quinta-feira , 21 novembro 2024
Início / Julgados / Justiça Federal anula portaria que declarou tradicionalidade da Terra Indígena Passo Grande do Forquilha
Direito Agrário

Justiça Federal anula portaria que declarou tradicionalidade da Terra Indígena Passo Grande do Forquilha

“A 1ª Vara Federal de Erechim (RS) determinou a anulação de uma portaria emitida pelo Ministério da Justiça que declarava, como de ocupação tradicional kaingang, a área conhecida como ‘Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha’. Na sentença proferida em 27/2, o juiz federal Luiz Carlos Cervi entendeu estarem ausentes os requisitos previstos constitucionalmente para a concessão da área, de mais de 1.900 hectares, aos indígenas.

A ação popular, ajuizada por um morador de Sananduva, tem como réus a União, o Ministro da Justiça, a Fundação nacional do Índio (Funai) e os indígenas da etnia Kaingang. Segundo o autor, o procedimento administrativo desenvolvido pela Funai seria nulo, já que as terras objeto de disputa não estariam ocupadas pelos índios na época da promulgação da Constituição Federal de 1988. Ele afirmou que, no próprio estudo realizado pela fundação, haveria provas de que o grupo de indígenas teria se deslocado para o local em 2004, após um desentendimento entre lideranças da reserva do Ligeiro.

União e Funai contestaram defendendo a legitimidade do processo administrativo realizado. Argumentaram que as conclusões teriam sido embasadas em evidências históricas, antropológicas e etnográficas e que eventuais testemunhos em sentido contrário colhidos em juízo seriam tendenciosos.

Já o Estado do RS sustentou sua ilegitimidade para atuar como réu no processo judicial. Além disso, afirmou a necessidade de análise técnica dos documentos que teriam sustentado a declaração de ocupação tradicional.

Necessidade de modulação e ponderamento

Ao decidir o litígio, o juiz Carlos Cervi destacou a necessidade de modulação e ponderamento nos procedimentos de demarcação e destinação exclusivas de terras para as comunidades indígenas, já que praticamente todo o território nacional foi, um dia, ocupado por índios. Com base no entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ele explicou que “o conceito de ‘terras tradicionalmente ocupadas pelos índios’ não abrange terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Isso porque, também seriam requisitos essenciais para o reconhecimento a existência de conflito possessório em andamento ou obstinação dos indígenas na busca da retomada das terras na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, considerada o marco temporal para fins de demarcação.

Para Cervi, não há duvidas de que os Kaingang teriam ocupado as duas margens do Rio Forquilha até a década de 1970, época em que foram compelidos a abandonar gradativamente a área, “havendo narrativas sobre a ocorrência de mediação pela própria Funai e de forte empenho do Estado do Rio Grande do Sul em formalizar a venda dos lotes a agricultores”. Também teria ficado comprovado que, somente trinta anos depois, um grupo oriundo da Terra Indígena Ligeiro teria retornado ao local para reivindicar sua posse. “Conforme alegação do próprio Cacique Ireni Franco, a decisão em estabelecer o acampamento e reivindicar terras na localidade de Forquilha se deu em razão de troca de cacique ocorrida naquela comunidade”, observou.

“Nesse ponto, ainda que se admita que houve esbulho renitente por parte de não-índios até a desocupação completa da área pelos indígenas, o que, aliás, foi reconhecido nesta sentença, é incontroverso que na data da promulgação da CF/88 não havia qualquer conflito possessório, esbulho renitente de não-índios ou obstinação dos indígenas na busca da retomada das terras”, complementou Cervi.

Requisitos ausentes e acirramento dos conflitos

Segundo ressaltou, a demarcação de áreas que manifestamente não eram ocupadas por índios no marco temporal estabelecido, sem que os atuais proprietários sejam indenizados pela terra, “tem o potencial de gerar consequências graves e imprevisíveis, a exemplo de confronto ocorrido em 2016 entre agricultores e indígenas, que motivou o prefeito de Sananduva a decretar estado de calamidade pública”. Ele ainda deixou registrado que a interpretação do STF não impede o estabelecimento de áreas para os índios por outras formas jurídicas, como a compra de lotes ou a desapropriação por interesse social.

O magistrado julgou procedente a ação para reconhecer a ausência dos requisitos constitucionais e anular a Portaria Declaratória nº 498/2011, que declarou como de ocupação tradicional indígena Kaingang a área com superfície aproximada de 1.916 hectares, denominada “Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha”. Ele também suspendeu, até o trânsito em julgado do processo, a continuidade de quaisquer atos de demarcação. Cabe recurso ao TRF4″.

Fonte: JFRS.

 Direito Agrário

Confira a íntegra da sentença:

 

AÇÃO POPULAR Nº 5000854-26.2012.4.04.7117/RS

AUTOR: AMARILDO SPIRONELLO

RÉU: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

RÉU: FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI

RÉU: UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

RÉU: UM GRUPO DE INDÍGENAS

RÉU: MINISTRO DA JUSTIÇA – UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO – BRASÍLIA

 

SENTENÇA

 

  1. RELATÓRIO

Trata-se de ação popular ajuizada por AMARILDO SPIRONELLO, com pedido de tutela de urgência, em face da UNIÃO, do MINISTRO DA JUSTIÇA, do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, dos MUNICÍPIOS DE SANANDUVA e de CACIQUE DOBLE, do indígena IRENI FRANCO e de outros agricultoresnominados na prefacial, objetivando a declaração de nulidade da Portaria n.º 498/2011, da lavra do Ministro da Justiça, a qual declarou tradicionalmente ocupada pelo grupo indígena Kaingang a Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, localizada nos municípios de Cacique Doble e Sananduva.

Sustenta, em síntese, que o ato decorre de procedimento administrativo nulo, que teria reconhecido a tradicionalidade da ocupação de área de 1.916 hectares a uma comunidade indígena Kaingang, situação que geraria lesão econômica indevida aos erários federal, estadual e municipal. Afirma o autor que, ao reconhecer aos índios os direitos originários sobre as ‘terras que tradicionalmente ocupam’, a Constituição Federal estaria se referindo tão somente às áreas ocupadas por grupos indígenas em caráter permanente na data de sua promulgação, ou seja, em 05 de outubro de 1988. Sustenta que o próprio estudo realizado pela FUNAI dá conta de que somente houve ocupação indígena, na área, até o início da década de 1970, o que afastaria a possibilidade de demarcação e se constituiria em motivo suficiente para a anulação perseguida. Ademais, no próprio processo administrativo instaurado pela FUNAI, haveria prova de que os índios são provenientes da reserva do Ligeiro e ali estão em razão de desentendimento havido entre lideranças indígenas.

O Juízo Federal indeferiu o pedido de tutela de urgência, determinou a inclusão da FUNAI e do Grupo de indígenas da etnia kaigang no polo passivo da demanda, na pessoa do cacique indicado na inicial, bem como mandou excluir da lide os MUNICÍPIOS DE CACIQUE DOBLE e DE SANANDUVA, e também os ocupantes, proprietários ou não, dos lotes objeto da ação (evento 03).

Efetivada a citação, os réus apresentaram contestação (eventos 113, 120 e 135), à exceção do “Grupo Indígena”, que nada manifestou.

O autor apresentou réplica (evento 139).

Em manifestação do evento 144, o Ministério Público Federal requereu a improcedência da ação.

Intimadas as partes acerca da pretensão probatória, o autor postulou a realização de prova pericial antropológica e testemunhal (evento 157), tendo a última sido admitida pelo Juiz (evento 160).

Na instrução, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelo autor, Leomar Foscarini, Sidimar Lavandoski, Sérgio Domingos Savi, Norberto Divino Miotto, Loreni Domingos Foscarini, Domingos Benetti (evento 245) e Zelindo Ragnini (evento 281), tendo havido a dispensa da oitiva de Vilmar Agostinho Guzzo pelo Juízo ante a ausência de interesse das partes (evento 268).

Juntada cópia da integralidade do processo demarcatório pela FUNAI (evento 278), a pedido do MPF (evento 270).

A UNIÃO, a FUNAI e o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (eventos 289, 290 e 292) apresentaram memoriais e o MPF parecer (evento 297).

Baixado o feito em diligência, o autor procedeu à juntada dos registros registros imobiliários e/ou documentos demonstrativos da cadeia dominial dos imóveis relacionados às escrituras que enumerou (evento 302).

À vista de notícia de realização de reunião em Brasília, a UNIÃO e a FUNAI foram intimados a informar se houve realização de acordo em relação à TI de Passo Grande do Rio Forquilha (evento 321).

