quinta-feira , 21 novembro 2024
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Direito Agrário - foto: Cláudio Grande Jr.

Terras para a China? E se o maior parceiro comercial virar concorrente?

por Rogério Reis Devisate.

 

O continente africano e a China têm forte parceria e a literatura estrangeira nos relata a dimensão da transformação daquele imenso continente.

São livros não publicados no Brasil, com títulos como China’s Second Continent: How a Million Migrants Are Building a New Empire in Africa[1] (Segundo continente da China: como um milhão de migrantes estão construindo um novo império na África), THE DRAGON’S GIFT the real story of china in africa[2] (O presente do dragão: a estória real da China na África) e Will Africa Feed China? [3] (A África alimentará a China?).

Há outros, sobre temas correlatos e aquelas vastas áreas continentais, dos quais ora destacamos: Land grabbing. Come il mercato delle terre crea il nuovo colonialismo[4] (Como o mercado de terras cria o novo colonialismo), Il land grabbing e la guerra d’Africa[5] (A grilagem de terras e a guerra na África) e Land Grabbing in Africa: The Race for Africa’s Rich Farmland[6] (Grilagem de terras na África: a corrida pelas ricas terras agrícolas da África).

Por mais de 20 anos temos estudado o tema, a respeito publicando artigos e dois livros: Grilos e Gafanhotos, Grilagem e Poder[7] e Grilagem das Terras e da Soberania[8].

Aquelas obras, inicialmente citadas, produzidas sobre a dominação estrangeira no continente africano, bem representam como a dominação passou a ter novo formato. No lugar das conquistas, com guerras e opressão de todas as formas, o fluxo de financiamentos e as aquisições de terras fazem do grande continente africano o produtor da riqueza e da comida que segue para outros países. Assim, a história global de dominação não se repete com as  exatas mesmas notas de outrora, mas a sinfonia continua sendo tocada, com outros arranjos e o mesmo resultado.

Nestas fartas e ricas terras brasileiras, os produtores hoje instalados desbravaram os sertões e transformaram o país em grande produtor de riquezas e alimentos. Entretanto, no lugar de ser recompensados, tendem a ganhar concorrência aqui dentro, por entidades ligadas a governos estrangeiros, notadamente se houver o afrouxamento da legislação sobre a aquisição de terras por estrangeiros e se estes, de fato, vierem a ingressar com financiamentos fortes para transformação de 40 milhões de hectares em áreas exploráveis.[9]

Apenas para contextualizar, sobre os 40 milhões de hectares, basta dizer que essa área corresponde ao total da produção de soja, no Brasil, em 2021/2022![10]

Com relação à venda de terras a estrangeiros, a lei vigente limita (como quer a Constituição Federal, no seu art. 190)[11] cada unidade a 2.500 hectares, como contundente resposta ao grave cenário revelado pela CPI da venda de terras a estrangeiros (1967).[12]

Na contramão, o projeto em tramitação no Congresso Nacional[13] (PL 2963/2019) não fixa limite para o tamanho de cada área – para os particulares. Além disso, admite a aquisição de posses, algo difícil de ser controlado pelo Estado e pela sociedade, já que não são registráveis nos cartórios do registro de imóveis. A propósito, em fevereiro de 2021, a Comissão Nacional de Assuntos Fundiários, da União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU) formulou Parecer e o endereçou ao Congresso Nacional, alvitrando a realização de audiências públicas e apontando sombras na legalidade e constitucionalidade do aludido projeto de lei, ao passo que, mais recentemente, a Procuradoria Geral da República elaborou detalhada Nota Técnica[14], pronunciando-se pela inconstitucionalidade daquela proposta legislativa.[15] A rigor, as situações visualidadas e o contexto não possuem muita distinção do que a literatura internacional indica acontecer no continente africano…

Em princípio, pode parecer haver vantagens, mas a doutrina estrangeira e a lupa indicam que a questão é menos de fluxo econômico das mercadorias e mais de estratégia política e de Soberania Nacional e, também, de posicionamento da estrutura rural diante da chegada dessas potências, capitaneadas pelos investimentos maciços e a necessidade estratégica de alimentar a maior população do mundo.

Nada há de errado ou questionável na necessidade expansionista ou do interesse nacional daquele ou de outro país. Não há nuance de qualquer preconceito ou resistência a povos ou nações. A grande questão é: por qual motivo não somos, também, protecionistas, expansionistas ou nacionalistas? Se outros podem ser nacionalistas e tudo fazer para proteger os seus, hoje e no futuro, por qual motivo não podemos valorizar e proteger os nossos nacionais?

A propósito, Alessandro Octaviani[16] ensina: “China e EUA: proteger seus mercados contra o controle por capitais estrangeiros. Na China […] A lei de 2020 continua restringindo ou proibindo o investimento externo em diversas áreas”.

Vale considerar que os grandes parceiros comerciais e compradores só manterão tal posição enquanto tiverem a necessidade de aquisição. A partir do momento em que tenham as mesmas condições de produção, deixarão de ser grandes compradores e passarão a ser fortes concorrentes.

