Em parecer da Advocacia-Geral da União/IBAMA, o Procurador Federal Eduardo Fortunato Bim destaca a inexistência de tratamento cruel ou maus-tratos (in re ipsa) aos animais na exportação de gado vivo via terrestre ou aquaviária, tratando-se de prática lícita pela qual não deve haver intervenção dos órgãos ambientais pela sua prática, exceto se surgirem indícios veementes de crueldade aos animais.
Em outras palavras, o IBAMA destaca que a exportação de gado vivo em navios é atividade lícita que não configura maus-tratos aos animais, sendo que o transporte de gado obedece a parâmetros internacional definidos pela Organização Mundial de Saúde Animal (World Organisation for Animal Health – OIE).
Além disso, o IBAMA salienta que a rigorosa legislação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e da OIE (Código Sanitário de Animais Terrestres) também impedem que se fale em maus-tratos ou crueldade aos animais na prática de exportação de gado vivo.
Transcrevemos a ementa do referido parecer:
EMENTA: DIREITO AMBIENTAL. BEM-ESTAR ANIMAL. EXPORTAÇÃO DE GADO VIVO VIA AQUAVIÁRIA (TRANSPORTE MARÍTIMO E FLUVIAL). INEXISTÊNCIA IN RE IPSA DE CRUELDADE OU MAUS-TRATOS. COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO (MAPA – UNIÃO). AO ÓRGÃO AMBIENTAL COMPETE COIBIR A CRUELDADE E OS MAUS TRATOS. DISTINÇÃO ENTRE MAUS TRATOS E O MERO DESCUMPRIMENTO DAS NORMAS DE BEM-ESTAR ANIMAL.
I – Inexistência de tratamento cruel ou maus-tratos (in re ipsa) aos animais na exportação de gado vivo via terrestre ou aquaviária. Se o confinamento do animal, por si só, não caracteriza maus-tratos (STJ), com tanto mais razão não configuraria o confinamento durante o transporte do gado, que consta com normas internacionais (Organização Mundial de Saúde Animal/World Organisation for Animal Health – OIE) admitindo a prática e impondo os padrões de bem-estar animal. As próprias normas da OIE reconhecem que o transporte não é um ato cruel. Se o transporte dos animais para exportação fosse ato cruel haveria normas internacionais vedando-o, entretanto, o que existe é o contrário: normas que admitem não só transporte como também garantem o bem-estar animal. O Código Sanitário de Animais Terrestres da OIE prevê expressamente a possibilidade de transporte de animais via marítima ou aquática dentro de um mesmo país (art. 7.2.3), bem como reconhece a juridicidade da prática da exportação de gado vivo por via marítima.
II – Para garantir o bem-estar animal na sua exportação (Instruções Normativas 56/08 e 13/10), a rigorosa legislação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e da OIE (Código Sanitário de Animais Terrestres) também impedem que se fale em maus-tratos ou crueldade aos animais. A interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) da cláusula constitucional que veda o tratamento cruel aos animais (v.g., vaquejada, briga de galo e farra do boi), apenas corrobora a inexistência de maus-tratos na exportação do gado vivo.
III – A competência dos órgãos ambientais para a averiguação dos maus-tratos não prescinde em regra da expertise das normas de bem-estar animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), órgão familiarizado com o campo e com a questão pecuária. Esse é um dos motivos pelos quais os veterinários de pet shop geralmente não são indicados para analisar animais grandes e inseridos em uma lógica de produção rural (v.g., bovinos), assim como os veterinários fiscais do Mapa, por exemplo, também não são indicados para análises efetuadas em pet shops.
IV – O mero descumprimento de alguma norma de bem-estar animal não é suficiente, por si só, para caracterizar os maus-tratos ou o tratamento cruel aos animais. Existe um limbo entre os maus-tratos e a eventual não obediência às normas de bem-estar animal que deve ser considerado pelos órgãos ambientais, sob pena se sobreporem pura e simplesmente às atribuições do Mapa.
