quinta-feira , 25 abril 2024
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Direito Agrário - Foto: Albenir Querubini

“Ordem Pública” em propriedade privada?

por Pedro Puttini Mendes.

 

Este é o paradoxo de mais um dos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no território sul-mato-grossense, mas que diz respeito a direitos constitucionais válidos em todo território nacional, a propriedade, seja rural ou urbana.

A ordem pública talvez só fosse realmente pública se, antes, não fosse em uma área/propriedade privada, onde o direito à propriedade e o exercício da posse ainda não foram alterados pelos ritos legais adequados (Decreto Federal nº1.775/1996 – demarcações de terras tradicionalmente ocupadas), onde o direito constitucional de propriedade se faz prevalecer acompanhado de suas proteções pelo particular, mas principalmente pelo próprio Estado.

Não faria sentido ainda imaginar que a mesma segurança pública ora “protegida” por uma suspensão de reintegração de posse, somente surgiu em situação de conflito porque um grupo de pessoas buscando direitos por suas próprias vias, instalou tal insegurança na região, sem qualquer decisão homologatória definitiva da área ou processo legal.

É o relato do caso feito pela própria decisão e divulgado pela notícia do dia 09 de abril, quando a presidência do Supremo Tribunal Federal – não os colegiados julgadores – analisou os seguintes pedidos liminares da Fundação Nacional do Índio: Suspensão de Tutela Provisória (STP) nº 17 e Suspensão de Liminar (SL) nº 1151, um deles questionando ato do Tribunal Federal da 3ª Região e o segundo uma decisão de reintegração da posse da 1ª Vara Federal de Dourados/MS.

O assunto interessa apenas ao proprietário e à comunidade tradicional envolvidos na disputa pela propriedade da terra? Não, já que a partir do momento em que, se deixa de reintegrar uma posse em uma área, onde apenas o relatório antropológico foi aprovado e não houve decreto demarcatório e homologatório, nos termos do art. 5º do mesmo decreto federal já citado, é chancelado um desrespeito a todo o conjunto de princípios e direitos que estruturam o que deveria ser o direito constitucional mais absoluto, o direito à propriedade.

De maneira extremamente semelhante à Suspensão de Liminar (SL) nº 1097, não apenas nesta mesma cidade de Dourados/MS, mas decidido de maneira singular pela mesma presidência do STF, nestes casos aqui relatados, a decisão se fundamenta no fato de que “parece demonstrar risco de acirramento dos ânimos das partes em conflito e consequente agravamento do quadro de violência na região, o que me conduz a reconhecer a plausibilidade do alegado risco à ordem e à segurança pública”.

A decisão implicou na suspensão de uma mobilização de 100 policiais, entre Polícia Federal e Batalhão de Choque de Polícia Militar, na área já demarcada com 3.750 hectares (homologados), com a pretensão de ampliação para 3.594 hectares (não homologados) no município de Caarapó.

Na melhor das interpretações PROCESSUAIS para estes casos, não há a mínima possibilidade de aplicação destas “suspensões de segurança” para reintegração de posse.

Curiosamente neste caso, diferente dos anteriores, não foi fundamentado na Lei Federal nº 8.437/1992 (art. 4º), mas em sua irmã gêmea, Lei Federal nº 8.038/1990 (art. 25), valendo pontuar que seja para um ou outro casos, a conclusão é a mesma, não se aplica à propriedade privada em vias de reintegração de posse.

Se o objetivo das duas leis, em texto idêntico é “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, tratam de prerrogativa justificada pelo exercício da função pública, na defesa do interesse do Estado, jamais invadindo a esfera privada do direito constitucional à propriedade e muito menos poderia tratar de questão demarcatória de competência do Executivo, quem homologa estas terras, por meio do Ministro da Justiça, é evidente a violação à repartição de competências entre Judiciário e Executivo, quem deveriam ser independentes E HARMÔNICOS entre si (art. 2º da Constituição Federal).

Por outro viés, propriedade privada, é responsabilidade notarial/registral onde se garantem os registros de títulos e o direito de propriedade e não dizem guardam relação com ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.