Não sobrevindo proposta formalizada de solução da questão, o Juízo determinou a realização de prova pericial, não necessariamente da área de antropologia, com honorários a cargo da FUNAI (evento 329).

Da decisão, foi interposto agravo de instrumento pela FUNAI (AI 5016699-41.2014.4.04.00), no bojo do qual determinou-se liminarmente que o pagamento da verba honorária ocorresse ao final da demanda, pela parte vencida (evento 338).

O Ministério Público Federal também interpôs agravo de instrumento nº 5025051-85.2014.4.04.0000), o qual foi provido para o fim de determinar que um antropólogo realizasse a perícia (evento 364).

Em decisão de saneamento do processo, o Juízo revogou a decisão do evento 329, entendendo desnecessária a produção de prova pericial.

Intimadas, as partes apresentaram alegações finais (eventos 393, 394, 395 e 396).

O MPF manifestou-se pela improcedência da ação (evento 400).

É o breve relatório. Decido.

  1. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Da Preliminar

Ilegitimidade passiva do Estado do Rio Grande do Sul

Em se tratando de ação popular, a legitimação passiva tem disciplina própria na Lei 4.717/65, que só prevê a integração na lide dos beneficiários diretos do ato impugnado, dos responsáveis pela sua prática e os entes prejudicados.

Da análise dos autos, não se verifica a condição do Estado do Rio Grande do Sul de beneficiário da Portaria 498/2011 – os beneficiários são os indígenas que reivindicam as terras; por sua vez, a prática do ato impugnado é atribuída à União/Ministro da Justiça; por fim, não se vislumbra de que forma o Estado é prejudicadopelo ato (a ação popular se destina à proteção do patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe (inciso LXXIII DO ART. 5º da Constituição Federal) e tal posição seria ocupada pela própria União, que suportaria as indenizações aos atuais ocupantes das terras, conforme se depreende dos fundamentos que embasam a pretensão do autor.

Importa mencionar, por fim, que a presente ação não se presta para a análise da responsabilidade pelas indenizações supostamente devidas pela demarcação determinada pela portaria impugnada, bem como os danos reflexos, mas sim, acerca da legitimidade do ato.

Diante disso, forçoso reconhecer a ilegitimidade passiva do Estado do Rio Grande do Sul para integrar a lide.

2.2. Do Mérito

Do Cabimento da Ação Popular

Dispõe o art. 5º, inciso LXXIII que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural […]“. Outrossim, prevê a Lei nº 4.717/64, que regula a ação popular:

Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

A ação, portanto, tem a finalidade de proteger o patrimônio público de atos lesivos e ilegais. Além dos requisitos da ilegitimidade e ilegalidade, a lesividade ao patrimônio público é condição sine qua non para a admissão do procedimento. Nesse sentido, cumpre citar a lição de Hely Lopes Meirelles: “lesivo é todo ato ou omissão administrativa que desfalca o erário ou prejudica a Administração, assim como o que se ofende bens ou valores artísticos, cívicos, culturais, ambientais ou históricos da comunidade” (op cit p. 124).

Segundo leciona Alexandre de Moraes (Direito Constitucional 19ª edição, 2005, p. 167), o ajuizamento de ação popular tem como requisito objetivo que o ato a ser impugnado seja lesivo ao patrimônio público, seja por ilegalidade, seja por imoralidade. Salienta o referido autor que, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, a ação popular é destinada “a preservar, em função de seu amplo espectro de atuação jurídico-processual, a intangibilidade do patrimônio público e a integridade da moralidade administrativa (CF, art. 5º, LXXIII)“.

O ato a ser impugnado na ação popular deve estar revestido de ilegalidade ou ilegitimidade. Isso ocorre quando são violadas normas ou quando o ato se desvia dos princípios gerais que norteiam a Administração Pública (CF, art. 37). O art. 4º da Lei nº 4.717/65 enumera alguns atos e contratos nulos.

A ilegalidade ou ilegitimidade acarreta lesão ao patrimônio público. O ato pode ter causado prejuízo ao erário ou prejudicado a Administração Pública, v.g., ofensa a bens ou valores artísticos, cívicos, culturais, ambientais ou históricos.

Ato pode ser considerado a lei, o decreto, a resolução, portaria, contrato e outros de efeitos concretos do Poder Público e dos serviços delegados, inclusive das entidades públicas centralizadas e descentralizadas, e das pessoas jurídicas de direito privado, nos quais o Poder Público tenha interesses econômicos.

Em regra, não se exige a ocorrência de dolo ou fraude para que seja possível a anulação de ato administrativo, bastando que este seja contrário ao Direito (vício de ilegalidade), por infringir as normas específicas que regem sua prática ou, ainda, por se desviar dos princípios gerais que norteiam a Administração Pública.

Parte legítima ativa é o cidadão brasileiro, isto é, deve ser eleitor, munido de título eleitoral, requisito atendido no caso. Significa que está no gozo dos direitos cívicos, podendo votar e ser votado. A prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento correspondente (o autor juntou o título de eleitoral no evento 1- PROCAUTO4).

Parte legítima passiva será a pessoa jurídica de direito público ou privado, em nome da qual foi praticado o ato, bem como a(s) autoridade(s), funcionário(s) ou administrador(es) que tenha(m) autorizado ou aprovado o ato. Também os beneficiários diretos do ato ou contrato devem ser citados (LAP, art. 6º).

No caso, o autor pretende a anulação da Portaria 498/2011 do Ministério da Justiça, alegando, para tanto; (a) que o ato contraria o texto vigente da Constituição Federal; (b) que é lesivo ao patrimônio público da União, Estado e Municípios afetados. Assim, perfeitamente adequado que se utilize da ação popular, porquanto, se a área abrangida pela Portaria não era de propriedade indígena, como tal não poderia ter sido declarada. Além disso, importando a demarcação em reflexos para a UNIÃO, que deverá arcar com benfeitorias e melhoramentos efetuados na área, e também ao Estado do Rio Grande do Sul, que poderá ser chamado a compor os danos decorrentes da evicção, em razão de ter sido o alienante que deu início à cadeia dominial, aponta-se para a ocorrência de um ato ilegal lesivo ao patrimônio público. De todo modo, esta questão está relacionada ao mérito da controvérsia, e como tal será analisada.

Nulidade do processo administrativo demarcatório por ofensa ao devido processo legal, ampla defesa e contraditório

Suscita o autor não ter havido respeito aos comandos do Decreto nº 1.775/96, em especial aos seus artigos 2º, §§8º e 9º, em flagrante desrespeito aos princípios da ampla defesa e contraditório, vez que a participação dos grupos e entidades determinadas no procedimento demarcatório se deu de forma deficitária, além de sequer ter atuado o Estado ou os Municípios envolvidos.

A Constituição Federal de 1988 preceitua, em seu art. 5º, inciso LIV, que ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal‘. E, consoante o seu art. 5º, inciso LV, ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes‘. O direito ao contraditório e à ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, tem âmbito de proteção de caráter normativo que, de um lado, impõe ao legislador o dever de conferir densidade normativa adequada a essa garantia e, de outro, permite-lhe alguma liberdade de conformação.

Nesse sentido, a lei do processo administrativo disciplina o direito ao contraditório e à ampla defesa no plano federal (art. 2º, caput, da Lei n. 9.784/99). Há também diplomas específicos, como o Decreto n° 1.775/96, que regula o processo demarcatório de terras indígenas.

Vale lembrar que, na vigência do Decreto n° 22/91, que foi objeto de revogação pelo atual Decreto n° 1.775/96, sequer havia previsão expressa do contraditório administrativo no processo de demarcação de terras indígenas, sendo este, aliás, o motivo preponderante para a edição de um novo Decreto regulamentador para o processo administrativo demarcatório em que fosse assegurado o contraditório e a ampla defesa ante a iminência de que viesse a ser declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim, somente com a edição do Decreto n° 1.775/96 é que surgiu a possibilidade de terceiros interessados apresentaram manifestações quanto às conclusões do relatório de identificação e delimitação da área a ser declarada indígena.

O art. 2º do Decreto n° 1.775/96 assim dispõe:

Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.

(…)

§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.

§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.

§ 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas.

§ 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:

I – declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;

II – prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias;

III – desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.

De acordo com a redação do dispositivo acima transcrito (§8° do art. 2°), no processo demarcatório de área indígena, o contraditório e a ampla defesa caracterizam-se pela possibilidade de Estados e Municípios do local da área sob demarcação e de todos os demais interessados manifestarem-se, desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação do resumo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área, apresentando à FUNAI as razões da manifestação, instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, dos estudos.

