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Direito Agrário - Foto: Caroline Mattioni

Cooperativas e a tributação sobre os fertilizantes

por Artur Mitsuo Miura e Maurício Dalri Timm do Valle.

O Convênio CONFAZ n.º 100, de 06.11. 97, há 25 anos em vigor, prevê uma série de benefícios fiscais de franca importância para o agronegócio, em especial para os produtores brasileiros, cuja dependência interna por insumos agrícolas é conhecida e, por questões próprias é, até hoje, de difícil solução.

Esse Convênio, assentado no art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal, reduz a base de cálculo do ICMS nas saídas dos insumos agropecuários. Sua redação foi seguidamente alterada. A mais recente alteração deu-se por meio do Convênio 26, ratificado nacionalmente em 19.03. 21.

A Cláusula Terceira do Convênio 26/2021 estabelece que o benefício previsto na Cláusula Terceira – A doConvênio 100/97, de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2022, nas operações com amônia, ureia, sulfato de amônio, nitrato de amônio, nitrocálcio, MAP (mono-amônio fosfato), DAP (di-amônio fosfato), cloreto de potássio, adubos simples e compostos, fertilizantes e DL Metionina e seus análogos, produzidos para uso na agricultura e na pecuária, vedada a sua aplicação quando dada ao produto destinação diversa; dar-se-á com aplicação dos seguintes percentuais, nas operações interestaduais, caso a alíquota aplicável, seja de: a) 4% (quatro por cento), a carga tributária será equivalente ao percentual de 3,10% (três inteiros e dez centésimos por cento); b) 7% (sete por cento), a carga tributária será equivalente ao percentual de 4,68% (quatro inteiros e sessenta e oito centésimos por cento); e c)12% (doze por cento), a carga tributária será equivalente ao percentual de 7,30% (sete inteiros e trinta centésimos por cento);

Ao passo que será, nas operações internas e de importação, o equivalente a percentual de 1% (um por cento) da carga tributária prevista.

O Estado de Mato Grosso, para operacionalizar este novo cenário, editou o Decreto n° 1.297, de 22.02. 22 que introduz alterações no Regulamento do ICMS dele.

De saída, verifica-se que o Estado do Mato Grosso optou pelo chamado regime de “diferimento”. O diferimento de pagamento do ICMS é uma técnica de arrecadação fartamente utilizada pelos legisladores estaduais., trata-se, singelamente, da postergação do pagamento do tributo para o responsável pela operação seguinte. Ives Gandra da Silva Martins[1] explica que no agronegócio, especificamente, o diferimento de pagamento do ICMS, para estabelecimentos receptores dos produtos agropecuários, o mais das vezes, deve-se à dificuldade de cobrança e de controle do e pelo Fisco sobre cada produtor rural, que transfere as exigências impositivas do agronegócio para o estabelecimento adquirente de produção, o qual deve responsabilizar-se pelo pagamento do tributo.

A doutrina é capaz de apresentar de forma ainda mais evidente o que se entende por diferimento. Para tanto apresentamos os ensinamentos de José Eduardo Soares de Melo, segundo o qual o diferimento: “Constitui uma técnica impositiva de deslocamento da exigência do tributo para momento posterior à ocorrência do originário fato gerador, com imputação da responsabilidade de seu recolhimento a terceiro. (Grifos nossos)[2]Conceito semelhante é defendido por Zelmo Denari quando citado por Soares de Melo: “No diferimento, não há exoneração tributária porque o tributo continua devido, somente não é devido pelo contribuinte, e esta circunstância é que torna inconfundível o contribuinte substituído com o contribuinte isento ou imune”. (Grifos nossos). [3]

E, por fim, no mesmo sentido a lição do Professor Marçal Justen Filho, para quem  […] o diferimento importa subsunção do pagamento a prestação tributária à ocorrência de um fato futuro e incerto: nova operação relativa à circulação da mesma mercadoria. A substituição envolve, exclusivamente, alteração do sujeito passivo. (Grifos nossos).[4]

Assim, já no primeiro artigo do decreto, o 22-A, percebe-se que o diferimento é opção do contribuinte nas operações internas com os insumos descritos nos incisos I e II do caput. Os produtos descritos no inciso I, no entanto, interessam mais às agroindústrias, uma vez que são matéria prima para os fertilizantes usados, de fato, no campo.

