por Fabiano Cotta de Mello.
O governo do Estado de Mato Grosso editou norma permitindo a reabertura e funcionamento de atividades privadas como shopping centers, lojas de departamento, galerias e congêneres, colidindo frontalmente com norma anterior editada pelo Município de Cuiabá, e com normas de outros municípios mato-grossenses, que proibiram o funcionamento de qualquer estabelecimento comercial ou de prestação de serviços, ao menos, até o dia 5 de abril.
Não se tem dúvidas de que a Administração Pública atua nesse momento de crise imbuída das melhores intenções, tentando construir uma justa medida entre o combate à disseminação do COVID-19 e a necessária manutenção das atividades produtivas, sob pena de falência total da economia. De modo que a análise proposta nesse ensaio não é sobre o mérito dos atos dos administradores, mas sobre a competência dos entes federativos para legislar sobre medidas de combate à pandemia.
No Decreto 425/2020, editado pelo Governador de Mato Grosso com base no poder regulamentar previsto no art. 66, III e V, da Constituição Estadual, foi autorizado o funcionamento de shopping centers e congêneres, condicionando o exercício da atividade ao respeito ao distanciamento mínimo de 1,5m entre as pessoas e à observância das normas sanitárias de prevenção à disseminação do coronavírus.[1]
Todavia, o aludido decreto estadual entrou em rota de colisão com os decretos municipais editados pelo prefeito de Cuiabá para combater o avanço da pandemia entre a população cuiabana, em especial, às disposições constantes dos arts. 12, 13 e 14 do Decreto Municipal 7.849, de 20 de março de 2020, que, estabelecendo medidas temporárias, emergenciais e adicionais aplicadas à atividade econômica de cunho privado, determinou o fechamento de quaisquer estabelecimentos comerciais e de serviços no âmbito do Município de Cuiabá, inclusive shopping centers, restaurantes, bares, lanchonetes e congêneres, templos, igrejas, academias, clubes e similares, feiras livres e exposições em geral, e a atividade de trabalhadores informais, tais como ambulantes, do dia 23 de março até 5 de abril de 2020, podendo esse prazo ser prorrogado.[2]
Foi expressamente consignado no Decreto Estadual 425/2020 que as normas nele dispostas vinculam os municípios de Mato Grosso, que somente poderão adotar medidas não farmacológicas mais restritivas mediante fundamentação técnico-científica que justifique a providência no âmbito local.[3]
Tendo em vista que o fechamento de estabelecimentos comerciais é uma medida não farmacológica, conclui-se que o decreto estadual vedou aos municípios mato-grossenses o fechamento de estabelecimentos comerciais de forma mais restritiva do que a nele prevista.
Diante desse embate, surge o seguinte questionamento: O setor que desempenha atividade econômica de cunho privado no Município de Cuiabá deve observar o decreto estadual ou o decreto municipal?
Ao entendimento da controvérsia instaurada, necessárias algumas considerações sobre questão de técnica jurídica: a repartição constitucional de competências dos entes federativos que, no dizer de Jean François Aubert, é a grande questão do federalismo.[4]
Na Constituição de 1988, onde reconhecidamente foi instituída uma pluralidade de ordenamentos no Estado Federal, a repartição de competências visa estabelecer uma unidade dialética entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios e vedar o choque e/ou a usurpação de competências entre eles.
Ao classificar os tipos de federalismo, o saudoso Professor Raul Machado Horta preleciona que quanto à repartição de competência, o federalismo pode ser dual ou pode ser cooperativo.
O federalismo dual (clássico) consiste numa repartição de competências privativas entre as entidades federadas, que atuam como esferas distintas, separadas e independentes, não havendo entre elas qualquer tipo de cooperação ou colaboração recíproca. Foi o tipo de federalismo que prevaleceu no Brasil na Constituição de 1891.
Já o federalismo cooperativo (neoclássico) caracteriza-se pela colaboração recíproca e atuação paralela ou comum entre os poderes central e regionais. No Brasil, esse tipo de federalismo começou a partir da Constituição de 1934 e foi acentuado pela atual Constituição.
Ao analisar a repartição de competências na CF/88, o mestre mineiro anota que o constituinte, inspirado nos federalismos canadense, austríaco, alemão da República Federal e indiano, adotou uma repartição de competências em cinco planos distintos: I) o da competência geral da União (art. 21): II) o da competência de legislação privativa da União (art. 22): III) o da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23); IV) o da competência de legislação concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24); e V) o plano da competência dos poderes reservados aos Estados (arts. 25 e 125).
Duas ponderações do ilustre constitucionalista merecem ressalte à solução do caso concreto.
