“Não cabe ao Poder Judiciário fixar prazo para que a união finalize a demarcação das terras da comunidade quilombola São Roque, em Arroio do Meio (RS). Com esse entendimento, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) reformou sentença da Justiça Federal de Lajeado (RS), que havia estipulado prazo de 48 meses para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) finalizasse o procedimento iniciado em dezembro de 2010.
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou a ação civil pública em janeiro de 2014 alegando excessiva demora nas demarcações por parte do Incra. Conforme o MPF, de todos os processos de regularização de comunidades quilombolas em andamento, apenas 2,41% foram concluídos pela autarquia.
O Incra recorreu ao tribunal após a 1ª Vara Federal de Lajeado dar parcial provimento ao pedido do MPF e estipular prazo de conclusão sob pena de multa. Segundo a União, estão ocorrendo dificuldades na realização do relatório antropológico desse quilombo, não cabendo ao Poder Judiciário determinar ao Executivo como e quando devem ser realizados atos típicos de gestão.
O relator do processo no tribunal, desembargador federal Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle, destacou que a atribuição dada ao Incra de realizar a delimitação, a demarcação e a titulação dos territórios quilombolas é recente, remontando a 2003. Ele ressaltou que apenas no Rio Grande do Sul existem 91 processos de regularização fundiária tramitando, estando o de São Roque na posição de número 75, aguardando condições operacionais para o prosseguimento.
‘Não é possível ao Poder Judiciário, no caso dos autos, a fixação de prazo para que o Poder Executivo finalize o procedimento, ainda que já tenha se iniciado há mais de cinco anos. Não podemos esquecer que o processo de demarcação está sujeito ao contraditório, e envolve a necessidade de realização de pareceres técnicos especializados, de modo que a fixação de data para a sua conclusão pode comprometer o interesse da própria comunidade quilombola em questão, bem como de outros quilombos, inclusive porque existe uma ordem de demarcação’, concluiu o desembargador”.
Fonte: TRF4, 18/08/2016.
Confira a íntegra da decisão:
APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA Nº 5001072-92.2014.4.04.7114/RS
RELATOR
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LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE
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APELANTE
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INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
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UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
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APELADO
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OS MESMOS
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RELATÓRIO
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra o INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA e a UNIÃO, objetivando a demarcação e regularização da terra ocupada pela Comunidade Quilombola São Roque, de Arroio do Meio/RS.
Aduz a existência do Inquérito Civil Público nº 1.29.014.000041/2008-39, segundo o qual a Comunidade Quilombola São Roque foi certificada como tal pela Fundação Cultural Palmares – FCP em 01/03/2004 (de acordo com informações prestadas pelo INCRA) ou em 17/09/2005 (data da certidão de autorreconhecimento expedida pela FCP), tendo ocorrido a solicitação de abertura do processo de regularização fundiária ao INCRA em 23/11/2010 (fl. 49 do ICP). Refere que, de acordo com informações prestadas pela Superintendência do INCRA no Rio Grande do Sul, o processo de regularização em questão ocupa a posição 72 dentre 86 processos abertos, estando na dependência de realização de inúmeras peças técnicas.
Alega a mora do Poder Público, com base no artigo 67 do ADCT e requer que seja estabelecido o prazo de 24 (vinte e quatro) meses para a conclusão dos trabalhos pelo INCRA. Busca ainda a indenização por dano moral coletivo, em valor não inferior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).
Processado o feito, o magistrado de primeiro grau julgou parcialmente procedente o pedido. A sentença foi proferida nos seguintes termos:
III – DISPOSITIVO
Ante o exposto, afasto a preliminar arguida e, no mérito, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos lançados na presente ação civil pública, com resolução de mérito, forte no artigo 269, inciso I, do CPC, para o efeito de determinar aos réus o prosseguimento e conclusão do procedimento administrativo de demarcação e delimitação da área destinada à Comunidade Quilombola São Roque, situada em Arroio do Meio/RS (processo nº54220.002976/2010-31), no prazo de 48 (quarenta e oito) meses, nos termos da fundamentação e a contar da sua intimação, sob pena de multa diária que vai desde logo arbitrada em R$1.000,00 (mil reais), conforme requerido na inicial, sem prejuízo da responsabilização do agente público em caso de descumprimento da ordem judicial.
Apela o MPF. Requer que o recurso seja recebido somente no efeito devolutivo, nos termos do artigo 14 da Lei nº 7.347/85. Defende o prazo de 24 meses para prosseguimento e conclusão do procedimento administrativo e fixação do dano moral coletivo.