Assim, não há nenhuma previsão legal quanto à necessidade de intimação pessoal dos interessados ou de qualquer oportunidade de impugnação antes da publicação do relatório de identificação da área, nem implica nulidade por inobservância do contraditório e ampla defesa tal fato considerando que as razões e provas apresentadas pelos contestantes devem ser objeto de apreciação pelo Ministro de Estado da Justiça para decisão (art. 2°, §§9° e 10.)

Portanto, desde o momento em que constituído grupo de trabalho técnico mediante Portaria para a elaboração do estudo a que se refere o art. 2° do Decreto n° 1.775/96 quaisquer interessados poderiam manifestar-se e apresentar provas, documentos, etc. com vistas a influir no resultado do estudo a ser realizado.

Ademais, o Plenário do STF, ao julgar o MS 24.045 (j. 28.04.2005), da Relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, decidiu que ‘ao estabelecer procedimento diferenciado para a contestação de processos demarcatórios que se iniciaram antes da sua vigência, o Decreto n. 1.775/1996 não fere o direito ao contraditório e à ampla defesa‘, sendo salutar registrar que para os procedimentos iniciados e em curso quando da publicação do referido Decreto foi prevista apenas a abertura do prazo de 90 (noventa) dias a contar da sua publicação para os interessados se manifestarem, nos termos do §8° do art. 2° (art. 9°), ou seja, não restou facultada (porque o Decreto n° 22/91 não previa essa possibilidade) a manifestação “desde o início do procedimento demarcatório” e, mesmo assim, a constitucionalidade do Decreto restou assentada pelo STF.

No caso concreto, observa-se, inclusive, que os os agricultores atingidos apresentaram contestação no bojo do processo administrativo, fato reconhecido pelo próprio autor na exordial e verificável através dos documentos anexados ao evento 278 (ANEXO14, fls. 5-11).

Impende registrar, ainda, que apesar de não terem sido acolhidas as razões apresentadas pelos agricultores no processo administrativo de demarcação, isso não significa necessariamente que houve violação às regras do devido processo legal, ampla defesa ou contraditório.

Em síntese, houve defesa administrativa, devidamente apreciada na forma do procedimento previsto pelo Decreto n° 1.775/96, cuja constitucionalidade já restou assentada em diversas oportunidades pelo STF.

De outra parte, se a rejeição da defesa não resultou na decisão correta a ser tomada, o que existe não é nulidade procedimental, mas incorreção meritória na decisão que acolheu o relatório de identificação e delimitação sugestivo de demarcação da área, matéria a ser adiante enfrentada, quando do revolvimento de fatos e provas que embasam a Portaria Declaratória.

Do regime jurídico das terras indígenas

Inicialmente, cabe referir que a Constituição Federal de 1988 assegurou aos índios sua língua, sua cultura, seu uso, seus costumes, suas crenças e suas tradições (art. 231, caput). Garantiu, também, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando que, na identificação dos limites das terras ocupadas por cada comunidade indígena, fossem considerados os seus usos, costumes e as suas tradições (art. 231, §1º). Outros dispositivos constitucionais demonstram o intento da política indigenista inaugurada pela atual Constituição Federal. O art. 20, inciso XI, inclui as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios entre os bens da União, enfatizando a idéia de ocupação tradicional e não de mera ocupação física da terra (posse civil, jus possessionis). O art. 22, inciso XIV, atribui à União competência exclusiva para legislar sobre populações indígenas. O art. 129, inciso V, inclui entre a competência do Ministério Público Federal a defesa judicial dos interesses das populações indígenas. O art. 210, § 2º, permite às comunidades indígenas o uso de sua língua materna e dos seus processos de aprendizagem no ensino fundamental regular de seus membros. O art. 215 determina a proteção das manifestações culturais dos índios pelo Estado, nada dispondo sobre a integração dos índios à comunhão nacional.

O Estatuto do Índio (Lei n° 6.001/73), publicado ainda em 1973, em seu art. 2º, inciso IX, já regulamentava a posse e o usufruto exclusivo, como também determinava a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:

Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: […]

IX – garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes; […]

Art. 62. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos dos atos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas pelos índios ou comunidades indígenas.

§ 1° Aplica-se o disposto deste artigo às terras que tenham sido desocupadas pelos índios ou comunidades indígenas em virtude de ato ilegítimo de autoridade e particular.

§ 2º Ninguém terá direito a ação ou indenização contra a União, o órgão de assistência ao índio ou os silvícolas em virtude da nulidade e extinção de que trata este artigo, ou de suas conseqüências econômicas.

A maior preocupação do poder constituinte com os índios concentrou-se na preservação de seu habitat natural, isto é, das terras por eles tradicionalmente ocupadas, como condição necessária para o reconhecimento, constitucionalmente assegurado, de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. A demarcação das terras indígenas é um dos instrumentos fundamentais de proteção ao índio, na medida em que delimita áreas específicas nas quais os índios podem exercer seus direitos e cultivar seus costumes.

Conforme o Decreto n° 1.775/96, o procedimento demarcatório das terras indígenas ocorre por iniciativa e orientação do órgão federal de assistência ao índio, no caso a FUNAI.

O procedimento para demarcação de terras indígenas tradicionais era regulamentado pelo Decreto n° 22/91, que foi expressamente revogado pelo Decreto n° 1.775/96, o qual foi complementado pela Portaria nº 14/MJ, de 9/01/1996, que estabelece regras sobre a elaboração do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas.

Esse Decreto apresenta quatro fases do procedimento administrativo de demarcação, a saber: a) identificação e delimitação; b) demarcação; c) homologação e; d) regularização fundiária. A identificação e a delimitação consistem, primeiramente, na realização de estudos antropológicos, históricos, demográficos e sociológicos sobre determinado grupo e do levantamento cartográfico e fundiário da região. Tais estudos são feitos por equipe técnica especializada, designada pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Depois, desde o início do procedimento demarcatório e após noventa dias da publicação do resumo da proposta no Diário Oficial da União e também no da respectiva unidade federada, os Estados e Municípios ou quaisquer interessados podem manifestar-se, apresentando provas.

Por último, a FUNAI envia, juntamente com a proposta, os pareceres relativos às razões e às provas ao Ministro da Justiça. Em até trinta dias do recebimento, o Ministro poderá decidir de três formas: determinando a demarcação e declarando os limites da terra indígena, mediante portaria; prescrevendo novas diligências a serem realizadas no prazo de noventa dias; ou desaprovando a proposta, fundamentando no não atendimento ao §1º, art. 231, da CF/88 e disposições pertinentes, conforme o artigo 2º, §10 do Decreto n° 1.775/96. Uma vez aprovada a proposta e determinada a demarcação, que consiste na materialização dos limites eleitos na etapa de identificação da área, a próxima etapa é a homologação. Por meio dela, o Presidente da República, mediante decreto, ratifica formalmente o ato e esse é publicado no Diário Oficial da União. As áreas homologadas são registradas em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Da ocupação tradicional indígena e do precedente do STF (Pet. 3.388/RR)

É nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal que se encontram os elementos essenciais para a definição jurídico-constitucional de tudo aquilo que diz respeito aos indígenas e seus direitos coletivos e individuais. Desses mesmos dispositivos se extrai que sobre as terras tradicionalmente ocupadas por índios incidem os direitos de propriedade e de usufruto, sujeitos a delimitações e vínculos que decorrem de suas normas. Declara-se, em primeiro lugar, que as terras tradicionalmenteocupadas pelos índios são bens da União (art. 20, XI). Adicionalmente, o caput do art. 231 prevê que devem ser reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcá-las.

O poder constituinte, realizando interpretação constitucional autêntica, esclareceu ele próprio, no §1º do art. 231, que ‘são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições’. De acordo com o texto constitucional, a base do conceito está fundada em quatro condições, a saber: 1) serem por eles habitadas em caráter permanente; 2) serem por eles utilizadas para as suas atividades produtivas; 3)serem imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar; 4) serem necessárias à reprodução física e cultural.

É importante notar, no ponto, que os requisitos não são cumulativos em cada perímetro individualmente considerado. Ou seja, não se exige, para demarcar uma determinada área, que sobre ela estejam cumulativamente presentes todos os requisitos, por exemplo, que ela seja habitada em caráter permanente, que seja utilizada para atividades produtivas, que seja imprescindível à preservação de recursos ambientais e que seja necessária à reprodução física e cultural. É que a redação do dispositivo soma terras, áreas, perímetros distintos, agregando-os no conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Uma área poderá ser considerada tradicionalmente ocupada pelos índios por ser por eles habitada em caráter permanente; outra, próxima, poderá ser agregada na mesma reserva porque, embora não habitada em caráter permanente, é considerada imprescindível à reprodução física e cultural dos índios; outra, também próxima, poderá ser agregada na mesma reserva porque, embora prescindível à reprodução física e cultural, é considerada imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar da comunidade indígena.

