquilo e chegou a declarar que “gostaria de ver a cláusula no testamento de Adão”, que negaria à França as terras no Novo Mundo.

Tal fundamento depois justificou os ataques dos piratas franceses às embarcações de Portugal e Espanha, que cruzavam o Oceano Atlântico, carregados de ouro, prata e outros ricos produtos.

Eram tempos de conquistas e de guerras por conquistas…

E, agora, muito voltando no tempo, o direito de propriedade certamente também foi uma conquista histórica da humanidade.

A origem da propriedade remonta aos povos antigos, perdendo-se no tempo dos tempos entre a identificação do ser humano como pessoa (o ser) e como sujeito de direitos (o ter).

Mesmo antes da invenção da língua escrita, considera-se que havia o que poderíamos resumir na ousada fórmula: o meu, o seu e o nosso.

A origem da conquista da propriedade decorria do uso da força. Era a lei do mais forte.

A propriedade era conquistada por guerras, nas quais o sangue tingia o solo de vermelho e os rios e mares ficavam também assim tingidos, ao carregar os corpos e despojos por suas correntes…

 Guerras horrorosas, de irmãos contra irmãos do mesmo povo, com armas que tinham de ser pelas próprias mãos cravadas no corpo do adversário, olhando nos seus olhos, até vê-lo morrer.

É bom relembrar que também não existiam a aquisição de imóveis por usucapião, garantia de posse para o trabalho da terra, respeito às comunidades tradicionais, imunidade contra abusos dos reis e governantes ou aquisição de imóveis por meio de financiamentos bancários ou por sistema de títulos dados pelos governos ou órgãos como Incra e afins.

Os países e povos viviam em guerras terríveis, com os exércitos se organizando em torno de uma ideia coletiva e da luta por conquistas ou defesa do “nosso” e pela tomada à força do que outros possuíssem.

Paralelamente, as famílias lutavam pela linha divisória entre o “meu” e o “seu”.

Eram motivo de conflitos a demarcação dos limites e do controle das melhores terras agricultáveis, das águas correntes dos rios e da melhor localização para a fixação de rotas comerciais – aliás, até hoje é assim, aqui e em todo o mundo!

A história da propriedade, da posse e do domínio sobre as terras se confunde com a própria história da humanidade e com os sistemas de organização política dos povos.

Lutas reais alimentaram lendas, como a de Hobin Hood, que lutava contra os abusos das leis e dos tributos, as dificuldades ao sustento do povo e a tirania dos reis e regentes.

Só para deixar claro, a mítica lenda coloca um indivíduo do povo lutando contra os abusos dos que agiam em nome da Coroa do Rei, num tempo em que não existia limites aos poderes dos reis, os quais representavam, sozinhos, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Assim, os reis da época, concentravam todo o poder consigo. Não havia limites constitucionais e legais e nem Poder Judiciário autônomo e não dependente das graças do Executivo (e do Poder Moderador).

Não existiam eleições e o rodízio de partidos e líderes escolhidos pelo povo, para funções como as que temos hoje nos países democráticos e republicanos, como o Brasil. Aqui o povo elege o Presidente da República e os Parlamentares que fazem as leis.

A propósito, por respeito às regras legais e constitucionais é que já tivemos a eleição e a posse de líderes e gestores de várias colorações partidárias, do que se chamaria de Esquerda ou de Direita, nas últimas décadas, como exemplificam os casos de JK, Jânio Quadros, Tancredo, Collor, FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro, bem como a posse constitucional de outros presidentes, que antes exerciam a Vice-Presidência, segundo as regras previstas, como João Goulart, José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer.

Comento estes aspectos por homenagem à estabilidade das relações políticas e sociais, segundo regras escritas nas Constituições Federais e no regime de representação popular, próprio das Democracias, onde o povo tem voz e o poder é exercício pelo rodízio e não pela permanência eterna de uma diretriz.