Enfim, é o outro registro de que, embora garantido pela maior lei brasileira, a Constituição Federal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV), enquanto estudiosos da lei, cabe-nos expor alguns debates jurídicos pelo bem do estado democrático de direito.

Pedro Puttini Mendes, Consultor Jurídico no Agronegócio, Palestrante e Professor de Direito Agrário e Ambiental, Membro da UBAU – União Brasileira de Agraristas, Ex-Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS. Email: [email protected]

 

Direito Agrário

Leia a decisão proferida na Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória nº 17/MS:

 

MEDIDA CAUTELAR NA SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA 17 MATO GROSSO DO SUL

REGISTRADO :MINISTRO PRESIDENTE
REQTE.(S) :FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL FEDERAL
REQDO.(A/S) :RELATOR DO AI Nº 5005085-61.2017.4.03.0000
DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
ADV.(A/S) :SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
INTDO.(A/S) :UNIÃO
PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
INTDO.(A/S) :PENTEADO PARTICIPAÇÕES E INVESTIMENTOS LTDA.
ADV.(A/S) :GUSTAVO PASSARELLI DA SILVA

DECISÃO

SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. COMUNIDADES INDÍGENAS GUAPO’Y GUASU E JEKORY GUASU. “FAZENDA SANTA MARIA – PARTE”. RISCO À SEGURANÇA E À ORDEM PÚBLICA. ACIRRAMENTO DO CLIMA DE CONFRONTO FUNDIÁRIO NA REGIÃO. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

Relatório

1. Suspensão de Tutela Provisória, com requerimento de medida liminar, ajuizada pela Fundação Nacional do Índio – Funai às 10:19 de 8.4.2018 (domingo),  objetivando suspender os efeitos de decisão proferida pelo Desembargador Federal Wilson Zauhy nos autos do Agravo de Instrumento n. 5005085-61.2017.4.03.000, em curso no Tribunal Regional Federal da Terceira Região, interposto contra decisão do juízo da Primeira Vara Federal de Dourados/MS que havia indeferido a medida liminar requerida na Ação de Reintegração de Posse n. 0000738-09.2017.403.6002.

O caso

2. Em 24.2.2017, Penteado Participações e Investimentos Ltda. ajuizou Ação de Reintegração de Posse n. 0000738-09.2017.403.6002/MS, com requerimento de medida liminar, em desfavor da União e da Fundação Nacional do Índio, buscando proteção da posse sobre o imóvel rural denominado “Fazenda Santa Maria – Parte”, objeto de invasão por grupo indígena da etnia Kaiowá, em 13.2.2017.

O requerimento de medida liminar foi indeferido pelo juízo da Primeira Vara Federal de Dourados/MS, decisão contra a qual Penteado Participações e Investimentos Ltda. interpôs o Agravo de Instrumento n. 5005085-61.2017.4.03.000.

Em 28.4.2017, o Desembargador Federal Wilson Zauhy deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal para determinar a reintegração da Agravante na posse do imóvel rural “Fazenda Santa Maria – Parte” (doc. 26), decisão contra a qual foi interposto agravo regimental que aguarda julgamento.

3. Daí a presente suspensão de tutela provisória, sustentando a Fundação Nacional Índio – Funai que o iminente cumprimento da ordem de reintegração de posse emanada pelo Desembargador Relator do Agravo de Instrumento n. 5005085-61.2017.4.03.000 no Tribunal Regional Federal da Terceira Região coloca em risco a ordem e a segurança pública.

Inicialmente, relata que “na última sexta-feira, dia 06.04.2018, no período da tarde, a Polícia Federal, por intermédio do Exmo. Delegado Denis Colares de Araújo, encaminhou à FUNAI o Ofício nº 1272/2018-DPF/DRS/MS (em anexo) informando que, considerando que não houve acordo para saída voluntária dos indígenas, “o cumprimento da decisão judicial se torna iminente”.