Assim dispõe o texto constitucional:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Naturalmente, devido ao processo de ocupação geográfica ocorrido ao longo dos séculos em todo o país, muitas demarcações levantam controvérsias quanto à tradicionalidade da ocupação por se tratarem de áreas em que estão sobrepostos interesses conflitantes entre as populações indígenas e outros grupos populacionais, como ocorre na situação objeto deste feito.

Nas palavras do Desembargador Federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior (TRF4, APELREEX 5006473-76.2012.404.7006, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Candido Alfredo Silva Leal Junior, juntado aos autos em 07/05/2015), “No processo de demarcação dessas ‘terras tradicionalmente ocupadas pelos índios’, prevista na Constituição de 1988, a cargo da União, naturalmente emergiram diversos conflitos relativos à terra, basicamente pelo fato de não-índios reclamarem para si a propriedade e/ou posse legítima das áreas que se pretendiam demarcar como indígenas. E não poderia ser diferente num país que há 500 anos tinha praticamente toda sua superfície povoada por indígenas (que se contavam aos milhões), e cuja história a partir de então corresponde, também, à contínua e progressiva ocupação do território por não-índios, com a paulatina retração numérica da população autóctone, cujos remanescentes foram sendo removidos para alguns bolsões, ou se dispersaram e foram incorporados, ainda que marginalizados, ao novo padrão de sociedade que se impôs”.

Em suma, numa análise retrospectiva, praticamente todo território brasileiro foi um dia “terra indígena”, de forma que o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” para fins de demarcação e destinação exclusiva para as comunidades indígenas na forma do art. 231 da Constituição Federal tem de ser modulado e ponderado, sob pena de se autorizar, com base apenas na teoria do indigenato baseada na posse imemorial das terras, a demarcação de qualquer ponto do território nacional como terra indígena, acerto histórico de contas que hoje, faticamente, não mais se revela possível nestes termos pela política de colonização desenvolvida ao longo dos séculos.

Na mediação dos conflitos advindos da demarcação das terras indígenas, e exercendo a jurisdição constitucional que lhe compete, o STF estabeleceu importantes balizamentos para a solução desses litígios, a saber:

a) o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto, conforme o enunciado da Súmula 650/STF que dispõe “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”, o que constitui importante vetor interpretativo, ainda que a referida Súmula tenha sido editada no contexto de análise do interesse jurídico na União em ações de usucapião de terras em aldeamentos extintos (RE 219.983), em julgado assim ementado:

BENS DA UNIÃO – TERRAS – ALDEAMENTOS INDÍGENAS – ARTIGO 20, INCISOS I E XI, DA CARTA DA REPÚBLICA – ALCANCE. As regras definidoras do domínio dos incisos I e XI do artigo 20 da Constituição Federal de 1988 não albergam terras que, em passado remoto, foram ocupadas por indígenas. (RE 219983, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/12/1998, DJ 17-09-1999 PP-00059 EMENT VOL-01963-04 PP-00632 RTJ VOL-00171-01 PP-00338)

Em seu voto no referido precedente, o eminente Ministro Nelson Jobim destacou, em relação ao reconhecimento de terras indígenas, que ocupação tradicional não é posse imemorial: “Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É um dado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver a posse. É preciso deixar claro, também, que a palavra ‘tradicionalmente’ não é posse imemorial, é a forma de possuir; não é a posse no sentido da comunidade branca, mas, sim, da comunidade indígena. Quer dizer, o conceito de posse é o conceito tradicional indígena, mas há um requisito fático e histórico da atualidade dessa posse, possuída de forma tradicional.” (RE 219.983, julg. em 9.12.1998).

b) o marco temporal para a definição de “terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas” é 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal de 1988,consoante decidido no julgamento da Petição n° 3.388/RR (caso “Raposa Serra do Sol”), de forma que deve ser considerada a ocupação tradicional da terra nesta data para a configuração ou não de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, restando, porém, expressamente ressalvado na ementa do acórdão de que “A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.

A propósito, confira-se a ementa do julgado a esse respeito:

AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO.

(…)

11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupaçãoA Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação.É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado “princípio da proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. (Pet 3388, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049)

De outra parte, impende referir que o referido precedente do STF foi proferido em ação popular (ação individual) e não é dotada, por isso, de efeito vinculante em seu sentido técnico-jurídico (efeito este restrito às decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, julgamentos proferidos sob a sistemática da repercussão geral ou matérias definidas em Súmula Vinculante), mas apesar dessa ausência de caráter vinculante os fundamentos do acórdão são dotados de força moral e persuasiva a orientar a decisão em processos em que se discuta matéria similar, conforme expressamente restou decidido em embargos de declaração, em acórdão assim ementado:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. 1. Embargos de declaração opostos pelo autor, por assistentes, pelo Ministério Público, pelas comunidades indígenas, pelo Estado de Roraima e por terceiros. Recursos inadmitidos, desprovidos, ou parcialmente providos para fins de mero esclarecimento, sem efeitos modificativos. 2. Com o trânsito em julgado do acórdão embargado, todos os processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Portaria/MJ nº 534/2005 e o Decreto Presidencial de 15.04.2005, observadas as condições previstas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231, da Constituição torna insubsistentes eventuais pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante à indenização por benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/88, art. 231, § 6º). 3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos. 4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões. (Pet 3388 ED, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 23/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-023 DIVULG 03-02-2014 PUBLIC 04-02-2014)

Com base em tais premissas passo à análise da situação concreta.

Da tradicionalidade da ocupação indígena Kaigang em Passo Grande do Rio Forquilha, no interior dos municípios de Sananduva e Cacique Doble, no Rio Grande do Sul

A Portaria n° 498, de 25 de abril de 2011, do Ministro de Estado da Justiça, acolhendo proposta de delimitação da FUNAI nos autos do processo administrativo FUNAI/BSB/nº08620.001643/2006, declarou como de posse permanente do grupo indígena Kaigang a denominada “Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha”, com superfície aproximada de 1.916 hectares e perímetro também aproximado de 29 km, área situada no interior dos Municípios de Sananduva/RS e Cacique Doble/RS (evento 1, PORT2).

Para tanto, estudos diversos foram realizados, a saber: a) Diagnóstico de Demandas Fundiárias nas localidades de Estrela, Pontão e Rio Forquilha conforme Instrução Técnica n.º 829/2004, datado de abril de 2005 (evento 278, ANEXO4, fls. 13 e ss.), b) Relatório de Fundamentação Antropológica de Passo Grande do Forquilha, conforme Portaria n.º 1136/PRES/2005 (evento 1, LAUDO121, fls. 3 e ss. e evento 278, ANEXO6, fl. 57); c) Relatório Ambiental do Grupo Técnico de Identificação da Terra Indígena Passo Grande da Forquilha, de abril de 2007, constituído mediante Portaria n 1403, de 2006 (evento 278, ANEXO9, fl. 18 e ss.), d) Relatório Circunstanciado Portaria 1403/PRES/2006 e 226/PRES/2007, de julho de 2008 (evento 120, INF3, fl. 8). O processo administrativo acompanhou parecer favorável da AGU (Parecer n.º 22/2011/CEP/CGLEG/CONJUR/MJ).

Pois bem.

É importante registrar que os indígenas acampados em Cacique Doble/RS passaram a reivindicar a área de Passo Grande da Forquilha em 2004, sendo tal ponto incontroverso, conforme alega o autor e relatam os próprios indígenas, a exemplo do Cacique Kaigang, Ireni Franco (in Diagnóstico de Demandas Fundiárias nas Localidades Estrela, Pontão e Rio Forquilha, realizado pelo Antropólogo Robson Cândido da Silva, no final do ano de 2005 – evento 278, ANEXO4, fl. 40):

Como se percebe, a maioria dos indígenas acampados é oriunda da Terra Indígena Ligeiro, sendo que tal movimento teve por estopim a mudança de Cacique na comunidade, que acabou por acirrar os ânimos ante as divergências existentes entre a antiga e atual liderança. Isso impeliu os indígenas retirantes a formular pedido formal de demarcação de Passo Grande do Rio Forquilha, local onde afirmam ter residido seus antepassados até posterior expulsão realizada por não-índios.

