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Direito Agrário

Cabe ao executado provar que pequena propriedade rural é explorada em regime familiar

“Por unanimidade, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que, na discussão sobre a impenhorabilidade de pequena propriedade rural, o ônus de comprovar que as terras são trabalhadas pela família recai sobre o executado, dono do imóvel.

Além disso, para o colegiado, o fato de os devedores serem proprietários de outros imóveis não impede o reconhecimento da impenhorabilidade, desde que os terrenos sejam contínuos e a soma das áreas não ultrapasse quatro módulos fiscais.

Com base nesse entendimento, os ministros determinaram o retorno de um processo ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para que, em novo julgamento, avalie se o imóvel é ou não penhorável.

Na execução de uma dívida contra o produtor rural, a impugnação à penhora foi rejeitada sob o fundamento de falta de prova de que a propriedade seja trabalhada pela família ou lhe sirva de moradia. O juízo também considerou inviável o acolhimento da tese de impenhorabilidade, pois os devedores são proprietários de outros imóveis. O TJMG negou provimento ao recurso dos proprietários sob o argumento de que eles não comprovaram os requisitos da impenhorabilidade.

No recurso ao STJ, os devedores argumentaram que o imóvel penhorado tem área inferior a quatro módulos fiscais e que a soma dos demais terrenos que possuem está compreendida nesse limite legal.

Lacuna legislativa

Segundo a ministra Nancy Andrighi, relatora, para reconhecer a impenhorabilidade, como preceitua o artigo 833, VIII, do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), é preciso que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e que seja explorado pela família.

Entretanto, segundo a ministra, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Ela explicou que, diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei 8.629/1993, que enquadra como pequeno o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento“.

Como lembrou a relatora, a Terceira Turma já considerava, na vigência do CPC/1973, que o reconhecimento da impenhorabilidade exigia do devedor a comprovação de que a propriedade é pequena e se destina à exploração familiar (REsp 492.934 e REsp 177.641). E a regra geral prevista no artigo 373 do CPC/2015 – acrescentou a magistrada – estabelece que o ônus de demonstrar a veracidade do fato é da parte que o alega.

Para a magistrada, a legislação é expressa ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar.

Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família“, afirmou.

Proteção constitucional

Nancy Andrighi destacou também que ser proprietário de um único imóvel rural não é pressuposto para o reconhecimento da impenhorabilidade. “A imposição dessa condição, enquanto não prevista em lei, é incompatível com o viés protetivo que norteia o artigo 5º, XXVI, da Constituição Federal e o artigo 833, VIII, do CPC/2015“, completou.

Segundo ela, se os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas não ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será impenhorável. Caso a área total seja maior, a proteção se limitará a quatro módulos fiscais (REsp 819.322).

Por outro lado – comentou a ministra –, se o devedor for titular de mais de um imóvel rural, não contínuos, mas todos explorados pela família e de até quatro módulos fiscais, a solução mais adequada é proteger uma das propriedades e autorizar que as demais sejam penhoradas para a quitação da dívida, como forma de viabilizar a continuidade do trabalho do pequeno produtor e, simultaneamente, não embaraçar a efetividade da Justiça.

Especificidades

No caso analisado, a relatora entendeu que o fato de o imóvel ser explorado pela família é incontroverso, mas o TJMG não verificou se os outros terrenos dos devedores são contínuos e se também são trabalhados pela família; por isso, o processo foi devolvido para novo julgamento.

Ao dar provimento parcial ao recurso dos devedores, a ministra observou que, a partir da análise das especificidades do caso, o julgador poderá autorizar a substituição do bem penhorado por outro igualmente eficaz e menos oneroso para o executado, em observância ao princípio da menor onerosidade da execução.”

Fonte: Notícias do STJ, publicada em 07/04/2021.

Nota do Portal DireitoAgrário.com:

É importante destacar que no ano de 2016 publicamos decisão da 4ª Turma do STJ, que, diferentemente da decisão da 3ª Turma, havia entendido que  o ônus da prova recaía ao credor.  Confira:

– Cabe ao credor provar que pequena propriedade rural é penhorável

Além disso, veja o compilado que organizamos a partir do julgamento do Tema 961 da repercussão geral pelo STF:

A impenhorabilidade da pequena propriedade rural

 

Confira a íntegra do julgado:

RECURSO ESPECIAL No 1.843.846 – MG (2019/0312949-9)

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

 

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

Cuida-se de recurso especial interposto por JOSÉ ANTÔNIO TOLEDO e SILVANA AMÂNCIO TOLEDO, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/MG.

Ação: de execução, ajuizada pelo recorrido em face dos recorrentes, por meio da qual almeja a satisfação de crédito, no valor de R$ 73.976,77, decorrente de contrato de confissão de dívida.

Decisão interlocutória: rejeitou a impugnação à penhora apresentada pelos recorrentes, sob o fundamento da ausência de prova de que a propriedade rural é trabalhada pela família ou serve de moradia. Em acréscimo, entendeu-se ser inviável o acolhimento da tese de impenhorabilidade, haja vista que os recorrentes são proprietários de outros bens imóveis.