Esclarece que “não obstante a informação de que a Polícia Federal não iria indicar o dia do cumprimento da ordem judicial precária, a Coordenação Regional de Dourados/MS da FUNAI foi comunicada pelos Oficiais de Justiça de que haverá a reintegração de posse nos locais onde se encontram as Comunidades Indígenas Guapo’y Guasu e Jeroky Guasu no dia 09 de abril de 2018, às 06 (seis horas)”.

Afirma que o ajuizamento da presente medida de contracautela “durante o plantão desta Colenda Suprema Corte [seria] a única medida a ser adotada pela FUNAI para a proteção da vida e da segurança dos indígenas e das demais pessoas na região” (fl. 3).

Quanto ao litígio em exame, consigna que “de acordo com a Análise Cartográfica nº 281/17/CGGEO e Informação Técnica nº 31/2017/CODAN/CGID/DPT-FUNAI (em anexo), a Fazenda Santa Maria – Parte faz divisa com a Terra Indígena Caarapó (regularizada) e encontra-se próxima à Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I. Importa mencionar, no entanto, que o RCID Dourados-Amambaipeguá I é apenas uma etapa dos estudos demarcatórios da região que estão sendo conduzidos pela Funai. Ou seja, não estão ainda concluídos os estudos referentes à totalidade da bacia Dourados- Amambaipeguá”.

Prossegue afirmando que “a porção ocupada no Tekoha Guasu reivindicado pelo Povo Indígena Guarani-Kaiowá, cuja ocupação se discute nos autos da ação de reintegração de posse nº 0000738-09.2017.4.03.6002/MS, é objeto do processo de demarcação da totalidade da Terra Indígena Dourados- Amambaipeguá, estando em fase de estudos para identificação e delimitação pela Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI, já tendo sido constituído Grupo Técnico – GT, autorizado pela Portaria 789/PRES/2008”.

Argumenta que, “os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I, vizinha à área ocupada, já demonstram a incidência das caraterísticas que configuram a região como sendo área de ocupação indígena pelos povos indígenas Guarani e Kaiowá. O resultado dos estudos foi aprovado pela presidência da Funai, por meio do Despacho nº. 59/2016/Pres-Funai, de 12/05/2016, tendo sido o resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), a planta de delimitação e o memorial descritivo da área publicados no Diário Oficial da União de 13/05/2016, Seção 1, e no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso do Sul de 03/06/2016, em cumprimento do Compromisso de Ajustamento de Conduta referente ao PA n° 1.21.001.000065/2007-44”.

A requerente narra incidentes fatídicos relacionados à disputa fundiária entre índios e não índios ocorridos em Mato Grosso do Sul e a exacerbação no uso da força para repelir atos de retomada da posse pelos índios, o que estaria a demonstrar risco de grave lesão à ordem e à segurança públicas.

Menciona precedentes jurisprudenciais que corroborariam a prevalência da proteção dos direitos originários dos povos indígenas sobre pretensos direitos possessórios advindos de títulos dominiais cuja legitimidade se questiona.

Realça que

“o cumprimento da decisão liminar oriunda do TRF-3ª Região representa grave risco à ordem e à segurança públicas, em especial no que tange à Comunidade Indígena, aos fazendeiros da região e aos agentes policiais responsáveis pelo acompanhamento/cumprimento da medida.
Caso venha a ser cumprida, tal decisão comprometerá, sem dúvida, a segurança pública, em razão da POSSIBILIDADE DE GRAVES CONFLITOS ENTRE OS INDÍGENAS E A POLÍCIA, COM RISCO DE MORTES.
Ademais, é notório que, em casos como o presente – nos quais há, de um lado, os não índios, convictos de serem os proprietários da terra disputada, e de outro, os indígenas, com a proteção constitucional para permanência no território tradicionalmente ocupado –, o risco de enfretamentos entre indígenas e não indígenas é iminente, colocando em perigo a vida, a saúde e a incolumidade física dos envolvidos.
Acrescente-se que o presente caso tem contornos peculiares, que o tornam ainda mais acirrado, exigindo que o cenário instaurado seja tratado com a máxima cautela”.
Requer o deferimento de medida liminar para “afasta[r] a ordem de reintegração de posse deferida pelo TRF 3 no Agravo de Instrumento n. 5005085-61.2017.4.03.000, até o trânsito em julgado da ação”.

