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Direito Agrário

Compliance trabalhista e o combate ao trabalho escravo no agronegócio

por Fabiana Ribeiro Pereira.

 

Na data de 24.02.2023, foi vinculada a notícia que 180 trabalhadores foram encontrados em condições análogas a de escravo, contratados de outros Estados, para trabalhar em vinícolas da serra gaúcha.

No local se constatou um alojamento precário, com péssimas condições de higiene e limpeza, recebimento de comida estragada e realização de jornada excessiva (15 horas diárias), dentre outras irregularidades apuradas pela investigação[1].

Evidente que, tal notícia ocasiona repulsa e indignação a toda sociedade, sendo flagrante o desrespeito e descumprimento com os direitos fundamentais, constitucionais e humanos dos trabalhadores.

Ao mesmo tempo, os prejuízos a serem arcados pelas empresas que se utilizaram da contratação ilegal, certamente serão irreversíveis, serão processos judiciais, multas e sanções administrativas, inscrição na lista suja de trabalho à escravidão, danos à imagem e reputação, que talvez, nunca mais serão restaurados.

No entanto, tudo isso poderia ter sido evitado!

Os direitos humanos e fundamentais dos trabalhadores poderiam ter sido preservados, inclusive a imagem e a reputação da empresa!

Muitas vezes o que falta não é o desconhecimento por completo das normas legais, mas a cultura da empresa em manter-se em conformidade com elas!

E o que deve ficar bem claro, é que o respeito aos direitos fundamentais, constitucionais e direitos humanos dos trabalhadores, trará muito mais benefícios do que prejuízos, não só ao próprio empreendimento rural, mas sobretudo, para os trabalhadores, que desenvolverão seu trabalho em um ambiente saudável, seguro e adequado.

Por isso, destaca-se a importância da cultura de compliance trabalhista dentro da empresa rural, através da implementação do programa de compliance ou integridade.

Isto porque, “o empregador, ao possuir a cultura de compliance trabalhista, com um programa de integridade, além de evitar ações trabalhistas individuais e coletivas, multas e sanções administrativas, adequando-se às diversas normas de direitos humanos, tutela os direitos fundamentais dos seus trabalhadores”[2].

No Brasil não existe uma regulamentação específica para o compliance trabalhista, utilizando-se do Decreto nº 11.129/22, que regulamentou a Lei n° 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) como fundamento legal.

Especificamente, os artigos 56 e 57 do Decreto nº 11.129/2022 definem no que consiste o programa de integridade/compliance, bem como seus parâmetros de avaliação para a devida implementação e validade, senão vejamos:

Art. 56. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de:

I – prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira(4);

II – […]

Art. 57. Para fins do disposto no inciso VIII do caput do art. 7º da Lei nº 12.846, de 2013, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros:

I – comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa, bem como pela destinação de recursos adequados;

II – padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os empregados e administradores, independentemente do cargo ou da função exercida;

III – padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados;

IV – treinamentos e ações de comunicação periódicos sobre o programa de integridade;

V – gestão adequada de riscos, incluindo sua análise e reavaliação periódica, para a realização de adaptações necessárias ao programa de integridade e a alocação eficiente de recursos;

VI – registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da pessoa jurídica;

VII – controles internos que assegurem a pronta elaboração e a confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiras da pessoa jurídica;

VIII – procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões;

IX – independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e pela fiscalização de seu cumprimento;

X – canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros, e mecanismos destinados ao tratamento das denúncias e à proteção de denunciantes de boa-fé;

XI – medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade;

XII – procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados;

XIII – diligências apropriadas, baseadas em risco, para:

a) contratação e, conforme o caso, supervisão de terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários, despachantes, consultores, representantes comerciais e associados;

b) contratação e, conforme o caso, supervisão de pessoas expostas politicamente, bem como de seus familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas de que participem; e

c) realização e supervisão de patrocínios e doações;

XIV – verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; e

XV – monitoramento contínuo do programa de integridade visando ao seu aperfeiçoamento na prevenção, na detecção e no combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013.

Pela análise dos artigos acima, tem-se que um programa de compliance se sustenta em três pilares, a saber: prevenir, detectar e remediar as irregularidades, fraudes, etc., de uma empresa, mediante a utilização de ferramentas de integridade.

Assim, para a implementação do programa de compliance trabalhista é necessária a observância das seguintes ferramentas: apoio da alta administração; gestão/mapeamento de riscos; políticas e códigos de conduta; regulamentos internos; treinamentos e palestras de conscientização; canal de denúncias, procedimentos de investigação interna; due diligence com terceiros (avaliação prévia) e monitoramento.

Em síntese, ao adotar o programa de compliance trabalhista, a empresa rural terá a compreensão, desde a alta gestão, de que as normais legais necessitam ser respeitadas, por todos de dentro da organização, desde o gerente do escritório até o trabalhador rural.