Contudo, mesmo um sistema de tal natureza não afasta a ocorrência de injustiças… Essas foram e são cometidas pela cobiça dos homens e por muitos julgarem o “ter” como algo mais valoroso do que “ser”.

Isso faz parte das fraquezas do ser humano e tanto é assim que a acumulação de bens e riquezas envolve traços de vários dos chamados 7 pecados capitais, numa mistura da avareza com a soberba e a inveja.

Não seria impróprio considerar, portanto, que a legitimidade da luta por terras está na raiz da história humana.

Conflitos por terras, injustiças, abusos de Direito e ações motivadas por paixões humanas e sentimentos menores motivaram algumas das maiores batalhas da História, como a Guerra de Tróia.

A passagem, narrada por Homero, é popularizada em torno da lenda do Cavalo de Tróia.

Sabemos, porém, que tal aparelho surge como estratégia, no final do conflito.

O que mais importa é saber como começou aquela guerra, pois a remota motivação foi decorrência da ira do marido traído, que ecoou e foi manobrada e explorada, para movimentar exércitos e os interesses de muitos oportunistas, que enxergaram além daquele movimento inicial e, motivados pela cobiça, dele se valeram para unir povos em torno de um grande ideal de conquista de terras.

Assim caminhava a humanidade. Assim ainda caminha.

 

A PROPRIEDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL, NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

A Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã, em resposta às Constituições Outorgadas de 1967 e 1969, traz o Direito de Propriedade em seu seio e logo no início, como direito e garantia fundamental.

A respeito, há expressos comandos no art. 5º, da Carta Política de 1988.

Primeiro, no caput do art. 5º, garantindo-se “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (destacamos o trecho).

Assim, reconhecida está a propriedade, como direito constitucional, inviolável!

Depois, no inciso XXII, do mesmo art. 5º, enaltece tal ideal ao dizer que “XXII – é garantido o direito de propriedade”.

Tal categorização é de extrema relevância para o intérprete, porquanto já no art. 5º, da Carta Política de 1988, se garante o direito de propriedade e com o status de inviolável.

Aliás, bom considerar que primeiro se assegura a sua inviolabilidade e depois se a garante como direito.

Ademais, é crível que a localização do Direito de Propriedade no texto da Constituição diz muito sobre o seu valor constitucional.

Quis o Poder Constituinte Originário que a propriedade viesse [antes dos direitos sociais, dos direitos políticos, da organização da Nação, das atribuições do Presidente da República e dos Ministros, da tributação e do orçamento etc.

Ora, em certa medida, como sabido, o Direito de Propriedade é expresso num título documental, que fundamenta o seu direito, seja uma escritura de compra e venda, uma sentença em ação de usucapião, uma escritura de doação, um formal de partilha em inventário etc.

De sorte que, ao se questionar genericamente o valor dos títulos de propriedade e dos fundamentos dos direitos ali expressos, também se estaria contrariando a própria Constituição Federal que assegura o direito de propriedade – e, como inviolável.

 

OS TÍTULOS DE PROPRIEDADE E DE POSSE, A LUTA PELO DIREITO E O GOL CONTRA

 

Essas linhas são escritas ainda sob o impacto de trecho de frase que ganhou os jornais ao longo da semana, parecendo deslegitimar os títulos de propriedade, na medida em que estes deveriam valer apenas se assinados por Deus e com firma reconhecida.

Como visto, é um ponto de vista muito semelhante ao que teve, no passado, o Rei da França, contra o Tratado de Tordesilhas.

Naquele tempo, como lembramos acima, justificou-se depois a pirataria dos navios franceses contra os barcos portugueses e espanhóis.

Os tratados entre os povos são legitimadores de condutas e acordos estabelecidos em busca de um caminho de paz e tolerância.

Buscam uma harmonia e satisfatório modo de convívio. Tratados e acordos internacionais encerraram e evitaram muitas guerras.

