A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), confirmando acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), estipulou que o georreferenciamento de imóvel rural somente é obrigatório nos casos em que a demanda puder implicar modificação no registro imobiliário.
A ação, na origem, pedia a cessação de ameaça de esbulho sobre imóvel rural por extrapolação indevida das divisas de uma chácara. O juiz de primeiro grau julgou procedentes os pedidos para determinar a expedição do mandado de manutenção de posse da área litigiosa e o retorno da divisa para o lugar do antigo muro. O TJMT confirmou a sentença.
No recurso apresentado ao STJ, o recorrente alegou que a descrição georreferenciada da área litigiosa seria indispensável à propositura da ação possessória sobre o imóvel rural. Afirmou, ainda, que o georreferenciamento do referido imóvel era pressuposto processual de validade da ação, e sua não apresentação implicaria a extinção do processo sem resolução do mérito.
Registro
Ao negar provimento ao recurso especial, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, explicou que o georreferencimento é dispensável para imóvel rural em ações possessórias nas quais a procedência dos pedidos formulados na ação inicial não ensejarem modificação de registro. “O georreferenciamento é imprescindível somente em processos judiciais aptos a provocar alterações no registro imobiliário”, ressaltou.
O ministro disse ser importante fazer a diferenciação entre o presente caso e outro julgado também na Terceira Turma, cujo acórdão assentou que o memorial descritivo georreferenciado é obrigatório em hipóteses envolvendo o pedido de usucapião de imóvel rural.
“No caso ora em apreço, o georrefereciamento é dispensável porque a determinação judicial não implica alteração no registro imobiliário do imóvel, pois se discute apenas a posse. Diferente é o cenário fático do processo já apreciado por esta Corte Superior (REsp 1.123.850), haja vista que o reconhecimento da usucapião acarreta a transferência da titularidade do domínio”, explicou.
Fonte: STJ.
Confira a íntegra do Julgado:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.646.179 – MT (2016/0334574-6)
RECORRENTE : CLOMAR ANTONIO PINTO VIEIRA
ADVOGADO : JONAS J F BERNARDES – MT008247
RECORRIDO : JOSÉ HAMILTON RIBEIRO DA LUZ & CIA LTDA
ADVOGADO : SAIONARA SUZANA JUELG – MT006045B
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto por CLOMAR ANTONIO PINTO VIEIRA, com fundamento no art. 105, III, “a”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso assim ementado:
“INTERDITO PROIBITÓRIO CONVERTIDO EM MANUTENÇÃO POSSE – PRELIMINARES – CARÊNCIA DE AÇÃO – INTERESSE DE AGIR – INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTO DE CONSTITUIÇÃO E DESENVOLVIMENTO VÁLIDO DO PROCESSO INDIVIDUALIZAÇÃO SUFICIENTE DA ÁREA – OBRIGATORIEDADE DE DESCRIÇÃO GEORREFERENCIADA – REJEITADAS – PROVADA POSSE E DO ESBULHO – INVASÃO DE PARTE DA ÁREA – CONSTRUÇÃO DE MURO – DESFAZIMENTO – SENTENÇA ESCORREITA – RECURSO DESPROVIDO.
É possível a conversão de ofício, com base no art. 920 do CPC, da ação de interdito proibitório em manutenção de posse, diante da ocorrência efetiva da turbação.
Na ação possessória o objeto da lide precisa estar descrito de forma precisa e com definição de seus contornos, devendo ser rejeita a carência de ação por ausência de individualização.
A tutela possessória reclama a convergência dos requisitos previstos no art. 927 do CPC – posse, esbulho, data do esbulho e perda da posse que se incluem na esfera probante do autor, por moldar o fato constitutivo do seu direito. O preenchimento dos requisitos legais enseja a manutenção da sentença que julgou procedente a demanda” (fl. 638 e-STJ).
Os embargos de declaração foram rejeitados (fls. 669-675 e-STJ).
Em suas razões, o recorrente alega violação dos arts. 2º do Decreto nº 5.570/2005 e 225, § 3º, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos).
Sustenta que a descrição e a identificação georreferenciada da área litigiosa constitui documento indispensável à propositura da ação possessória sobre imóvel rural.
Acrescenta que “o georreferenciamento do imóvel rural em questão é/era pressuposto processual de validade da ação, e a sua não apresentação importa na extinção do processo sem resolução do mérito” (fl. 689 e-STJ).
Pondera que a exigência legal não se aplica apenas às hipóteses de desmembramento, parcelamento, remembramento ou transferência da propriedade, mas também aos casos de demandas possessórias.
Sem as contrarrazões (fl. 699 e-STJ), a Vice-Presidência do Tribunal de origem admitiu o processamento do presente recurso.
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator):
O acórdão impugnado pelo recurso especial foi publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
A irresignação não merece prosperar.
Cinge-se a controvérsia a definir se a identificação dos limites da área rural objeto de demanda possessória deve ser feita mediante a apresentação de memorial descritivo georreferenciado.