A primeira, é no sentido de que a CF/88 inovou ao incluir o Município na competência comum (que é uma competência administrativa ou material, não se confundindo com a competência para legislar), a fim de preservar valores e objetivos do Poder Público como, v.g, a competência do Município para adotar medidas administrativas para cuidar da saúde e assistência pública (art. 23, II).
De outro lado, a segunda ponderação é no sentido de que o Município não participa da repartição federal de competências para legislar. Razão pela qual a Constituição reservou espaço próprio para enumerar a apreciável competência dos Municípios (arts. 29 a 31).[5]
Atento a essa topografia constitucional, viável concluir que o Município não pode invocar a competência legislativa prevista no art. 30, I, da CF/88 (competência para legislar sobre assuntos de interesse local) para contrariar norma federal ou estadual que regulamente matéria abrangida pela competência legislativa concorrente, prevista no art. 24, XII, quando trata da proteção e defesa da saúde.
Recorde-se que a expressão interesse local, doutrinariamente, significa um peculiar interesse ínsito àquela localidade — o que, por si só, desautoriza o Município a legislar quando a matéria for, por exemplo, medidas de enfrentamento a uma emergência de saúde pública de interesse internacional como é o surto do COVID-19.[6]
Em outras palavras, não pode o Município de Cuiabá, ou qualquer outro município mato-grossense, sob a alegação de estar legislando sobre assunto de interesse local, editar normas (leis ou atos administrativos normativos) que conflitem com a legislação concorrente de normas gerais criada pela União ou da legislação concorrente estadual suplementar criada pelo Estado-Membro, sob pena de usurpação de competência para legislar.
Como já assentado pelo STF, quando os Estados ou o Distrito Federal editam norma tratando, v.g., de medida de interesse epidemiológico, o fazem com base no art. 23, I, da Constituição, que dispõe sobre a competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para cuidar da saúde e a assistência pública, bem como no art. 24, XII, da Carta Magna, que atribuiu apenas à União, aos Estados-Membros e ao Distrito Federal competência concorrente para legislar sobre proteção e defesa da saúde.[7]
Portanto, é evidente que o Município, porque não exerce competência legislativa concorrente, não está autorizado a legislar sobre proteção e defesa da saúde, devendo se submeter às normas ditadas pela União e/ou pelo Estado-Membro.
No caso em exame, a União editou a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, instituindo, através de normas gerais, medidas que, exemplificativamente, poderão ser adotadas por cada ente federado, no âmbito de suas competências, para o enfrentamento da pandemia. [8]
Dentre essas medidas de enfrentamento, no art. 3º, II, consta a quarentena, cujo conceito legal engloba a restrição de atividades de maneira a evitar contaminação ou a propagação do coronavírus.[9]
Note-se que a aludida lei federal não esvazia a competência constitucional comum, atribuída a todos os entes federados para cuidarem da saúde, dirigirem o sistema único, executarem ações de vigilância sanitária e epidemiológica, nos termos dos arts. 23, II, 198, I, e 200, II, todos da CF/88, mormente porque as medidas prevista na Lei nº 13.979/2020 tem caráter meramente exemplificativo, admitindo outras, que podem ser criadas, por exemplo, pelo próprio Município.
Não obstante, até para que haja sentido na organização político-administrativa estabelecida na Constituição em vigor, o Município não pode impor medida de enfrentamento ao coronavírus que já esteja regulamentada no âmbito federal e/ou estadual, sob pena de instituir indesejada disputa normativa entre os entes federados, espírito completamente antagônico ao de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, preconizada pelo constituinte no parágrafo único do art. 23 da CF/88.
Assim, se o governo estadual, com base na competência legislativa concorrente prevista no art. 24, XII, edita norma específica para a proteção e defesa da saúde permitindo, como no caso em testilha, o funcionamento regrado de shopping centers e congêneres, essa normatização estadual vincula todos os municípios mato-grossenses, pois a competência constitucional desses para legislar sobre as matérias previstas no já referido art. 24 é suplementar, nos termos do art. 30, II, da Magna Carta. [10]
Vale dizer, o Município, em matéria de proteção e defesa da saúde, só pode legislar para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
Havendo, portanto, dissonância entre a norma municipal e a norma estadual, ainda que superveniente, como ocorreu no caso de Mato Grosso, prevalece do decreto estadual sobre medidas de enfrentamento ao coronavírus.
Poder-se-ia alegar contra o raciocínio aqui defendido que o prefeito, ao editar os decretos suso referidos, não teria legislado, mas sim proferido mero ato administrativo normativo, a fim de dar cumprimento à competência constitucional comum para cuidar da saúde e assistência pública (art. 23, II). Contudo, existiriam dois flagrantes equívocos nessa objeção.