A “opção” pelo diferimento está condicionada, entretanto a duas situações sendo uma delas de juridicidade questionável:

  • A primeira trata da renúncia, exclusivamente, ao aproveitamento de quaisquer créditos relativos às entradas dos produtos arrolados nos incisos I e II do artigo 22-A.
  • A segunda versa sobre a aceitação, como base de cálculo, dos valores fixados em listas de preços mínimos, divulgadas pela Secretaria de Estado de Fazenda, quando houver, aplicável a partir do momento em que ocorrer a interrupção do diferimento.

Para a primeira situação é importante trazer as disposições constitucionais a respeito. Sacha Calmon Navarro e Mizabel Derzi, afirmam que a Constituição de 1988, em um único ponto contrasta com a uniformidade de tratamento dado ao princípio da não-cumulatividade, no IPI e no ICMS. “É que o art. 155, § 2.º, II, estabelece regra de exceção ao princípio da não-cumulatividade, aplicável tão somente ao ICMS…[5] De fato, basta apenas passarmos os olhos na redação do mencionado art. 155, § 2.º, II.

De olho no comando constitucional, o STF decidiu que o diferimento, “pelo qual se transfere o momento do recolhimento do tributo cujo fato gerador já ocorreu, não pode ser confundido com a isenção ou com a imunidade” (ADI 2056, Relator(a): Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 30/05/2007). Essa decisão contrasta com a posição do STJ que entende que o regime de diferimento do ICMS no Estado de Mato Grosso é opcional e, portanto, caracteriza-se como benefício fiscal, de modo que o ente político pode estabelecer requisitos para seu usufruto, como a restrição ao creditamento do imposto (RMS 23.730/MT, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 23/04/2009, DJe 13/05/2009).

De toda forma, também é da lavra do STF a jurisprudência pacífica que entende que o regime do diferimento, quanto ao recolhimento do imposto, não gera direito a crédito, nem viola o princípio da não cumulatividade. (AI 731520 AgR, Relator(a): Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 24/05/2016). Assim, embora contraintuitivo, a renúncia aos créditos existentes deverá ser sopesada pelo produtor frente aos seus custos.

A segunda situação está no inciso II do §3º do art. 22-A. O diferimento também está condicionado à aceitação como base de cálculo dos valores fixados em listas de preços mínimos, divulgadas pela Secretaria de Estado de Fazenda, o que ressuscita as rechaçadas pautas fiscais, cujo ilegalidade foi matéria de enunciado de Súmula no Superior Tribunal de Justiça. A saber: Súmula n. 431 do STJ. É ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal.

É interessante notar, também, que o §1° do art. 22-A limita, dentre outras hipóteses, o diferimento às saídas de estabelecimento de produtor agropecuário ou de cooperativa de produtores agropecuários. No entanto, §2º, do mesmo dispositivo encerra o diferimento nas “saídas dos produtos com destino a consumidor ou usuário final, inclusive pessoa de direito público ou privado não contribuinte do ICMS”. Ora, quem é o “consumidor final ou usuário final” de fertilizantes? A reposta é intuitiva e óbvia. O benefício se encerra no produtor rural.

Essa estrutura normativa ainda merece outra análise. É sabido que os produtores rurais de Mato Grosso muitas vezes organizam-se em cooperativas. Não convém aqui tratar das espécies de Cooperativas. O que nos interessa é outro ponto: O tratamento tributário dispensado ao ato cooperativo. Com efeito, o artigo 146, III, “c”, da Constituição Federal prevê o adequado tratamento tributário ao ato Cooperativo.

Os atos cooperativos, segundo definição legal, expressa no artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16.12.1971, são os “praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.”

Quando a cooperativa adquire para si insumos agrícolas fazendo às vezes de seus cooperados, estar-se-á diante operação de mercado, o que não lhe põe a salvo da tributação, conforme §1º do artigo 79 citado. Todavia, quando distribui esses mesmos fertilizantes aos seus associados será, não de outra forma, ato cooperativo típico.