No mérito, pede a confirmação da medida liminar.

Examinados os elementos havidos no processo, DECIDO.

4. Registre-se, de início, que a documentação instrutória da inicial permite vislumbrar, com algum grau de plausibilidade, uma incompreensível demora em fazer chegar aos órgãos próprios do Poder Judiciário, em especial a este Supremo Tribunal, a questão agora apresentada na última hora, com o risco social aumentado pela inexplicável demora dos órgãos próprios do Poder Executivo encarregados de chamar à decisão judicial.

Isso porque a decisão monocrática que deferiu o pedido de antecipação de tutela, proferida pelo Relator do Agravo de Instrumento n. 5005085-61.2017.4.03.0000, Desembargador Federal Wilson Zauhy, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, está datada de 28.4.2017 (Doc-e 26), sem que sua suspensão junto a este Supremo Tribunal tenha sido buscada, em paralelo com eventuais negociações.

Ademais, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI foi comunicada da iminência do cumprimento da ordem de reintegração em 6.4.2018 (Dco-e 3 e 4).

Desde então, se entendesse e concluísse pelos riscos agora descritos, em especial para os indígenas atingidos pela decisão, seria de se esperar, como de eficiência obrigatória, que a Requerente ajuizasse imediatamente pedido de atribuição de efeito suspensivo.

Entretanto, a petição em exame só foi protocolada às 10h19 do dia de ontem (domingo), faltando menos de 24 horas para a operação de reintegração, sem que nem mesmo se tivesse acionado o plantão judiciário deste Supremo Tribunal (Doc-e 27).

Na espécie, a questão jurídica controvertida é de natureza constitucional, nos termos do art. 231 da Constituição da República. Dispõe este Supremo Tribunal de competência para examinar a questão cujo fundamento jurídico seja constitucional (art. 297 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, c/c art. 25 da Lei 8.038/1990), como consolidado na jurisprudência, destacando-se, por exemplo, os seguintes julgados: Rcl n. 475, Relator o Ministro Octavio Gallotti, Pleno, DJ 22.04.1994; Rcl n. 497-AgR, Relator o Ministro Carlos Velloso, Pleno, DJ 06.04.2001; SS n. 2.187-AgR, Relator o Ministro Maurício Corrêa, DJ 21.10.2003; e SS n. 2.465, Relator o Ministro Nelson Jobim, DJ 20.10.2004.

5. A presente medida de contracautela volta-se contra decisão pela qual o Desembargador Relator do da Primeira Vara Federal de Dourados/MS determinou a reintegração do proprietário da “Fazenda Santa Maria – Parte” na posse do imóvel rural. Para tanto assentou:

“Examinando as alegações desenvolvidas na peça recursal inaugural, extrai-se de forma clara e evidente que os fundamentos da decisão agravada têm como pressuposto que a área invadida possa ter sido tradicionalmente ocupada pelos indígenas, anotando que ‘os autores não trouxeram aos autos a íntegra da cadeia dominial do imóvel, o que possibilitaria a análise da qualidade da posse de acordo com os marcos temporal e da tradicionalidade da ocupação’ e, ainda, que ‘não há como presumir, sem que se colacione a íntegra da cadeia dominial, que na data da promulgação da CF/1988 não havia índios no local, ou que o imóvel não era objeto de disputa indígena’.
Observo, contudo, que os documentos Num. 566872 – Pág. 38/51 comprovam a titularidade da propriedade da agravante na área em debate, inexistindo nos autos qualquer indicação da existência de mácula capaz de confrontar o direito de propriedade certificado pelo registro imobiliário competente.
Por outro lado, a própria agravada reconhece que processo demarcatório das terras ainda está em andamento, não tendo sido proferido qualquer ato que reconheça a área em questão como de proteção indígena, afirmando que ‘embora a demarcação não tenha chego a seu termo final (…)’ (Num. 566832 – Pág. 12 ).
O que se coloca em confronto, portanto, no caso dos autos, é de um lado o direito de propriedade da agravante, calcado em certidões do registro imobiliário que lhe asseguram a propriedade da área invadida, sem comprovação de que sobre eles recaia qualquer vício ou mácula capaz de torná-las suspeitas ou questionadas, e de outro a alegação de que a área invadida seria tradicionalmente ocupada por indígenas, amparada tão somente na alegação da existência de processo demarcatório em andamento, desacompanhada de qualquer comprovação concreta do direito alegado. Ora, a situação descrita nos autos indica a invasão indígena de propriedade imóvel privada, devidamente comprovada por certidões expedidas pelo registro imobiliário, e não a invasão pela agravante de área prévia e tradicionalmente ocupada por indígenas.
Não se está, com isso, afastando a possibilidade de que ao término de eventual processo demarcatório, em que sejam devidamente observados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, seja reconhecido o direito da população indígena sobre a área em debate. Antes disso, contudo, não é possível aceitar que o alegado direito, sequer comprovado, possa prevalecer sobre o direito à propriedade, este sim, ao menos até aqui, inconteste” (doc. 26).