Em certa medida, os títulos de posse e de propriedade, também têm essa finalidade.

São documentos que dão segurança a quem adquiriu terra por usucapião, por título do governo ou por quem a comprou e pagou pela terra ou pelo pequeno imóvel para moradia. Ao definir direitos, os títulos definem os limites dos imóveis e evitam guerras entre famílias e desentendimentos sem justificativa e, numa evolução histórica, as desavenças não devem mais ser resolvidas com derramamento de sangue, sendo passíveis de ser levadas ao Poder Judiciário, para ser julgadas conforme as leis elaboradas pelo Poder Legislativo, eleito pelos representantes do Povo.

Aliás, é crível pensar que a deslegitimação dos títulos de propriedade deslegitimaria até a própria luta por títulos de terra, algo que está na raiz de legítimos brados sociais!

Quantos povos e comunidades tradicionais lutam por regularização dos seus documentos? São quilombos, gerazeiros, posseiros e ocupantes de terras sem regularização fundiária, produtores e pessoas que estão à margem do Sistema legal por falhas históricas e por dificuldades operacionais dos governos – e, aqui, lembramos, dos que já foram exercidos por várias colorações político-partidárias, com nos mostra a rápida menção a fatos da história recente do nosso país.

Tal fala, veiculada durante a semana, seria, assim, um gol contra?

Ora, sem o vigor desses títulos, lutas históricas se deslegitimam…

Se os que não tem títulos ou terra para plantar e morar lutam por isso, não ficariam os seus legítimos pleitos esvaziados quando se questiona a legitimidade desses mesmos títulos?

A luta deve ser por respeito e pelos maiores valores que a humanidade possa cultuar, para alcançar mais elevados patamares…

Dar outro sentido às palavras não é discordar das históricas lutas?

Como se diz, “não é não”! Mensagem mais clara, impossível. Simples assim!

As palavras são instrumento poderoso.

Nas guerras, as armas, tanques, navios e aviões se movimentam e disparam após comando dado pela palavra!

É a palavra que conquista, que acolhe, que fere, que arma e desarma. É a palavra que declara guerra e que conduz à paz.

E palavras ditas não voltam mais…

A mensagem preocupa, porque parece ser dirigia aos titulares e proprietários e à deslegitimação dos seus títulos. E é nesse propósito que foi proferida…

Não pensamos que os proprietários e produtores e moradores que possuam títulos legítimos devam se preocupar… Não pensamos que os que compraram ou obtiveram por usucapião ou herança devam se preocupar…

Tal discurso deslegitimador não deve produzir maior eco, embora, se levado ao pé da letra, seja capaz de questionar até as regras do sistema eleitoral que podem dar a vitória a qualquer dos candidatos… Questionar a legitimidade do que se pretende fazer é deslegitimar-se…

Noutras palavras, se as regras da eleição forem ilegítimas, não se deve disputá-las.

Na mesma senda, se os títulos de propriedade são ilegítimos, não se deve tenta obtê-los…

Só que parece que o tiro saiu pela culatra, ao atingir aqueles que anseiam exatamente obter títulos que lhes proporcione direitos sobre terras e que lutam por terras para ter o direito de delas cuidar, gerir, usar, fruir, plantando, criando, produzindo e morando…

Tiro pela culatra, como se diz… ou gol contra.

Noutro foco, não se pode desdenhar daquilo que não se tem e se deseja ter.

Assim, deslegitimar títulos jurídicos também deslegitima o Sistema Jurídico!

Por fim, parece que o discurso carrega um Axioma, rasgando a própria razão de ser das históricas lutas populares em torno do direito de se obter terra e os títulos garantidores dessa terra própria! Algo a se refletir…

Rogério Reis Devisate – Advogado. Defensor. Escritor. Palestrante. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Fluminense de Letras e da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ (instagram @rogeriodevisate – E-mail [email protected])

 

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