V – Licitude dos despejos do navio decorrentes da limpeza dos rejeitos dos animais em alto-mar por existir norma de direito internacional admitindo-a e a capacidade de depuração do mar aberto superar em muito a quantidade de dejetos orgânicos despejada pelos navios cargueiros de gado. Quanto à capacidade de depuração, é a mesma lógica dos emissários submarinos, mas em escala muito menor, porque os emissários despejam sua carga continuamente, sempre no mesmo lugar em maior volume do que os navios. A Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (Marpol 73/78) admite expressamente o descarte dos excrementos dos navios cargueiros dos bovinos no mar, desde que em distância maior do que 12 milhas náuticas da terra mais próxima e que não sejam descarregadas instantaneamente, mas com vazão moderada quando o navio estiver em movimento e com velocidade não inferior a 4 nós (Anexo IV, Regra 11, 1, 1), bem como que os restos mortais do gado, depois de passar no triturador (Anexo V, Regras 4 e 5). Ademais, as águas internacionais são reguladas pela lei do país ao qual o navio pertence, não havendo competência da jurisdição brasileira para intervir na questão ou mesmo interpretar a legislação do país da bandeira do navio (CNUDM, artigo 92, 1).
VI – Inexistência de violação à Constituição na exportação de gado vivo a países onde o abate ocorre de acordo com os preceitos religiosos (v.g., método halal ou kosher), tendo em vista a liberdade de religião (cf. Corte Constitucional alemã) e a sua admissão pela legislação brasileira, bem como ser equivocado afirmar que os métodos de abate halal e kosher são cruéis apenas por não implicarem na mesma insensibilização do animal. Impossibilidade e impropriedade da aplicação analógica das vedações da extradição à exportação do gado a países que abatem de acordo com preceitos religiosos.
VII – Necessidade de os maus-tratos ou a crueldade serem provados por quem o alega, não bastando especular a respeito.
VIII – Inexistência de interesse processual para a apresentação de autorizações e documentos que podem ser obtidos mediante o direito de acesso, pela falta de prévio requerimento administrativo (RE 631.240), e para os pedidos relativos ao cumprimento das normas de bem-estar animal delineadas pelo Mapa e OIE, sem apontar a razão pela qual elas estariam sendo descumpridas.
IX – O Ibama não tem legitimidade passiva para integrar essas ações judiciais porque sua competência ambiental, na ausência de competência para licenciar ou autorizar a exportação de gado vivo, é supletiva por força do princípio constitucional da subsidiariedade e da própria razão de ser do Sisnama, cujos integrantes formam um todo coordenado, evitando sobreposições e o desperdício de recursos humanos e materiais. Precedente: Parecer 41/2017/COJUD/PFEIBAMA- SEDE/PGF/AGU (PA 00435.017777/2017-50): “II – A incompetência do Ibama em licenciar acarreta a aplicação do princípio constitucional da subsidiariedade nas atividades de fiscalização ambiental, com a consequente ausência do dever de fiscalizar de forma primária. Dever principal do órgão licenciador e do gestor da unidade de conservação ou, em suas ausências, de forma secundária e escalonada do órgão municipal, estadual e federal. Leitura conforme a regulamentação da competência comum ambiental pela Lei Complementar 140/2011. Mesmo em se tratando de atividades não licenciáveis ou autorizáveis, a aplicação do princípio constitucional da subsidiariedade implica na competência primária para a fiscalização ambiental do ente federativo municipal ou estadual, somente passando para os entes de maior abrangência territorial (Estados e União) quando o de menor abrangência não conseguir se desincumbir do encargo.” Tendo em vista a simplicidade da análise dos maus-tratos pelos órgãos ambientais municipais ou estaduais, a ilegitimidade passiva do Ibama é flagrante, uma vez que a aplicação do benefício de ordem, derivado do princípio da subsidiariedade, não chegaria ao nível federal.
O parecer foi emitido após solicitação da VEDDAS – VEGETARIANISMO ÉTICO, DEFESA DOS DIREITOS ANIMAIS E SOCIEDADE E OUTROS, que questionava a exportação de gado vivo em navios, alegando que os animais sofriam maus tratos neste tipo de transporte, que ganhou repercussão após decisão judicial que impediu o navio NV Nada de seguir viagem para a Turquia carregando 25 mil bois. Após o incidente, as cargas de animais vivos foram suspensas no Porto de Santos.
Posteriormente, a decisão judicial foi reformada em segundo grau, possibilitando o prosseguimento da viagem e do retorno das atividades de carga de animais vivos no Porto de Santos.
Para saber mais sobre o caso NV NADA, recomendamos a leitura do artigo “A verdade sobre a exportação de gado vivo”, de autoria do advogado Alexandre Valente Selistre, um dos maiores especialistas do Brasil em questões jurídicas referentes à pecuária (clique aqui).