No fim, efetivamente, a riqueza nãserá nossa e nem dos nossos produtores, pois será levada daqui, portransferência dos altos valores envolvidos e in natura. Os nossos produtores e nossa cadeia produtiva tenderão a perceber a concorrência e a diferença no quilate dos negócios mundo afora…

Em recente artigo, intitulado “Monopsônio chinês afeta o mundo”[17], dissemos:

Quando um único e grande comprador adquire produtos de vários vendedores, por longo tempo, não domina só os preços, já que cria complexa cadeia de dependência. Esta acaba produzindo também ingerências políticas que retroalimentam o seu poder de compra. A cadeia de fornecedores se torna tão dependente que começa a disputar entre si, como num leilão às avessas

A expansão, na forma de financiamento, em troca de abastecimento (leia-se, fornecimento de alimentos) equivaleria à condição de guerra quase ideal, pois dispensa o uso de armas e a mobilização de exércitos.

A Índia e a China precisam de segurança alimentar para as suas populações – de cerca de 1 bilhão e meio de pessoas, cada. Mais ainda: necessitam crescer e adquirir o controle das terras cultiváveis. Buscam novos produtos por consumir e o controle do fluxo das cadeias produtivas e dos alimentos.

Em sentido figurado: quem possuir a padaria venderá os pães. Se a nossa padaria for vendida, teremos de pagar pelos pães e, mais do que isso, pelo preço que o novo proprietário quiser nos vender ou… ficar sem.

Esse é o quadro que se desenha – a exemplo do que se identifica no continente africano. Ainda estamos em tempo de resistir, como Nação, em prol dos brasileiros – dos produtores instalados, dos proprietários rurais, dos envolvidos nas cadeias produtivas, do nosso povo que sua e trabalha muito para ter o que comer a cada dia, dessa imensa massa que está pagando alto pelo alimento e daqueles que não têm o que comer.

Notas:

[1] FRENCH, Howard W. China’s Second Continent: How a Million Migrants Are Building a New Empire in Africa. USA. Knopf; 1st edition. 2014. 304 pages

[2] BRAUTIGAM, Deborah. The Dragon’s Gift: The Real Story of China in Africa. Reino Unido. OUP Oxford; Illustrated edition, 2011. 414 páginas.

[3] BRAUTIGAM, Deborah. Will Africa Feed China?  Reino Unido. -Oxford University Press; 1st edition. 2015, 247 páginas.

[4] LIBERTI, Stefano. Land grabbing. Come il mercato delle terre crea il nuovo colonialismo. Italian. Minimum Fax,2011, 903 páginas.

[5] DI SALVO, Michele. Il land grabbing e la guerra d’Africa. Italian. 2014. 135 páginas.

[6] DEMISSIE, Fassil. Land Grabbing in Africa: The Race for Africa’s Rich Farmland. USA,  Routledge, 2017. 154 páginas

[7] DEVISATE, Rogério Reis. Grilos e Gafanhotos, Grilagem e Poder. Ed. Imagem. Rio de Janeiro, 2017, 181 páginas.

[8] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Ed. Imagem. Rio de Janeiro, 2017, 416 páginas.

[9] Uol. Brasil negocia com China transformação agrícola do país, por Jamil Chade. 27.3.2023: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/27/brasil-negocia-com-china-transformacao-agricola-do-pais.htm?cmpid=copiaecola; consulta 30.3.32023, às 13:18h.

[10] Embrapa. “Soja no Brasil. Produção: 123.829,5  milhões de toneladas. Área plantada: 40.921,9 milhões de hectares”… – https://www.embrapa.br/soja/cultivos/soja1/dados-economicos; consulta 30.3.2023, às 14:55h.

[11] BRASIL. Constituição Federal, art. 190: “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”. (destaque nosso).

[12] DEVISATE, Rogério Reis. Venda de terras a estrangeiros: passado, presente e futuro – cinquentenário da cpi da venda de terras a estrangeiros. Homenagem à sua importância histórica e à legislação que gerou. Site Jus Navigandi, 03.12.2017 – https://jus.com.br/artigos/62606/venda-de-terras-a-estrangeiros-passado-presente-e-futuro

[13] DEVISATE, Rogério Reis. PL 2963/2019 é inconstitucional e lesivo à segurança nacional. Site Consultor Jurídico – Conjur, 15 de janeiro de 2021.  https://www.conjur.com.br/2021-jan-15/devisate-inconstitucional-pl-29632019-lesa-seguranca-nacional.

[14] MPF. NOTA TÉCNICA N° 1/2022 – 1ª CCR GT Terras Públicas e Desapropriação. Fonte https://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/copy3_of_NOTATCNICAN120221CCRGTTerrasPblicas1.pdf. Consulta 30.3.2023, às 22:43h.

[15] MPF. MPF posiciona-se contra projeto de lei que flexibiliza regras para aquisição de terras por estrangeiros, 07.2.2023. Fonte https://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-posiciona-se-contra-projeto-de-lei-que-flexibiliza-regras-para-aquisicao-de-terras-por-estrangeiros. Consulta em 30.3.2023, às 21:16h.

[16] OCTAVIANI, Alessandro. Comércio e concorrência: “livres” ou “estratégicos”? Artigo, Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Direito;, 23 de Agosto de 2021 – Fonte https://direito.usp.br/noticia/556e3060e398-comercio-e-concorrencia-livres-ou-estrategicos- ; Consulta: 30.3.2023, 21:39h.

[17] DEVISATE, Rogério Reis. Monopsônio chinês afeta o mundo. Artigo; A Gazeta do Amapá, 18.3.2023. Fonte https://agazetadoamapa.com.br/coluna/3289/monopsonio-chines-afeta-o-mundo. Consulta 30.3.2023, 21:46h.

Rogério Reis Devisate – Advogado. Defensor. Escritor. Palestrante. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Fluminense de Letras e da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ (instagram @rogeriodevisate – E-mail [email protected])

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