A controvérsia existente nestes autos não envolve, portanto, o termo inicial da recente movimentação/reivindicação indígena, mas sim o conceito que deve prevalecer acerca do que seja ocupação tradicional indígena, ou seja, as suas implicações com a ocupação passada da área e/ou a existência de esbulho renitente por parte de não-índios (e neste caso o seu conceito, existência no caso concreto e até quando teria perdurado).

A esse respeito, destaco citação realizada pelo antropólogo Robson Cândido da Silva extraída de estudo realizado pela antropóloga Maria Helena Amorim Pinheiro, em 2003, segundo a qual os índios ocupavam as duas margens do Rio Forquilha no período de 1928 a 1980 (evento 278, ANEXO4, fl. 39). A evidência de que a saída dos indígenas antecedeu a 1980 foi igualmente salientada no Estudo de Fundamentação Antropológica realizado em novembro de 2005, pela antropóloga Juracilda da Veiga, designada pela Portaria nº 1136, de 29 de setembro de 2005 (evento 278, ANEXO6, fls. 57 e ss.), in verbis (ANEXO7, fl. 18):

De acordo com os depoimentos colhidos por Juracilda Veiga durante o levantamento de campo, os indígenas estabeleceram uma aldeia em cada lado do Rio Forquilha (um pertencente a Cacique Doble/RS e outro a Sananduva/RS), justamente pela dificuldade da travessia, as quais foram obrigados a abandonar gradativamente, em razão de pressão realizada por não-índios, havendo narrativas sobre a ocorrência de mediação pela própria FUNAI e de forte empenho do Estado do Rio Grande do Sul em formalizar a venda dos lotes a agricultores, conforme adiante se verá.

A antiga ocupação indígena de Passo Grande da Forquilha foi também reforçada por depoimentos de agricultores moradores dos arredores de Passo Grande do Rio Forquilha, os quais confirmaram que o próprio Cacique da época, Pedro Silveira, cedendo a suborno de não-índios, vendeu as terras (margem esquerda do rio, lado de Sananduva/RS) a preço irrisório, impelindo os indígenas a se retirar do local.

Esclarece o agricultor Nadir Toniete (evento 278, ANEXO8, fl. 4):

“Tinha o Pedro Silveira que morava lá… Daí veio os Machadinho. O Caldean chegou ali com os Machadinho, ficaram um tempo, depois o Calderan foi comprando. Mas primeiro quem morava ali era o Pedro Silveira. Tinha lá o Adão, os filho do Pedro, tinha aquele Tonico (…) daí o Calderan foi comprando a troco de égua velha, essas terras aí. Um pedaço de um pedaço do outro. Que era do Pedro. Até eles falavam ali no Passo Grande, que tinha morrido um índio ali e não era mais para passar nesse tal de Passo Grande (…) a gente era vizinho [com os índios], eles ficavam para o lado de lá do rio e nós para o lado de cá. O que dividia era só o rio…”

No mesmo sentido, narrativa do agricultor Olívio Orlando (evento 278, ANEXO8, fl. 5):

“…A gente tem que falar a verdade , que os índios foram se retirando para Cacique [TI Cacique Doble] e depois voltaram de novo. E depois saíram de novo e foram indo, né (…) O Pedro Silveira vinha por aí… O Calderan comprou essa terra, o Pedro Silveira veio aí, ele têm obediência de cacique né, mas eram bastante gente. O Calderan queria a terra e daí chamava o Pedro Silveira no Juiz para cá e para lá. E fez de tudo esse Calderan. Eles conseguiram os títulos como terra do Estado, essa Comissão suja de Lagoa Vermelha [Comissão ou Inspetoria de Terras] deu o título e teve gente que telefonou para dizer que não era terra do Estado, que naquela época não tinha mais terra do Estado. A terra que não tem escritura é da FUNAI, do Índio. Porque a Companhia vendeu as terras e legalizaram, separaram a parte do índio. Então declararam como terra do Estado… Essa Comissão tem muita sujeira.

J – Diz que o Calderan levou os índios à Justiça e acabou ganhando dos índios na Justiça? [pergunta feita pela antropóloga]

Olívio – Não! Foram à Brasília… O Chefe [de Posto] pagou para o Silveira, o Calderan foi ele e dois advogados. E lá o Calderan puxou aquela escritura dele. E lá disseram: aqui diz que o senhor comprou terra de índio. Então o Calderán perdeu a questão. Daí ele deu dinheiro pra o Pedro Silveira sair. Ele deu jeito aqui. O Pedro Silveira fez uma proposta para ele em Brasília que desse um tanto [de dinheiro] para ele, que ele podia trabalhar ali. Podia plantar, podia trabalhar. Mas não podia tirar a terra do índio. O Caldean ajustou esse Osvaldo Camuzatto, que foi prefeito, para legalizar essa terra. “Mas tem que declarar que habitava índio aí, para eles não me incomodar”.

Quanto ao momento histórico, pontua o agricultor Érico Foruna (evento 278, ANEXO8, fls. 7/9 ):

“….Até 77 eu posso lhe afirmar que tinha índio ali. Porque eu chequei aqui em 77. O ano em que me casei e os índios residiam ali e se diziam dono da área (…).Não adianta eu dizer uma coisa para a senhora que eu não sei. Dizer que eles venderam a terra por tanto, por isso, por aquilo, eu não sei como foi a negociação. Uns falam que foi a troco de porco, outros, sei lá, cavalo velho, mas eu não posso afirmar porque eu não estava ali junto. Acabaram mesmo tirando a terra dos índios. Eu convivo com eles…”.

A expulsão é rememorada por indígenas que afirmaram ter residido na área do Forquilha, como Pierina José Grande (74 anos), segundo a qual, não fosse o ato de expulsão, teria permanecido naquelas terras, onde nascida e criada (evento 278, ANEXO7, fl. 10):

O relatório datado de 2008, realizado com base nas Portarias 1403/PRES/2006 e 226/PRES/2007 (evento 278, ANEXO11, fl. 2 e ss.) não trouxe alterações substanciais em relação ao contexto histórico ventilado no de 2005, reforçando a tradicionalidade da ocupação.

Acerca dos registros oficiais existentes, há a referência de que, in verbis:

Consta do relatório que a permanência dos Kaigangs na Volta Grande do Rio Forquilha até a década de 1970 é atestada por documentos da própria FUNAI (evento 278, ANEXO12, fl. 13), sendo que o último censo no qual consta relação de índios residentes na área do Forquilha data de 18 de março de 1970.

Acrescente-se ainda (fl. 25):

Tudo isso evidencia que os indígenas Kaigangs ocuparam a área objeto de litígio no começo do século XX e sobre ela exerceram domínio até o final da década de 1970, muito antes, portanto, da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988).

A conclusão não diverge dos testemunhos prestados por Loreni Domingos Foscarini, 65 anos, empresário (evento 245, VIDEO2), Leomar Foscarini, 60 anos, Secretário da Educação (evento 245, VIDEO3), Domingos Benetti, 71 anos, empresário (evento 245, VIDEO4), Sergio Domingos Savi, 61 anos, comerciante (evento 245, VIDEO6), Norberto Divino Miotto, 73 anos, comerciante (evento 245, VIDEO7), Norberto Divino Miotto, 73 anos, comerciante (evento 245, VIDEO7), todos unânimes no sentido de que, ao menos na década de 80, não havia área indígena no interior de Sananduva. Segundo referem, os índios apenas “perambulavam vendendo cestos, pinhão e flechas”, sem se fixarem na região.

É claro que algumas testemunhas negaram a permanência dos índios na área em qualquer período, não apenas na década de 80, contudo, conjugando os documentos históricos e a própria memória oral dos indígenas, fica demonstrado que, em última análise, os indígenas Kaigangs residiram e se retiraram da localidade de Passo Grande da Forquilha até o final da década de 70, devido à alienação gradual de suas terras pelo Estado do Rio Grande do Sul.

Convém registrar, no que se refere à margem direita do rio, pertencente à Cacique Doble/RS, a declaração do testigo Zelindo Ragnini, 64 anos, agricultor (evento 281, VIDEO2), segundo a qual teria prestado serviços com trator para o plantio de soja naquela área, por volta dos anos 1975 e 1976, para o Santo Pedreiro, que era proprietário, o que coincide com as afirmações realizadas por integrantes de uma vila de caboclos que residem à margem direita do Forquilha há mais de 50 anos (evento 278, ANEXO11, fl. 25):

Essa ocupação kaigang na região até o final da década de 70, pelos elementos etnohistóricos e etnográficos evidenciados no laudo antropológico elaborado pela FUNAI caracteriza, na ótica do juízo, ocupação tradicional, dada a existência anímica e psíquica de pertencimento às terras então ocupadas pelos indígenas.