Esse tipo de operação, quando praticado pela cooperativa, será alcançada pelo tratamento privilegiado do ato cooperativo. E, na esteira do entendimento de Maurício Timm do Valle e de Guilherme Broto Follador: Em sendo ato cooperativo típico, não há que se falar em incidência de ICMS‑Mercadoria, tendo em vista que o fato jurídico tributário descrito na hipótese de incidência tributária da norma de incidência do ICMS‑Mercadoria não ocorreu. A questão é simples: não há incidência normativa.[6]

Se é possível usar tal argumento, ainda que se trate de competências distintas, serve para reforçar que a própria Receita Federal entende que constituem atos cooperativos, enquadrados no art. 79 da Lei do Cooperativismo, […] dentre outros, a entrega de produtos dos associados à cooperativa, para comercialização, bem como os repasses efetuados pela cooperativa a eles, decorrentes dessa comercialização, nas cooperativas de produção agropecuárias.[7]

Também não é de hoje, a propósito, que o STJ entende que o contrato de fornecimento de insumos agrícolas, celebrado entre cooperativa e cooperado, trata-se de ato cooperativo típico: As normas do diploma consumerista não são aplicáveis ao contrato de fornecimento de insumos agrícolas celebrado entre cooperativa e cooperado, por se tratar de ato cooperativo típico. (AgInt no AREsp 947.445/PR, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 10/02/2020)

O ICMS é tributo é devido nas operações relativas à circulação de mercadorias. E não basta qualquer circulação, há que ser a jurídica que é o “fato gerador” do referido imposto. Ou seja, é necessário que a saída decorra de negócio jurídico ou operação econômica. Quando a Constituição Federal se utilizou do vocábulo “operação”, concebeu-a como o movimento de mercadorias concernente à titularidade dos negócios jurídicos. Se não há circulação jurídico/econômica não há fato gerador do ICMS.

Assim, as transações comerciais efetuadas pelas cooperativas são, ao fim e ao cabo, dos cooperados produtores e, como se disse, a aquisição de fertilizantes é, sem sombra de dúvidas, hipótese de incidência do ICMS. Todavia, o repasse desses mesmos insumos ao seus cooperados não caracteriza movimento econômico-jurídico de mercadorias, o que justifica a ausência de tributação nesta segunda operação.

Não podemos nos esquecer que o cooperativismo agrícola goza de especial proteção constitucional, previsto no artigo 187, VI, da Constituição Federal e deve, além de ser incentivado, ser posto em lugar especial no regime tributário estadual. Principalmente quando se trate de cooperativas agrícolas, por seu papel essencial, não só econômico, mas de segurança alimentar.

Nesse passo, a proteção constitucional conferida às cooperativas somada ao tratamento tributário adequado do ato cooperativo, não permite se falar em tributação da operação de repasse de insumos da cooperativa ao seu cooperado.

Notas:

[1] MARTINS. Ives Gandra da Silva. IMUNIDADE CONSTITUCIONAL DO ICMS PARA EXPORTAÇÃO DE PRODUÇÃO LOCAL PARA O EXTERIOR. INTELIGÊNCIA DO ART. 155, § 2.º, X, A DA CONSTITUIÇÃO E CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. PARECER Revista dos Tribunais | vol. 958/2015 | p. 389 – 410 | Ago / 2015

[2] MELO, José Eduardo Soares de: ICMS: Teoria e prática, 8ª ed. – São Paulo: Dialética, 2005, p. 262 e 258.

[3] MELO, José Eduardo Soares de: ICMS: Teoria e prática, 8ª ed. – São Paulo: Dialética, 2005, p. 262 e 263.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição Passiva Tributária, Cejup, São Paulo, 1986,  p.355, 32 Conclusão.

[5] DERZI, Mizabel Abreu Machado; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Direito Tributário Aplicado – Estudos e Pareceres, p. 22.

[6] FOLLADOR, G. B.; VALLE, Maurício Dalri Timm Do. Cooperativas – Aspectos Tributários. In: Alfredo de Assis Gonçalves Neto. (Org.). Sociedades Cooperativas. 1ed.São Paulo: Lex, 2018, v. 1, p. 303-360.

[7] RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Solução de Consulta nº 533 – Cosit. Data 19 de dezembro de 2017.

Artur Mitsuo Miura. Mestrando em Direito pela da Universidade Católica de Brasília. MBA em Agronegócio pela USP/ESalq. Pós-graduando em Direito Ambiental pela UFPR. LLM em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (em andamento).
Maurício Dalri Timm do Valle – Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Professor Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília – UCB. Advogado Licenciado e Conselheiro do CARF.

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