6. O exame preliminar dos autos revela que, embora não finalizado o processo de demarcação da terra indígena em foco, os estudos de identificação e delimitação foram concluídos com a aprovação do relatório de identificação elaborado pelo antropólogo Levi Marques Pereira, cujo extrato e conclusões foram publicados no Diário oficial da União de 13.5.2016 (docs. 15-18).

Embora a área em litígio não tenha sido declarada como de ocupação tradicional dos índios Guarani e Kaiowá pelo Ministro da Justiça, forçoso reconhecer que a conclusão desses estudos confere plausibilidade às alegações deduzidas pela Fundação Nacional do Índio.

No caso, a despeito das tratativas promovidas com auxílio da Fundação Nacional do Índio e da adoção de todos os meios possíveis para alcançar uma solução pacífica e evitar o emprego de violência contra os indígenas, não houve acordo, do que decorreu a ordem de desocupação forçada a ser cumprida às 6:00 de 9.4.2018 (hoje), a qual se pretende ver sustada por esta medida de contracautela.

7. A questão jurídica posta em exame não é nova neste Supremo Tribunal, que, ciente do clima de extrema conflagração decorrente do conflito fundiário instalado em Mato Grosso do Sul, em especial na região de Caarapó/MS, tem reconhecido o risco iminente de grave lesão à segurança e à ordem pública advindos do cumprimento forçado de ordens de reintegração em desfavor dos indígenas.

9. Ao examinar a Suspensão de Liminar n. 1.037, ajuizada pela Fundação Nacional do Índio para obstar o cumprimento de ordem de reintegração de posse deferida no Processo n. 0002396.05.2016.403.6002, destaquei:

“(…) 12. Se, de um lado, parece haver precipitação na promoção de ocupação de imóveis particulares a partir da conclusão de estudos antropológicos levados a efeito pela Funai, sem se aguardar a homologação do resultado desse estudo com a consequente declaração formal da tradicionalidade da ocupação indígena na região pela autoridade competente e, principalmente, sem que se apresse a conclusão do processo administrativo de demarcação, de outra parte não há como se subestimar que a demora na conclusão do processo administrativo competente, muitas vezes interceptado com excessiva judicialização de demandas sobre cada caso, incentiva a autotutela de interesses, o que resulta no aprofundamento do conflito fundiário na região e no emprego crescente da violência.
Não obstante seja de se reconhecer que a reintegração do possuidor direto na posse do imóvel rural restabelece a ordem fática instabilizada pelo esbulho judicialmente reconhecido, não é de desprezar que o exercício da força para a prática deste ato constitui mais um elemento desestabilizador do quadro social, colocando em risco a segurança de todos.
Nessa linha é que se revela a plausibilidade da argumentação traçada pela Funai ao afirmar haver “grande número de indígenas estão envolvidos na operação de retomada, dentre crianças, adultos e idosos, cuja retirada compulsória, e com o uso da força policial, poderá ensejar enfrentamentos entre os indígenas e fazendeiros, ou entre indígenas e os próprios policiais, colocando em risco a vida, a saúde e a incolumidade física de todos os envolvidos” (fl. 13).
As informações apresentadas e devidamente comprovadas pelos documentos que acompanham a presente suspensão de liminar dão conta do acirramento do conflito envolvendo a disputa pela Terra Indígena Dourados Amambaipequá I, localizada em Caarapó/MS, demonstrando grave risco de perda de vidas humanas de lado a lado do conflito se não se encontrar forma de evitar a execução forçada da ordem judicial de reintegração de posse.
Os fatos noticiados nos autos e nos boletins de ocorrência policial que instruem a presente medida de contracautela fornecem a dimensão e a gravidade do conflito fundiário havido no Mato Grosso do Sul e que tem ceifado vidas de índios e não-índios ao longos destes últimos anos. 
Qualquer que seja o lado sob o qual se analise o conflito narrado nos autos, é de se observar que o exercício indiscriminado da autotutela de direitos, seja pelas retomadas pelos indígenas das terras reivindicadas como ocupação tradicional indígena, seja pelo exercício de desforço próprio para a proteção do direito à propriedade legalmente constituída, tem nutrido atos de antijurídica, inaceitável e desmedida violência, com níveis críticos de beligerância a justificar o envio mesmo de unidades da Força Nacional para garantir a ordem e a segurança e para preservação de vidas humanas.
13. Na esteira da observação posta na inicial da presente suspensão de liminar e nos documentos a ela acostados há fundado risco de que as condições de violência na localidade se acirrem com o imediato cumprimento da ordem de reintegração na forma e no prazo determinados, o que potencializa o risco à integridade física de índios e não índios que ocupam a área sem o prévio cuidado a ser adotado para que tal medida se execute sem gravames.
Comprovada está ameaça à segurança das pessoas que estejam na área, evidenciando-se iminente e grave risco para todos, a justificar o uso excepcional da atribuição cautelar do juízo questionado” (DJ 27.9.2017).

10. Essa mesma compreensão há de ser empregada no presente caso, como fiz saber verbalmente à Advocacia Geral da União, às 6:08 de hoje, 9/4/2018, quando comunicada pela sua digna titular da apresentação desta suspensão, orientando, expressamente, impedir qualquer medida de violência ou emprego de força no local e determinando se aguardasse a imediata e prioritária análise do caso, o que faço neste ato.

A reintegração do autor da ação possessória na posse do imóvel em questão após a conclusão do processo de identificação e delimitação da Terra Indígena Dourados-Abambaipeguá I, cujo relatório antropológico foi aprovado pelo Presidente da Funai e publicado no Diário Oficial da União de 13.5.2016 (docs. 15-18), pode se traduzir em elemento encorajador da resistência pelos indígenas, potencializando o clima de hostilidade e tornando possível o uso da força para o cumprimento da ordem judicial, do que poderiam redundar consequências graves e inaceitáveis socialmente.

O contexto parece demonstrar risco de acirramento dos ânimos das partes em conflito e consequente agravamento do quadro de violência na região, o que conduz ao reconhecimento da plausibilidade do alegado risco à ordem e à segurança pública.

A iminência do cumprimento da ordem de reintegração, inicialmente agendada para às 6:00 de 9.4.2018 (hoje), mas ainda não cumprida, conforme noticiado pelos órgãos competentes, está igualmente comprovada pelos documentos juntados aos autos eletrônicos (docs. 2-3).

11. Pelo exposto, defiro o pleito de medida liminar para suspender, de imediato, os efeitos da decisão proferida Desembargador Federal Wilson Zauhy nos autos do Agravo de Instrumento n. 5005085-61.2017.4.03.000 (art. 297 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, art. 25 da Lei n. 8.038/1990).

12. Manifestem-se, sucessivamente, o interessado e a Procuradoria-Geral da República (§ 1º do art. 297 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).

Comunique-se com urgência, inclusive por mensagem eletrônica.

Publique-se.

Brasília, 9 de abril de 2018, às 8:48.

Ministra CÁRMEN LÚCIA
Presidente

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