Que os riscos trabalhistas podem ser identificados de forma antecipada e corrigidos, que os empregados trabalharão com mais empenho e dedicação, pois em um ambiente saudável e seguro.

E, que empresa adotará políticas internas e regulamentos empresariais, código de condutas, políticas de advertência e sanções disciplinares, mecanismos de monitoramento sobre o cumprimento do programa e, eventual necessidade de ajustes, tudo isso visando a prevenir, detectar e remediar as inconformidades legais.

A par de tudo isso, a empresa rural também terá mais cautela com a contratação de terceiros, fará uma análise criteriosa, sobre a idoneidade da empresa prestadora de serviços ou de mão de obra, de como esta trata seus empregados, se também preserva seus direitos, se paga suas verbas trabalhistas, sendo diligente antes de contratar qualquer empresa (due diligence – avaliação prévia de terceiros).

Isto porque, terá total conhecimento dos desdobramentos jurídicos que uma contratação de terceiros mal gerida poderá acarretar para o seu negócio, sendo a adoção da due diligence pelos empregadores rurais, uma ferramenta de compliance de suma importância.

No caso em análise, em que os trabalhadores foram resgatados por estarem em condições análogas a de escravo, a fiscalização também apurou que os empregados vieram de longe, contratados através de “gatos”, para trabalhar para outra empresa, que presta serviços para as vinícolas, consoante se depreende:

[…] “foram cooptados por aliciadores de mão de obra, conhecidos como gatos, na Bahia e trazidos para a Serra Gaúcha para trabalharem para uma empresa que presta serviços para várias vinícolas. 

As denúncias apontam que os trabalhadores só podiam comprar produtos em um mercado indicado pelos contratantes, com preços superfaturados e que o valor gasto era descontado no salário.  No fim do mês deviam mais do que recebiam e ficavam sempre em dívida. 

Os trabalhadores contaram que eram impedidos de deixar o trabalho em virtude dessas dívidas. Como a maioria dos trabalhadores era proveniente da Bahia, as famílias que ficaram naquele estado também eram alvo de ameaças”[3].

            Primeiro ponto a ser destacado, se refere a contratação de trabalhadores rurais através de “gatos”, também conhecidos como “turmeiros e empreiteiros”, uma vez que tal prática é ilegal e, constitui crime previsto no Código Penal (art. 207, §31º, do Código Penal).

Já a consequência trabalhista, advinda da utilização de mão de obra destes trabalhadores, poderá ser o reconhecimento do vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços, qual seja, o fazendeiro.

Inclusive, a jurisprudência já se posicionou a respeito:

A contratação de trabalhador através de contrato de empreitada firmado com os conhecidos “gatos” ou “turmeiros” (intermediadores de mão-de-obra no meio rural) é ilegal, levando à formação do vínculo empregatício diretamente com o beneficiário dos serviços prestados. Acórdão – 0010061-80.2019.5.15.0075(ROT), TRT15, Data publicação: 21/02/2020, Ano do processo: 2019 Órgão Julgador: Órgão Especial – Análise de Recurso, Relator: DAGOBERTO NISHINA DE AZEVEDO).

Outro ponto a ser destacado, diz respeito a contratação de empresa para fornecimento de mão de obra no campo.

Ao contrário do que muitos pensam, o contratante ou tomador de serviços, no caso o fazendeiro, possuirá responsabilidades por esta contratação de mão de obra.

A contratação de uma empresa temporária par fornecimento de mão de obra é perfeitamente possível no meio rural, sendo oportuna para suprir as necessidades das culturas sazonais, como por exemplo da uva e da maça.

Tal possibilidade encontra respaldo no art. 2º da Lei nº 6.019/1974, que assim dispõe: “Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços[4]”.

No entanto, para regularidade da contratação, existem alguns requisitos a serem cumpridos pela empresa temporária, que sempre deverão ser observados pelo tomador de serviços.

A título de exemplo, somente será considerada empresa temporária, a pessoa jurídica devidamente registrada no Ministério do Trabalho, com o objetivo de colocar trabalhadores à disposição de outras empresas, leia-se, empregadores rurais, de forma temporária (art. 4-A da Lei 6019/74).

Por consequência, inexistindo o cumprimento deste requisito legal, o contrato firmado carece de legalidade.

A par disso, independente se a contratação for válida ou não, o tomador de serviços, no caso, o fazendeiro, possuirá responsabilidades elencadas pela legislação citada, como já mencionado.

Precipuamente, responderá de forma subsidiária pelas obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados terceirizados, pelo período que a prestação de serviços ocorrer dentro do seu empreendimento (art. 5º, § 5º – A, da Lei nº 6.019/1974).

Isso significa dizer que, se a empresa temporária não pagar as verbas trabalhistas e previdenciárias, competirá ao fazendeiro este encargo, mesmo não sendo os trabalhadores seus empregados.

Em seguida, competirá ao tomador de serviços, fazendeiro, garantir condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, que executem suas atividades dentro do empreendimento rural (art. 5º, § 5º da Lei nº 6.019/1974).