Também apela União. Em preliminar, defende que não é parte legítima para figurar no pólo passivo da lide. Discorre sobre as dificuldades administrativas na realização do Relatório Antropológico da Comunidade de São Roque, e que não cabe ao Poder Judiciário determinar ao Executivo como e onde devem ser realizados atos típicos de gestão (Administração), sob pena de grave violação ao princípio constitucional de repartição dos Poderes. Em caso de manutenção da sentença, defende a exclusão da multa moratória por descumprimento da decisão judicial.
Ainda, recorre o INCRA, na mesma linha da União.
Com contrarrazões, vieram os autos.
Parecer do Ministério Público Federal pelo parcial provimento da apelação do MPF e pelo desprovimento dos recursos do INCRA e da União (Evento 4 – PARECER1).
É o relatório.
VOTO
A controvérsia dos autos cinge-se a respeito de eventual mora e/ou omissão dos poderes públicos pela demarcação e regularização de terra ocupada por comunidade quilombola, a fim de dar cumprimento ao que dispões o artigo 68 do ADCT, verbis:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
De início, ressalto que não conheço da apelação do Ministério Público Federal no ponto que requer o recebimento do recurso apenas no efeito devolutivo, uma vez que o recurso cabível contra essa decisão é o agravo de instrumento, nos termos do artigo 522 do CPC/73.
Por sua vez, também não merece acolhida a preliminar da União de ilegitimidade passiva. Ora, os atos de regularização de área de remanescente de quilombola são de competência da Presidência da República através Secretaria de Políticas da Igualdade Racial, nos termos do Decreto nº 5.051 de 2004:
Art. 4º. Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada.
Feitas as considerações iniciais, passo a análise do mérito.
A aplicação prática do princípio constitucional da separação dos Poderes tem causado profundas dificuldades ao Poder Judiciário desde a sua elaboração intelectual nos primórdios do Estado Liberal.
Já vai longe o tempo em que HAMILTON, MADISON e JAY ensinaram no jornal ‘Federalist’, periódico onde expuseram a doutrina da Constituição americana, que ‘a concentração de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário nas mesmas mãos, seja de um único, seja de muitos, seja do maior número, por hereditariedade, nomeação ou eleição, pode ser justamente considerada como a verdadeira definição de tirania’ (PEDRO CALMON. Curso de direito público. Freitas Bastos, Rio, 1938, p. 252). Após o exemplo americano, também a França, como fruto da revolução burguesa, enunciou na imorredoura Declaração dos Direitos do Homem que ‘toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição’ (artigo 16).
Podemos, pois, afirmar que o dogma da separação dos Poderes nasceu juntamente com o reconhecimento da primeira geração dos direitos fundamentais, os direitos de liberdade, que se caracterizam por sua ‘eficácia negativa, segundo a qual a pretensão maior do cidadão é a limitação dos poderes do Soberano’ (JAIRO SCHÄFER. Classificação dos direitos fundamentais. Livr. do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 20).
Entretanto, a manutenção da pureza do sistema de separação complicou-se sobremaneira com o surgimento dos direitos fundamentais de segunda (direito de igualdade face à diversidade econômica) e, principalmente, de terceira geração (direitos de solidariedade), tendo em vista que, para a sua consecução, necessita o Estado Social e Solidário lançar mãos de políticas públicas. Ora, as políticas públicas, em princípio, constituem monopólio do Executivo, norteadas que são pelos julgamentos de conveniência e oportunidade, estranhos ao controle judicial. Porém, em caráter excepcional, visando à implementação dos comandos constitucionais, pode o Judiciário, transvestido de Procusto, obrigar o Executivo a implementá-las, ampliá-las ou reduzi-las ao molde legal.