De toda sorte, conforme anteriormente já referido, deve ser observado o marco temporal da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988) conforme o precedente do STF (Pet. 3.388/RR), sendo incontroverso que não existia ocupação à época, já que o acampamento de retomada foi erigido apenas no ano de 2004, após mais de duas décadas da desocupação.

Fixadas essas premissas e tendo em conta os parâmetros interpretativos do art. 231 da Constituição Federal firmados pelo STF no caso “Raposa Serra do Sol” resta a análise se, ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), se faz presente a ressalva fixada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que “A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios” (Pet. 3.388/RR).

Da presença de esbulho renitente por parte de não-índios

Conforme já referido, a tradicionalidade da posse indígena não se perde onde, ao tempo da promulgação da Constituição Federal (05/10/1988), a reocupação apenas não decorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.

Pois bem.

Este juízo reconheceu que a ocupação indígena kaigang na região de Forquilha perdurou até a desocupação ocorrida na década de 1970, tendo havido ocupação indígena tradicional no período. Por sua vez, a reocupação da área no acampamento montado em Cacique Doble/RS ocorreu em meados de 2004, conforme incontroverso e também já referido.

Resta, pois, a análise se a reocupação ao tempo da promulgação da Constituição Federal (05/10/1988) não se deu por conta de renitente esbulho por parte de não-índios.

A partir dos relatos e documentos identificados ao longo do processo de delimitação da terra indígena, bem como os registros de propriedade outorgados aos agricultores, cujas matrículas acompanham a inicial e o evento 302, é possível concluir que a alienação das terras pelo Estado do Rio Grande do Sul aos colonos coincidiu, em boa parte, com a retirada dos indígenas da área.

Com efeito, no relatório circunstanciado subscrito pela antropóloga Juracilda Veiga, consta que no início do século XX, sob a bandeira positivista e republicana o governo do Estado decidiu constituir pequenas áreas reservadas no antigo território Kaigang confinando-os e liberando a maior parte de suas terras para a colonização.

O estudo faz referência à existência de documentos históricos retratando a ocupação indígena na área do Passo Grande do Rio Forquilha no ano de 1889. A interpretação conjunta de dois mapas, por sua vez, datados de 1915 e 1927, apontaria que o lote de terras nº 5, da ‘Seção Guabiroba’, com área de 92 hectares, localizado na parte oeste do Rio Forquilha, seria ocupado, à época, por grupo indígena da etnia Kaingang. Segundo a memória da comunidade Kaigang, a área do Passo Grande do Forquilha teria sido reduzida a 237 hectares após as demarcações de lotes coloniais pelas Inspetorias de Terras do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, sendo 92 hectares localizados em Sananduva, que, até a década de 1970 estiveram na posse da comunidade indígena, liderada pelo Cacique Pedro Silveira, e 145 hectares na margem direita do Rio Forquilha, no município de Cacique Doble, local em que o cacique seria o Sr. Manoel José Grande e onde viveria um ‘xamã’ indígena, conhecido como kuiâ Maria, sendo que a terra teria sido ocupada por posseiros após o falecimento deste ‘xamã’.

Os relatos prestados pelos indígenas, a exemplo dos já transcritos, demonstram que a desocupação ocorrida até meados da década de 70 configurou efetivo esbulho por parte de não-índios, o qual se deu de forma gradual, ainda que alguns indígenas possam ter sido removidos pacificamente, convencidos pelo cacique Pedro Silveira, o qual teria vendido a terra “a troco de porco” (inobstante haja narrativa de que ele atropelou todo mundo inclusive os filhos dele – Sebastiao Ferreira Doble, evento 120, INF6, fl. 2). Fato é que não olvidaram esforços para que os indígenas se evadissem das terras, como relatou o senhor Olívio Orlando, morador de Sananduva/RS (evento 120, INF6, fls. 6-7):

(…) O Calderan queria a terra e daí chamava o Pedro Silveira no Juiz para cá e para lá. E fez de tudo esse Calderan. Eles conseguiram os títulos como terra do Estado, essa Comissão suja de Lagoa Vermelha (Comissão ou Inspetoria de Terras)… (…)Então o Calderan perdeu a questão. Daí ele deu dinheiro para o Pedro Silveira sair. Ele deu jeito aqui. (…)

De se ver que o período de registro dos imóveis cujas matrículas foram acostadas pelo autor está, em sua maioria, compreendido entre os anos 1965 a 1985, o que coincide com as informações do Relatório de Identificação, segundo as quais a) parte das terras que pertencem aos kaigangs estavam não tituladas até meados da década de 1980; e b) os proprietários das últimas colônias mantidas pelos kaigangs até a década de 1970, é da família Calderan (evento 278, ANEXO12, fl. 25).

Tais circunstâncias em que as terras foram transferidas, isto é, através de um êxodo forçado dos indígenas, configura, inequivocamente, esbulho praticado por não-índios, que culminou na redução da ocupação indígena de forma paulatina até a desocupação total, ocorrida na década de 1970.

Não obstante, para fins de enquadramento na ressalva efetuada pelo STF quanto à ocupação na promulgação da Constituição Federal, não basta esbulho praticado no passado (em período anterior à promulgação da CF/88) por parte de não-índios, porque se assim fosse não seria necessário o estabelecimento de requisitos pelo Constituinte para a demarcação de terras indígenas sem qualquer indenização aos atuais proprietários (salvo das benfeitorias aos possuidores de boa fé) uma vez que a rigor praticamente todo o território nacional era de ocupação exclusiva dos índios que, em algum momento desde o “descobrimento”, foram desalojados dos locais que habitavam.

Se a desocupação forçada, seja pelo uso da força em sentido estrito ou pelo avanço da colonização, em qualquer época anterior à promulgação da Constituição e sem qualquer exigência de “luta contemporânea” a 05/10/1988 (entendida a “luta” no sentido de efetivo conflito possessório ou reivindicação administrativa ou judicial) das comunidades indígenas pelas áreas de ocupação tradicional remota, bastaria ao Constituinte atribuir ao órgão de assistência ao índio o poder de demarcar terras indígenas conforme fosse de seu interesse em qualquer local do país que tenha havido ocupação indígena pretérita, sem a necessidade de estabelecer como requisito as terras que “tradicionalmente ocupam”.

Por essas razões, dentre outras, que o STF no julgamento do caso “Raposa Serra do Sol” qualificou o esbulho capaz de excepcionar a existência de efetiva ocupação em 05/10/1988 para fins de demarcação das terras indígenas como renitente¸ ou seja, aquele cuja ocupação de não-índios “não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação de sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da Raposa Serra do Sol”.

Segundo o dicionário Aurélio, renitente é aquele “que renite; obstinado, que não cede, que persiste em sua opinião; inflexível”, conceito semelhante daquele constante do Dicionário online de português: “Que tende a renitir; que é obstinado; que não desiste nem se conforma;  inconformado. s.m. Indivíduo que teima; aquele que não se conforma; obstinado. (Etm. do latim: renitens.entis)”.

Não há, porém, no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação elaborado no ano de 2008 a indicação de quaisquer elementos concretos que indiquem a persistência de disputa pela área entre os índios e não-índios em período contemporâneo à promulgação da Constituição Federal (05/10/1988), conflito que deve se materializar por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por procedimentos administrativos ou judiciais de disputa pela área, considerando que apenas em 2004 (mais de 15 anos depois) é que houve a montagem de um acampamento de retomada.

Destarte, os únicos elementos encontrados dizem respeito aos anseios psíquicos do grupo indígena de um dia retornar à área em que viveram os antepassados, estado anímico este de natureza interior e não exteriorizado e materializado em nenhuma medida concreta antes da década de 2000. É pertinente destacar que a maioria dos indígenas reivindicantes já estava estabelecida na Terra Indígena de Ligeiro e, conforme alegação do próprio Cacique Ireni Franco (evento 278, ANEXO4, fl. 40), a decisão em estabelecer o acampamento e reivindicar terras na localidade de Forquilha se deu em razão de troca de cacique ocorrida naquela comunidade. Ora. Se após todo e qualquer episódio de desentendimento entre lideranças, passarem os indígenas a reivindicar terras que, em um passado remoto, tenham-lhes pertencido, todo o território nacional será passível de ser declarado como indígena, o que, além de insustentável, esvaziará por completo o sentido prático em estabelecer a data da promulgação da Constituição Federal como marco demarcatório das terras indígenas e da exceção denominada de esbulho renitente.