1. Do histórico da demanda
Na origem, José Hamilton Ribeiro da Luz & CIA. LTDA. (ora recorrido) ajuizou ação de interdito proibitório, com pedido de liminar, contra Clomar Antônio Pinto Vieira (ora recorrrente) postulando a cessação da ameaça de turbação ou de esbulho sobre o imóvel rural para que o serviço de limpeza da área pudesse ser efetivamente concluído (fls. 12-22 e-STJ).
O Juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos formulados na inicial para determinar a expedição do mandado de manutenção de posse da área litigiosa e o retorno da divisa para o lugar do antigo muro (fls. 544-548 e-STJ).
Interposta apelação (fls. 562-605 e-STJ), o Tribunal de origem negou provimento ao recurso com base nos seguintes fundamentos:
“(…) Quanto a alegação de carência de ação por ausência de interesse de agir e inadequação da via eleita, aduz que na espécie a ação cabível seria a demarcatória, adequada para realizar as medições na arca litigiosa.
Entendo que o que consta dos autos comprova suficientemente a limitação do imóvel e o local do esbulho/turbação, não havendo falta de interesse de agir.
Cumpre registrar que para o desenvolvimento da ação demarcatória há necessidade da inexistência de limites certos entre os dois imóveis lindeiros, sendo então, necessário o juízo petitório para desmarcar as áreas, o que não ocorreu no caso, posto que não existe confusão dos limites.
Desse modo, rejeito a preliminar.
Ainda em preliminar argui a ausência dos pressupostos de constituição e desenvolvido válido e regular do processo, por não haver individualização da área, bem como da descrição georreferenciada do imóvel.
Quanto à individualização, observo que, demonstrada a área total, através da matrícula do imóvel (fl.24), com delimitação na peça vestibular da localização da parte supostamente esbulhada/turbada, inclusive relevada por
meio fotográfico, entendo satisfatório o referido requisito (fls. 25/32). Ademais, a prova testemunhal e pericial colhidas na fase instrutória são uníssonas em demonstrar o local do esbulho/turbação.(…)
No que tange a alegação de ausência da descrição georreferenciada do imóvel litigioso, argumenta o apelante que se trata de exigência legal, nos termos do art. 2º, do Decreto n° 5.570/2005 c/c art. 225, da Lei n. 6.015/73.
No entanto, o decreto citado criou uma serie de exigências para o registro de escritura, dentre elas a identificação da área do imóvel rural, determinando a obrigatoriedade de georreferenciamento para os casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, matéria não debatida no caso.
Portanto, rejeito a preliminar.
No mérito, sustenta que as provas produzidas denotam a inexistência de comprovação da posse da área litigiosa pela autora.
Sem razão. Da análise minuciosa da celeuma, entendo que a decisão proferida pelo magistrado, após proceder a oitiva de testemunhas e ampla instrução processual, merece prevalecer.
Segundo se depreende da prova coligida, a apelada é a legítima possuidora e proprietária do imóvel em litígio, sendo esbulhada/turbada pelo apelante no momento em que extrapolou indevidamente as divisas do imóvel” (fls. 642-645 e-STJ).
Os embargos de declaração opostos (fls. 653-664 e-STJ) foram rejeitados (fls. 669-675 e-STJ).
Feitos esses esclarecimentos, passa-se à análise do recurso especial.
2. Desnecessidade de georreferenciamento em demanda possessória
O ora recorrente sustenta que a descrição georreferenciada da área litigiosa constitui documento indispensável à propositura da ação possessória sobre o imóvel rural, motivo pelo qual o processo deve ser extinto sem resolução do mérito.
Georreferenciar “significa descrever um imóvel segundo informações geodésicas de seus vértices, ou seja, criou-se uma nova maneira de descrever os imóveis rurais a partir de pontos geodésicos obtidos por satélites”. Nesse quadro, em termos técnicos, o georreferenciamento consiste
“(…) na obrigatoriedade da descrição do imóvel rural em seus limites, características e confrontações através de memorial descritivo firmado por profissional habilitado, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos
limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo Incra.” (OLIVEIRA, Adriana Tolfo de; NEVES, Renato Ourives. Georreferenciamento: princípio constitucional da eficiência e direito de obter certidão. http://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/105193. Acesso em 19/11/2018 às 16h22).
O princípio da especialidade objetiva impõe que todo imóvel levado a registro esteja perfeitamente individualizado. Para fins de matrícula, a identificação do imóvel rural será feita com a indicação do “código (…), dos dados constantes do CCIR [Certificado de Castrado de Imóvel Rural], da denominação e de suas características, confrontações, localização e área” (art. 176, § 1º, II, 3, “a”, da Lei nº 6.015/1973).
O art. 225, caput, da Lei de Registros Públicos (LRP) estabelece que, em autos judiciais, as partes indiquem, “com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis, mencionado o nome dos confrontantes“.