É o que enunciou, com propriedade, VILIAN BOLLMANN:
‘Assim, conjugando [a] a perspectiva de admissibilidade de controle jurisdicional da criação de políticas públicas que resguarde uma concepção procedimentalista da Constituição e [b] a fiscalização substancial das políticas já criadas com [c] o reconhecimento da eficácia dirigente dos direitos fundamentais e sua estrutura principialista, [d] a exigibilidade imediata de prestações que representem salvaguarda do mínimo essencial e [e] os parâmetros de controle diretos, finalísticos e de meios, funda-se na plena legitimidade das seguintes modalidades de tutela judicial:
[1] controle do procedimento utilizado pelo Estado (Executivo ou Legislativo) na formulação da política pública, implicando direitos de informação (para qualquer cidadão) e participação na formação da vontade vinculante (especialmente para os grupos atingidos pela medida e para aqueles que, embora excluídos, estejam em situação análoga);
[2] reconhecimento e determinação de medidas, especificadas ou não, que consubstanciem [2.1] medidas diretamente decorrentes do texto constitucional ou [2.2] novas políticas públicas necessárias para resguardar direitos, individuais ou coletivos, cuja efetivação configure um mínimo essencial;
[3] controle substancial das políticas públicas já implantadas, seja para [3.1] inclusão de novos beneficiados, ofendidos pelo princípio da igualdade, (‘que permite atuação discriminatória, desde que o critério discriminador seja racionalmente justificável quanto ao tratamento desigual que será dado e quanto aos fins juridicamente constitucionalizados’) ou para [3.2] alteração dos meios utilizados para concretizá-la, observando, nesse caso, o princípio da proporcionalidade e da razoablilidade’ (‘Políticas públicas, direitos fundamentais e os limites da atuação do Poder Judiciário’ in PAULO AFONSO BRUM VAZ e JAIRO SCHÄFER. Curso modular de direito constitucional. Conceito Editorial, São José, 2008, p. 608/609).
Sobre a matéria, já se debruçou, com a percuciência que lhe é peculiar, o Min. Celso de Mello, ao julgar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 MC/DF:
‘Não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.
Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional:
‘DESRESPEITO À CONSTITUÇÃO – MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.
– O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação da inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constitução, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.
– Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impõe, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público (RTJ 185/794, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)’.
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular ou implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, ‘Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976’, p. 207, item n. 05, 1987, Almendina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático’.
Mais adiante, em seu alentado voto, S. Exa. traz à colação preleção de ANDREAS JOACHIM KRELL (‘Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha’, p. 22-23, 2002, Fabris):
‘Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional.
No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais.
A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra princípio da Separação dos Poderes (…). Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social.
A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (…) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais.’
Porém, o mesmo magistrado que acertadamente asseverou a possibilidade de controle judicial de políticas públicas, em outro voto, advertiu sobre o perigo que poderia advir da generalização de tal prática no âmbito do Poder Judiciário:
‘A manutenção, em bases permanentes, do valor real dos benefícios previdenciários tem, no próprio legislador – e neste, apenas -, o sujeito concretizante das cláusulas fundadas no art. 194, par. único, n. IV, e no art. 201, §4º (na redação dada pela EC 20/98), ambos da Constituição da República, pois o reajustamento de tais benefícios, para adequar-se à exigência constitucional de preservação de seu quantum deverá conformar-se aos critérios exclusivamente definidos em lei. O sistema instituído pela Lei 8.880/94, ao dispor sobre o reajuste quadrimestral dos benefícios mantidos pela Previdência Social, não vulnerou a exigência de preservação do valor real de tais benefícios, eis que a noção de valor real – por derivar da estrita observância dos ‘critérios definidos em lei'(CF, art. 201, § 4º, in fine) – traduz conceito eminentemente normativo, considerada a prevalência, na matéria, do princípio da reserva de lei. O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício da atividade jurisdicional do Estado. A reserva de lei constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanandos, exclusivamente, do legislador. Não cabe ao Poder Judiciário, em tema regido pelo postulado constitucional da reserva de lei, atuar na anômala condição de legislador positivo para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito do sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Judiciário – que não dispõe de função legislativa – passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador positivo), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação dos poderes’ (Resp 322.348 AgR, 2ª T., DJ 6-12-2002 apud EDUARDO APPIO, Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Juruá Editora, Curitiba, 2005, p. 149 – grifos nossos).