Nesse ponto, ainda que se admita que houve esbulho renitente por parte de não-índios até a desocupação completa da área pelos indígenas, o que, aliás, foi reconhecido nesta sentença, é incontroverso que na data da promulgação da CF/88 não havia qualquer conflito possessório, esbulho renitente de não-índios ou obstinação dos indígenas na busca da retomada das terras, circunstâncias que deviam se materializar em circunstâncias de fato e não mero desejo psíquico interno. Como se pode ver, mesmo a resistência violenta e a agressividade com que foram recebidos a Comissão da Funai pelos agricultores e seus advogados (evento 278, ANEXO12, fl. 20) foi registrada durante o processo demarcatório, não antes.

Nesse sentido, é importante registrar que, desde o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do caso “Raposa Serra do Sol” no ano de 2009, vários outros casos envolvendo a demarcação de terras indígenas foram objeto de julgamento pelo Poder Judiciário, inclusive pelo próprio STF, quando, então, se delineou que situações como a retratada nestes autos não configuram esbulho renitente apto a excepcionar a questão da interpretação quanto ao marco temporal da ocupação indígena a ser considerado.

Confiram-se os precedentes oriundos do próprio Supremo Tribunal Federal:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. 2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014. 3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. 4. Agravo regimental a que se dá provimento. (ARE 803462 AgR, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 09/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015)

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios (RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet. 3.388, DJe 24.9.2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança.(RMS 29087, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 16/09/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-200 DIVULG 13-10-2014 PUBLIC 14-10-2014)

Extrai-se do voto do eminente Ministro Teori Zavascki no ARE 803.462:

(…) Restaria, como fundamento de legitimação de ato demarcatório, averiguar a existência do que, no julgamento da Pet 3.388, se denominou de “esbulho renitente”.

(…)

O que se tem nessa argumentação, bem se percebe, é a constatação de que, no passado, as terras questionadas foram efetivamente ocupadas pelos índios, fato que é indiscutível. Todavia, renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.

Também não pode servir como comprovação de “esbulho renitente” a sustentação desenvolvida no voto vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto a órgãos públicos, desde o começo do Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara.

Destacou-se, nesse propósito, (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual. Nesse aspecto, cumpre registrar o que atestou o voto vencido do aresto impugnado:

Desde a desocupação na década de 1950, o grupo tribal Terenas não reivindica direta ou indiretamente a área. A tolerância que se sucedeu ao esbulho praticado pelos membros da sociedade nacional comprometeu o liame entre a fazenda e os usos, costumes, tradições da comunidade e originou uma situação fática que veio a ser legitimada pela Constituição Federal de 1988 (fl. 2914)

Dessa forma, sendo incontroverso que as últimas ocupações indígenas na Fazenda Santa Bárbara ocorreram em 1953 e não se constatando, nas décadas seguintes, situação de disputa possessória, fática ou judicializada, ou de outra especie de inconformismo que pudesse caracterizar a presença de não índios como efetivo “esbulho renitente”, a conclusão que se impõe é a de que o indispensável requisito do marco temporal da ocupação indígena, fixado por esta Corte no julgamento da Pet 3.388 não foi cumprido no presente caso. (…) (sem grifo no original)

No mesmo sentido vem decidindo o TRF da 4ª Região:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. OCORRÊNCIA. INTEGRAÇÃO. EFEITOS INFRINGENTES. TERRAS INDÍGENAS. MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO. RENITENTE ESBULHO. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES DO STF. 1. Os embargos de declaração destinam-se à supressão de omissão, contradição ou obscuridade na decisão impugnada. Constatada a ausência de enfrentamento de questão relevante para a solução do litígio, impõe-se a integração do julgado. 2. O conceito de terras “tradicionalmente ocupadas” por índios, previsto o artigo 231, § 6º, da Constituição Federal de 1988, foi explicitado pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da súmula n.º 650, que dispõe: ‘os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.’ O marco temporal de ocupação, para o reconhecimento de terra indígena, é a data da promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, ressalvada a hipótese de renitente esbulho. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 3. O esbulho renitente da posse não se confunde com ocupação remota ou desocupação forçada, ocorrida no passado. Para sua configuração, é indispensável a existência de situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988). E esse conflito deve materializar-se em circunstâncias de fato ou controvérsia possessória judicializada. (TRF4, APELREEX 5000201-60.2012.404.7202, Quarta Turma, Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão Caminha, juntado aos autos em 05/05/2015)

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS.  CF/88, ART. 231. DEMARCAÇÃO. MARCO TEMPORAL. ESBULHO RENITENTE. NÃO CONFIGURAÇÃO.  1. O conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto, conforme o enunciado da Súmula 650/STF. 2. A configuração de “terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas”, bem da União suscetível de demarcação, cuja posse e fruição é assegurada às comunidades indígenas a ela vinculadas, à exclusão de qualquer outro, conforme previsto no art. 231 e parágrafos da Constituição da República, dado o requisito temporal fixado pelo STF no julgamento da Petição 3.388 (caso “Raposa Serra do Sol”), exige que ditas terras estivessem sendo tradicionalmente ocupadas pelos indígenas na data de 05 de outubro de 1988, ou que, não sendo mais por eles ocupadas naquela data em face de desalojamento coercitivo, tenham sido por eles ocupadas no passado e fossem, quando da promulgação da Constituição de 1988, objeto de efetiva disputa possessória entre índios e não índios, configurando-se, assim, o “esbulho renitente”. 3. Se, em outubro de 1988, a relação da comunidade indígena com a terra da qual fora desalojada no passado limita-se a incursões ocasionais, ou a iniciativas esparsas no sentido de reaver a terra, ou a anseios pelo grupo de retorno ao local, não estão presentes elementos suficientes para configurar o “esbulho renitente”, que, conforme entendimento emanado do STF, exige conflito possessório efetivo. 4. Remessa oficial e apelações desprovidas.  (TRF4, APELREEX 5006473-76.2012.404.7006, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Candido Alfredo Silva Leal Junior, juntado aos autos em 07/05/2015)

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS.  CF/88, ART. 231. DEMARCAÇÃO. MARCO TEMPORAL. ESBULHO RENITENTE. NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. O conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto, conforme o enunciado da Súmula 650/STF.2. A configuração de “terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas”, bem da União suscetível de demarcação, cuja posse e fruição é assegurada às comunidades indígenas a ela vinculadas, à exclusão de qualquer outro, conforme previsto no art. 231 e parágrafos da Constituição da República, dado o requisito temporal fixado pelo STF no julgamento da Petição 3.388 (caso “Raposa Serra do Sol”), exige que ditas terras estivessem sendo tradicionalmente ocupadas pelos indígenas na data de 05 de outubro de 1988, ou que, não sendo mais por eles ocupadas naquela data em face de desalojamento coercitivo, tenham sido por eles ocupadas no passado e fossem, quando da promulgação da Constituição de 1988, objeto de efetiva disputa possessória entre índios e não índios, configurando-se, assim, o “esbulho renitente”.3. Se, em outubro de 1988, a relação da comunidade indígena com a terra da qual fora desalojada no passado limita-se a incursões ocasionais, ou a iniciativas esparsas no sentido de reaver a terra, ou a anseios pelo grupo de retorno ao local, não estão presentes elementos suficientes para configurar o “esbulho renitente”, que, conforme entendimento emanado do STF, exige conflito possessório efetivo.4. Remessa oficial e apelações desprovidas. (TRF4, APELREEX 5006469-39.2012.404.7006, Quarta Turma, Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão Caminha, juntado aos autos em 18/06/2015)

Observo que no precedente acima citado (TRF4, APELREEX 5006473-76.2012.404.7006, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Candido Alfredo Silva Leal Junior, juntado aos autos em 07/05/2015), é retratada situação concreta que revela relação semelhante dos indígenas com a área reivindicada (ao menos em período contemporâneo à promulgação da Constituição Federal de 1988):

(…) Esses depoimentos indicam que não chegou a se estabelecer litígio efetivo entre índios e não-índios sobre a posse da terra depois deles terem sido desalojados da Fazenda Passo Liso, no início da década de 1960, mantendo os indígenas apenas uma relação tênue com a área da qual foram desalojados, não mais intensa do que aquela que as circunstâncias permitiam, sem configurar efetivo litígio possessório.

Aliás, a permanência dessa relação dos índios com a terra que lhe fora tirada, mais anímica do que efetiva, estava presente naqueles precedentes em que o Supremo Tribunal Federal afastou a configuração do esbulho renitente.