E por força desta obrigação legal, o Tribunal Superior do Trabalho tem adotado o entendimento, que a tomadora de serviços responderá de forma solidária, senão vejamos:

[,,,] INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ACIDENTE DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA EMPRESA TOMADORA DE SERVIÇOS. Não há como eximir o tomador de serviços do dever de proporcionar ao trabalhador as condições de higiene, saúde e segurança no trabalho, em virtude do Princípio da Prevenção ao Dano, pela manutenção de meio ambiente seguro, exteriorizado, no âmbito do Direito do Trabalho, na literalidade do artigo 7º, XXII, da Carta Magna, segundo o qual é direito dos trabalhadores, urbanos e rurais, dentre outros, “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene segurança”. […]. Recurso de revista conhecido e provido. (RR-11262-66.2014.5.01.0045, 7ª Turma, Relator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 16/12/2022).

Ainda, “é importante pontuar que a responsabilidade subsidiária é para as obrigações trabalhistas, conforme o texto legal, não alcançando a responsabilidade extracontratual, tal como o acidente de trabalho, em que o dever de reparação é fixado pelo Código Civil, emergindo dai a responsabilidade solidária (art. 942 do CC)[5]”.

Seguindo esse raciocínio, as condenações em assédio moral e sexual, bem como às indenizações em danos morais individuais e coletivos diante da submissão do trabalhador em condições análogos à escravidão e, a terceirização ilícita, também poderão ensejar a condenação da tomadora de serviços de forma solidária.

Evidenciado, pois a gravidade das consequências que podem advir da contratação de terceiros, sendo de fundamental relevância a utilização de critérios diligentes antes da contratação, desde a real necessidade da mesma até a idoneidade e capacidade econômica da empresa temporária.

E, ainda, logo após realizada a contratação, o tomador de serviços deverá adotar mecanismos de fiscalização para o cumprimento das normas legais, atinentes ao pagamento dos encargos trabalhistas e previdenciários dos empregados terceirizados, sobretudo o cumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho, como a NR31.

No dia a dia, ocorre muito passivo trabalhista para as empresas tomadoras de serviços, justamente pela falta de análise prévio das empresas contratadas, bem como pela falta de fiscalização.

Porém, com a implementação do compliance dento da empresa rural, o mecanismo do “due diligence de terceiros (prévia avaliação de terceiros)”, buscará justamente adotar mecanismos de prevenção, antes da contratação do prestador de serviços, com o objeto de evitar passivos trabalhistas.

Enquanto, as demais ferramentas de compliance, proporcionarão uma fiscalização eficaz, durante a consecução do contrato, para que se garanta que todas as normas legais e regulamentares sejam cumpridas e respeitadas.

Por todo o exposto, certo é que com a adoção da cultura de compliance, a empresa rural entenderá a importância da preservação dos direitos trabalhistas para o desenvolvimento do seu negócio, evitando a ocorrência de qualquer desrespeito para com os trabalhadores, jamais permitindo que trabalhem em condições análogas a de escravidão!

Enfim, ao implementar o programa de compliance, a empresa rural trará benefícios para si e para os seus empregados, na medida em que preservará a sua imagem e reputação, evitará passivos trabalhistas, aumentará sua produtividade, pois terá empregados engajados, saudáveis e satisfeitos e, ao mesmo tempo, preservará a garantia dos seus direitos fundamentais, constitucionais e humanos.

Notas:

[1] https://www.extraclasse.org.br/justica/2023/02/180-foram-resgatados-de-trabalho-escravo-para-vinicolas-de-bento-goncalves/https://www.prt4.mpt.mp.br/procuradorias/ptm-caxias-do-sul/11808-forca-tarefa-avalia-condicoes-de-trabalhadores-em-bento-goncalves

[2] Carloto, Selma. Compliance Trabalhista: Obra ilustrada em Visual Law, incluindo as fases de implementação e normas da ISO/Selma Carloto. – 3.ed. –São Pulo: LTr, 2022.

[3] https://www.extraclasse.org.br/justica/2023/02/180-foram-resgatados-de-trabalho-escravo-para-vinicolas-de-bento-goncalves/

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6019.htm

[5] Silva, Fabrício Lima; Pinheiro, Iuri, Bomfim, Vólia. Manual do Compliance Trabalhista: Teoria e Prática. 3.ed. – JusPodivm, 2022.

Fabiana Ribeiro Pereira – Advogada com atuação especializada em direito trabalhista aplicado ao agronegócio e gestão trabalhista rural preventiva. Graduada em Direito pela Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC. Pós – Graduada em Direito e Processo do Trabalho – PUC/RS. Pós – Graduada em Direito e Gestão do Agronegócio – Verbo Jurídico. Secretária da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB – LAGES/SC. Membro da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Membro da UBAU; CNMAU; Secretária da CGRTUBAU.

Veja também:

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