Em seguida, o § 3º do referido art. 225 prescreve que, em caso específico de processos judiciais que versem sobre imóveis rurais, “a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART”, devendo conter “as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA” (grifou-se).
Por sua vez, o art. 10 do Decreto nº 4.449/2001, com a redação dada pelo Decreto nº 5.570/2005, estatuiu que a identificação da área rural do imóvel por meio de memorial descritivo georreferenciado será exigida nas hipóteses de desmembramento, parcelamento, remembramento e transferência da titularidade do bem. Por oportuno, transcreve-se a redação do mencionado dispositivo legal:
“Art. 10. A identificação da área do imóvel rural, prevista nos §§ 3º e 4º do art. 176 da Lei no 6.015, de 1973, será exigida nos casos de desmembramento, parcelamento, remembramento e em qualquer situação de transferência de imóvel rural, na forma do art. 9º, somente após transcorridos os seguintes prazos: (Redação dada pelo Decreto nº 5.570, de 2005 – grifou-se)”.
Nesse contexto, o georreferenciamento é imprescindível somente em processos judiciais aptos a provocar alterações no registro imobiliário. Isso porque a sua finalidade “é a de evitar qualquer tipo de distorção ou fraude no espelho imobiliário, e garantir, por consequência, maior realidade das informações constantes nos registros públicos” (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, pág. 414).
No caso, trata-se de demanda de natureza possessória na qual a causa de pedir está pautada em turbação e/ou esbulho sofrido pelo autor (ora recorrido), consoante os termos da petição inicial (fls. 15-22 e-STJ).
Assim, a procedência dos pedidos formulados pelo autor não enseja a modificação no registro do imóvel objeto da presente lide, mas apenas o reconhecimento do direito de manutenção ou reintegração na posse, motivo pelo qual não se faz necessário exigir o georreferencimento do imóvel.
Ademais, o Tribunal local entendeu que o autor (ora recorrido) realizou a individualização do imóvel na petição inicial por meio da respectiva matrícula, de fotografias e de provas testemunhal e pericial colhidas na fase instrutória.
Por fim, é preciso fazer a distinção (distinguishing) com o acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial nº 1.123.850-RS, no qual a Terceira Turma desta Corte Superior assentou que o memorial descritivo georreferenciado é indispensável em casos envolvendo o pedido de usucapião de imóvel rural. Eis, por por pertinente, a ementa do referido acórdão:
“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTROS PÚBLICOS. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEL RURAL. INDIVIDUALIZAÇÃO. MEMORIAL DESCRITIVO GEORREFERENCIADO. NECESSIDADE. LEIS 6.015/1973 E 10.267/2001.
1- O princípio da especialidade impõe que o imóvel, para efeito de registro público, seja plenamente identificado, a partir de indicações exatas de suas medidas, características e confrontações.
2- Cabe às partes, tratando-se de ação que versa sobre imóvel rural, informar com precisão os dados individualizadores do bem, mediante apresentação de memorial descritivo que contenha as coordenadas dos vértices definidores de seus limites, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro. Inteligência do art. 225, caput e § 3°, da Lei n. 6.015/1973.
3- Recurso especial provido.”
(REsp 1.123.850/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/5/2013, DJe 27/5/2013)
No caso ora em apreço, o georrefereciamento é dispensável porque a determinação judicial não implica alteração no registro imobiliário do imóvel, pois se discute apenas a posse. Diferente é o cenário fático do processo já apreciado por esta Corte Superior (REsp nº 1.123.850-RS), haja vista que o reconhecimento da usucapião acarreta a transferência da titularidade do domínio.
3. Do dispositivo
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
Na origem, os honorários sucumbenciais foram fixados em R$ 8.000,00 (oito mil reais), os quais devem ser majorados para R$ 10.000,00 (dez mil reais) em favor do advogado da parte recorrida, nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil de 2015, observado o benefício da gratuidade da justiça, se for o caso.
É o voto.
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. REGISTROS PÚBLICOS. AÇÃO POSSESSÓRIA. IMÓVEL RURAL. GEORREFERENCIAMENTO. DESNECESSIDADE. ART. 225, CAPUT, DA LEI Nº 6.015/1973. ART. 10 DO DECRETO Nº 4.449/2001.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Cinge-se a controvérsia a definir se a identificação dos limites da área rural objeto de demanda possessória deve ser feita mediante a apresentação de memorial descritivo georreferenciado.
3. A identificação da área rural do imóvel por meio de georreferenciamento será exigida nas hipóteses de desmembramento, parcelamento, remembramento e transferência da titularidade do bem.
4. É dispensável o georreferencimento do imóvel rural em ações possessórias nas quais a procedência dos pedidos formulados na inicial não enseja a modificação no registro do imóvel.
5. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 04 de dezembro de 2018(Data do Julgamento)
Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA
Relator
[Observação: O processo tramita sem segredo de justiça e os dados ora reproduzidos são publicizados pela justiça brasileira.]