Exemplificativamente, no caso objeto do ARE 803462, em que não foi reconhecido o esbulho renitente, o laudo pericial antropológico havia narrado a seguinte situação:

Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu ocupação indígena (no sentido de uso para habitação) até o ano de 1953, quando em meio ao processo de demarcação houve a expulsão dos índios da área, mas a ocupação (como uso de recursos naturais e ambientais) permanece até os dias de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra.” [O grifo é meu]

No voto do relator, Ministro Teori, há ainda a seguinte afirmação:

Também não pode servir como comprovação de “esbulho renitente” a sustentação desenvolvida no voto vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto a órgãos públicos, desde o começo do Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propósito, (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual.

Portanto, se em outubro de 1988 a relação da comunidade indígena com a terra da qual fora desalojada no passado limita-se a incursões ocasionais, ou a iniciativas esparsas no sentido de reaver a terra, ou a anseios pelo grupo de retorno ao local, não estão presentes elementos suficientes para configurar o “esbulho renitente”, que exige conflito possessório efetivo.

Portanto, no caso concreto não se verifica ocupação tradicional dos índios kaigangs na região de Passo Grande da Forquilha ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), sempre devendo ser salientado que o STF não compreende a palavra “tradicionalmente” como posse imemorial (RE 219.983, Pet. 3.388, RMS 29.087 e ARE 803.462).

Do mesmo modo, não configurado esbulho renitente por parte de não-índios quando da promulgação da Constituição Federal tendo em vista que ocupação remota ou desocupação forçada, ocorrida no passado, não o configura, considerando a necessidade para tanto da existência de situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual a ser considerado (05/10/1988), conflito esse que deve materializar-se em circunstâncias de fato ou controvérsia possessória judicializada, situações inocorrentes no caso concreto uma vez que o acampamento de retomada (quanto, então, efetivamente reinicia-se o conflito possessório) somente foi erigido em 2004, quase 15 (quinze) anos depois da promulgação da atual Constituição.

Logo, não preenchidos os requisitos do art. 231 da Constituição Federal de rigor a procedência da ação para anular a Portaria Declaratória n° 498, de 25 de abril de 2011, do Ministério da Justiça que declarou como de ocupação tradicional do grupo indígena kaigang a área com superfície aproximada de 1.916 hectares e perímetro de aproximados 29 km, no interior dos Municípios de Sananduva/RS e Cacique Doble/RS, denominada na Portaria como “Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha”.

Em conclusão, é preciso deixar registrado que a interpretação restritiva quanto ao marco temporal da ocupação tradicional indígena (que não se confunde com posse imemorial) para fins de demarcação na forma do art. 231 da CF/88 tem justificativa (e por isso não se abandona a interpretação do STF, embora não vinculante, fixada no precedente Pet. 3.388/RR) porque a demarcação sequer de desapropriação se trata, mas sim de simples reconhecimento de uma situação pré-existente que não rende ensejo a qualquer indenização por parte da União, ressalvada as benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé (art. 231, §6°, CF/88).

A vir a ser acolhida a teoria do indigenato, sem outras condicionantes que não a posse imemorial, é possível vislumbrar os graves distúrbios sociais que poderiam vir a ser ocasionados, maiores dos que os já noticiados, o que em nada contribuiria para a solução da questão quanto às terras de que efetivamente necessitam e fazem jus as comunidades indígenas para a sua sobrevivência como grupo étnico diferenciado, como bem demonstra o presente feito em que os índios kaigangs estão em acampamento precário desde o ano de 2004, sem perspectiva a curto e médio prazo de uma solução.

Além do mais, é preciso que se diga que a pretensão da FUNAI em demarcar como terras indígenas áreas que manifestamente não eram ocupadas por índios em 05/10/1988, sem indenização aos atuais proprietários além das benfeitorias, tem o potencial de gerar consequências graves e imprevisíveis, a exemplo de confronto ocorrido em 2016 entre agricultores e indígenas, que motivou o prefeito de Sananduva a decretar estado de calamidade pública (evento 396, MEMORIAIS1).

Por isso, há que se deixar registrado que a interpretação restritiva do STF quanto ao marco temporal da ocupação indígena para fins de demarcação não impede a criação de áreas para os índios por outras formas jurídicas, ainda que no mesmo local em que se reconheçam ausentes os requisitos para a demarcação na forma do art. 231 da CF/88, notadamente a compra de terras ou mesmo a desapropriação por interesse social, neste caso mediante prévia e justa indenização em dinheiro, não só das benfeitorias (como prevê o art. 231. §6°, da CF/88) mas também da terra nua (maior entrave para o andamento dos processos de demarcação). O próprio Estatuto do Índio ressurte (art. 26, Lei n° 6.001/73) que a União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais.

Sendo assim, à vista de alternativas à demarcação na forma do art. 231 da CF, e evidenciado que a reocupação das terras de Passo Grande do Rio Forquilha pelos indígenas se deu por motivos outros que não esbulho renitente por parte de não-índios, é de ser julgada procedência da ação, com a consequente anulação da Portaria Declaratória nº 498, de 25 de abril de 2011.

III – DISPOSITIVO

Ante o exposto, acolho a preliminar arguida, reconhecendo a ilegitimidade passiva do Estado do Rio Grande do Sul e, no mérito, JULGO PROCEDENTE o pedido (ex vi art. 487, I, do CPC), para, reconhecendo ausentes os requisitos do art. 231 da Constituição Federal, anular a Portaria Declaratória nº 498, de 25 de abril de 2011, do Ministro da Justiça, que declarou como de ocupação tradicional indígena kaigank a área com superfície aproximada de 1.916 hectares, denominada “Terra Índígena Passo Grande do Rio Forquilha”, nos termos da fundamentação.

Defiro a antecipação dos efeitos da tutela para sustar até o trânsito em julgado desta sentença o prosseguimento de quaisquer atos de demarcação na forma do art. 231 da Constituição Federal e Decreto n° 1.775/96 da denominada “Terra Indígena de Passo Grande do Rio Forquilha” objeto da Portaria Declaratória n° 498/2011 do Ministério da Justiça e que restou anulada nesta sentença.

Diante da sucumbência, condeno as rés União e FUNAI ao pagamento pro rata dos honorários advocatícios em favor do procurador do autor, os quais, tendo em vista a complexidade da demanda, a área envolvida na demarcação anulada, o excelente trabalho profissional desempenhado, a provável e longa tramitação do feito nas instâncias superiores, arbitro em R$ 30.000,00 (trinta mil reais), atualizáveis pelo IPCA-E a partir desta data (art. 85, parágrafos 2º e 8º, do CPC)

Sem condenação em custas processuais porque as rés gozam de isenção legal (art. 4°, I e II, da Lei n° 9.289/96).

Sem reexame necessário, considerando os termos do art. 19 da Lei nº 4.717/65.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Notifique-se o Ministério Público Federal.

Interposto(s) o(s) recurso(s), intime(m)-se a(s) parte(s) contrária(s) para apresentação de contrarrazões. Decorrido os respectivos prazos, remetam-se os autos ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

LUIZ CARLOS CERVI, Juiz Federal

(DOCUMENTO ASSINADO ELETRONICAMENTE)

Direito Agrário

Leia também:

– Conheça o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito FUNAI-INCRA 2 e seus anexos (Portal DireitoAgrário.com, 07/05/2017)
– Na CPI da Funai, Ministro da Defesa Aldo Rebelo confirma interferência de ONGs estrangeiras (Portal DireitoAgrário.com, 01/04/2016)
– Direito de propriedade: Estado tem o dever de demarcar terras indígenas de forma legal e mediante justa indenização (Portal DireitoAgrário.com, 05/12/2017)
– Desapropriação: União terá que indenizar ex-proprietários de fazenda posteriormente declarada terra indígena (Portal DireitoAgrário.com, 13/06/2016)
– Reintegração de posse: TRF4 determina a desocupação de fazenda invadida por indígenas (Portal DireitoAgrário.com, 03/05/2016)
– Proprietário de fazenda ocupada por indígenas está desobrigado de pagar Imposto Territorial Rural – ITR (Portal DireitoAgrário.com, 19/04/2016)
– Fundação Ford patrocina delegação indígena crítica do Agronegócio Brasileiro na COP 23 (Portal DireitoAmbiental.com)
– A VIOLAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA SEGURANÇA JURÍDICA NAS SUSPENSÕES DE SEGURANÇA EM REINTEGRAÇÃO DE POSSE (Portal DireitoAgrário.com, 15/03/2017)

Leia também

Vídeo do II Congresso Universitário Interdisciplinar de Direito Agrário – CUIDA

Está disponível o vídeo do II Congresso Universitário Interdisciplinar de Direito Agrário – CUIDA, evento …