O primeiro seria no sentido desse raciocínio não englobar na repartição de competências para legislar a prática de atos administrativos normativos. O que é um equívoco. Pois, em que pese o decreto regulamentar não seja lei propriamente dita (aqui entendida lei como o ato normativo emanado do Poder Legislativo no exercício da atividade típica de legislar), ele deve ser classificado como espécie do gênero norma jurídica. Logo, a edição de ato administrativo normativo exige a verificação sobre a existência de competência do ente federativo para legislar sobre a matéria ou, ao menos, da existência de competência não legislativa (administrativa ou material).
O segundo equívoco consistiria em, a partir da competência comum prevista no art. 23, II, da CF/88, autorizar o Município a adotar medidas contrárias à legislação federal ou estadual que já rege a matéria, importando, por via indireta, na criação de uma competência legislativa municipal não prevista na Constituição em vigor.
Logo, àqueles que sustentam que o Município de Cuiabá não está vinculado às medidas de enfrentamento ao coronavírus estabelecidas pelo Decreto Estadual 425/2020 — porque o Decreto Municipal 7.849/2020 já teria regulamentado a matéria no exercício da competência administrativa municipal prevista no art. 23, II, da CF/88 —, ainda assim o decreto municipal padeceria de manifesta ilegalidade, uma vez que a normatização estadual sobre a matéria se deu com base na competência legislativa concorrente do Estado de Mato Grosso, prevista no art. 24, XII, da CF/88, cujos termos são vinculantes os municípios.
Ao fim e ao cabo, o que se deseja é o não embate normativo entre o Estado e o Município, mas a adoção de uma postura cooperativa na execução das necessárias medidas restritivas às atividades privadas para prevenção dos riscos de disseminação do COVID-19.
(*Atualização: O TJMT concedeu liminar em 29/03/2020, suspendendo o Decreto Estadual. Leia a liminar acessando o seguinte link: MS 1007834-59.2020 – MUNICÍPIO DE CUIABÁ X GOVERNADOR DE MT – DECRETO 425-2020.pdf)
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Notas:
[1] O Decreto 425/2020, no art. 4º, permitiu o funcionamento de diversas atividades privadas como, por exemplo, shopping centers, lojas de departamentos, galerias e congêneres (inc. LX).
[2] O Município de Cuiabá editou o Decreto 7.839/2020, em 16 de março de 2020, e, posteriormente, os Decretos Municipais 7.846/2020 e 7.487, ambos de 18 de março de 2020, e o Decreto Municipal 7.849, de 20 de março de 2020, que dispôs sobre a decretação de situação de emergência no âmbito do Município de Cuiabá para fins de enfrentamento a pandemia decorrente do novo coronavirus, com as alterações pontuais introduzidas pelo Decreto Municipal 7.850, de 23 de março de 2020.
[3] Vide: arts. 13 e 14 do Decreto Estadual 425/2020.
[4] AUBERT, Jean François. Traité de Droit Constitutionnel Suisse. Vol. I. Suisse: Éditions Ides et Calendes, 1967, p. 229)
[5] HORTA, Raul Machado. Repartição de Competências na Constituição Federal de 1988. Revista da faculdade de direito da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 33, n. 33, out./1991, p. 249-274.
[6] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 106.
[7] Confira-se: STF, ADI 2.875-8/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJe 20.06.2008; RE 286.789/RS, Segunda Turma, rela. Mina. ELLEN GRACIE, DJ 08.04.2005.
[8] A Lei nº 13.979/2020 foi parcialmente alterada pela MP nº 926/2020, cuja inconstitucionalidade formal e material é objeto de questionamento perante o STF na ADI 6.341/MC/DF, distribuída ao Min. MARCO AURÉLIO MELLO que, em 24 de março de 2020, indeferiu a medida cautelar pleiteada.
[9] O conceito legal de quarentena encontra-se previsto no inc. II do art. 2º da Lei nº 13.979/2020. O art. 3º, § 5º, I, da mesma lei estabelece que Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre as condições e os prazos aplicáveis às medidas de isolamento e de quarentena. Ainda, as medidas de isolamento e quarentena poderão ser adotadas pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nos termos do inc. II do § 7º do art. 3º.
[10] Vide: CF/88, art. 30, II: Art. 30. Compete aos Municípios: (…) II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
* Nota do Portal DireitoAgrário.com:
Cumpre registrar que o Ministério da Agricultura editou a Portaria nº 116, de 26 de março de 2020, que define atividades e serviços essenciais para garantir funcionamento do setor agropecuário e abastecimento, em alinhamento com o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020.
Igualmente, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou o Provimento nº 94, de 28 de março de 2020, com o objetivo de preservar e uniformizar a continuidade dos serviços prestados pelos Registros de Imóveis durante o período de quarentena decretado em diversos municípios.
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