Em outras palavras, é o que afirma, em sede doutrinária, EDUARDO APPIO:
‘A substituição do legislador/administrador público pela figura do juiz não se mostraria politicamente legítima na medida em que (1) o administrador público (Executivo) e o legislador foram eleitos, através do sufrágio universal, para estabelecer uma pauta de prioridades na implementação das políticas sociais e econômicas. Ademais, (2) o Judiciário não possui o aparato técnico para a identificação das reais prioridades sociais, tendo de contar, nestes casos, com as informações prestadas pela própria Administração Pública. Também (3) o fato de que a atividade-fim do Poder Judiciário é a de revisão dos atos praticados pelos demais Poderes e não a sua substituição, enquanto que a atividade-fim da Administração é estabelecer uma pauta de prioridades na execução de sua política social, executando-a consoante critérios políticos, gozando de discricionariedade, existindo verdadeira ‘reserva especial da administração’ (CANOTILHO). A discricionariedade do administrador não pode ser substituída pela do juiz. Ainda (4) com a indevida substituição a tendência natural seria a de um grande desgaste do Judiciário, enquanto Poder político, na medida em que teria de suportar as críticas decorrentes da adoção de medidas equivocadas e (5)o mais importante, imunes a uma revisão por parte dos demais Poderes. Portanto, o Poder Judiciário, como responsável pela fiscalização dos demais Poderes exercentes das funções do governo, não pode substituir esta atividade, a título de fiscalizar sua escorreita exceção, sob pena de autorizar a intervenção dos Poderes Legislativo e Executivo na atividade jurisdicional. Finalmente (6) a invasão da atividade de governo representaria uma autorização para um maior controle político do próprio Poder Judiciário, abrindo-se a possibilidade de interferência direta nas funções judiciais, através de leis aprovadas pelo Congresso que disponham sobre casos julgados ou ainda pela intervenção política do Executivo na escolha dos membros do Supremo Tribunal’ (id. ibid. p. 151/152).
Feitas as pertinentes digressões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria, cumpre que nos debrucemos sobre o caso concreto, ou, mais precisamente, sobre a mora e/ou omissão dos poderes públicos pela demarcação em questão.
Com efeito, não vislumbro qualquer inércia e/ou omissão por parte da União e do INCRA no referido processo demarcatório, que está em regular andamento, na medida das possibilidades fáticas, diante do enorme número de territórios a serem regularizados e da complexidade dos procedimentos para implementação desta política pública.
Vale destacar aqui a consideração feita pelo INCRA, nas contrarrazões de seu recurso, quando diz que recebeu a atribuição de realizar a delimitação, demarcação e a titulação dos territórios quilombolas apenas em novembro de 2003, tratando-se, portanto, de atribuição institucional bastante recente.
Refere, ainda, que na Superintendência Regional do Rio Grande do Sul encontram-se abertos atualmente 91 processos administrativos para regularização fundiária dos territórios das comunidades remanescentes de quilombos no Estado. E, sobre a situação da Comunidade São Roque foi certificada pela Fundação Cultural Palmares enquanto comunidade remanescente de quilombos na data 17 de novembro de 2005, e solicitou a abertura do processo de regularização fundiária de seu território junto ao INCRA na data de 09/12/2010. Assim, dos 91 processos abertos o mesmo ocupa, atualmente, a posição de número 75, e aguarda por condições operacionais para o prosseguimento das ações previstas na legislação de regência.
Assim, não há que se falar em inércia do poder público em dar andamento ao processo demarcatório em questão. Penso que não é possível ao Poder Judiciário, no caso dos autos, a fixação de prazo para que o Poder Executivo finalize o procedimento, ainda que já tenha se iniciado há mais de cinco anos. Não podemos olvidar que o procedimento de demarcação está sujeito ao contraditório, e envolve a necessidade de realização de pareceres técnicos especializados, de modo que a fixação de data para a sua conclusão pode comprometer o interesse da própria comunidade quilombola em questão, bem como de outros quilombos, inclusive porque existe uma ordem de demarcação.
Por todos os fundamentos acima referidos, penso que não se justifica a intervenção do Poder Judiciário no caso, devendo a ação ser julgada improcedente. Sem honorários advocatícios (artigo 18 da Lei nº 7.347/85).
Ante o exposto, voto por dar provimento à remessa oficial e às apelações da União e do INCRA, e julgar prejudicado o apelo do Ministério Público.
Desembargador Federal Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle
Relator
APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA Nº 5001072-92.2014.4.04.7114/RS
RELATOR
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LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE
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INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA
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UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
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APELADO
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EMENTA
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE COMUNIDADE QUILOMBOLA. OMISSÃO E MORA NÃO IDENTIFICADOS. DESNECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO.
1. No caso em exame, não há que se falar em inércia do poder público em dar andamento ao processo demarcatório em questão.
2. Reforma da sentença.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 4a. Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à remessa oficial e aos apelos da União e do INCRA e julgar prejudicada à apelação do Ministério Público Federal, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 10 de agosto de 2016.
Desembargador Federal Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle
Relator