Acórdão recorrido: negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA –IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA – IMÓVEL RURAL – BEM DE FAMÍLIA – NÃO DEMONSTRAÇÃO – PENHORA MANTIDA. Verificando-se que os réus não comprovaram os requisitos da impenhorabilidade, previstos na Lei no. 8.009/90, tampouco demonstraram que residem no imóvel rural descrito nos autos, que nele exploram atividade rural em regime de economia familiar e que a dívida contraída decorreu de infortúnios dos negócios ligados à atividade produtiva, não há como reconhecer a alegada impenhorabilidade absoluta.

Embargos de declaração: opostos pelos recorrentes, foram rejeitados.

Recurso especial: alegam violação aos arts. 833, VIII e 805 do CPC, bem como ao art. 4, II, da Lei 4.504/64; art. 3o, V, da Lei 12.651/12; art. 3o, da Lei 11.326/06; art. 4a, alínea “a” da Lei 8.629/93; art. 4o do Decreto 84.685/1980 e art. 5o, XXVI, da CF/88. Além do mais, suscitam divergência jurisprudencial com acórdãos desta Corte (REsp 1408152/PR e REsp 1591298/RJ).

Sustentam a nulidade do processo por cerceamento de defesa, pois não lhes foi oportunizada a demonstração de que retiram o sustento do imóvel penhorado, tampouco de que não são proprietários de outros imóveis.

Asseveram residir no imóvel, bem como utilizá-lo para cultivo de café e plantação de eucaliptos, cuja madeira é utilizada pelo primeiro recorrente na produção de carvão. Pontuam que a dívida guarda relação com a atividade desenvolvida no local e que o recorrido não impugnou a alegação de que o imóvel é explorado pela família, tendo apenas arguido que são proprietários de outros imóveis com matrículas distintas.

Argumentam, ademais, que o imóvel penhorado tem área inferior a quatro módulos fiscais, razão pela qual se enquadra no conceito de pequena propriedade rural. Acrescentam que a soma das áreas com matrículas distintas também está compreendida nesse limite legal.

Com assento nesses argumentos, postulam o provimento do recurso, a fim de que seja declarada a impenhorabilidade do imóvel constrito. Subsidiariamente, requerem a desconstituição da sentença, oportunizando-se a produção de provas, ou a substituição da penhora. Por fim, propugnam pelo afastamento da multa por embargos de declaração protelatórios.

Juízo prévio de admissibilidade: o TJ/MG admitiu o recurso

especial, determinando a remessa dos autos a esta Corte.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

O propósito recursal consiste em dizer: a) se houve cerceamento de defesa; b) sobre qual das partes, exequente ou executado, recai o ônus da prova de que a pequena propriedade rural é trabalhada pela família e c) se o fato de os recorrentes serem proprietários de outros imóveis constitui óbice ao reconhecimento da impenhorabilidade.

I. Do cerceamento de defesa

1. Os recorrentes sustentam que tiveram seu direito de defesa tolhido, porque o Juízo de primeiro grau não viabilizou a demonstração de que retiram o sustento do imóvel penhorado, nem mesmo de que não têm outros imóveis.

2. Consabidamente, o art. 369 do CPC/2015 confere às partes o direito de produzir quaisquer provas capazes de influenciar na formação da convicção do julgador. Reconhece-se, então, um direito fundamental à prova, de modo que “o afastamento de tal direito somente se pode dar em decisão devidamente fundamentada” (AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às Alterações do Novo CPC. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 488).

3. Tomando por base essas considerações, constata-se que, na hipótese, os ora recorrentes propugnaram pela produção de prova testemunhal “para provar em juízo que não é proprietário de outros imóveis, mas sim apenas da propriedade rural já penhorada” (e-STJ, fl. 97).

4. O juiz, todavia, analisou a impugnação à penhora sem antes autorizar a dilação probatória pelas razões assim explicitadas:

(…) a impenhorabilidade fora afastada exatamente porque este Juízo entendeu que os executados possuem outros imóveis, conforme consta expressamente da decisão embargada. Vale dizer, mesmo que pequena a propriedade rural e seja trabalhada pela família, o fato de existirem outros imóveis em nome do executado afasta a impenhorabilidade, sob pena de frustrar os interesses do credor. (e-STJ, fl. 44)

5. Ou seja, a produção de prova foi obstada porque se entendeu que ela não seria capaz de alterar o resultado da demanda. Além do mais, consoante esclareceu-se na decisão que rejeitou os aclaratórios, “a propriedade, como direito real, prova-se por meio documental, através do seu registro no Cartório competente” (e-STJ, fl. 44).

6. Sendo assim, o fato de o Juízo de primeiro grau não ter reputado necessário submeter a questão discutida na espécie à prova testemunhal não representa violação ao conteúdo normativo dos dispositivos legais precitados.

II. Origem e finalidade da proteção conferida à pequena propriedade rural

7. A regra da impenhorabilidade tem suas raízes na República do Texas. A sua origem está relacionada à norma prevista na Constituição de 1836 daquela nação, que consagrava o direito do cidadão de receber determinada porção de terra para torná-la produtiva (VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa. A impenhorabilidade do bem de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 42).

8. Como forma de evitar que esses imóveis fossem penhorados para satisfazer as dívidas daqueles que deles extraíam sua sobrevivência, foi editada, em 1839, a Lei do Texas, a qual tornou impenhorável as áreas de terra de até cinquenta acres, desde que fossem destinadas ao plantio e à moradia do devedor (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I. 18a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 286).

9. Passados alguns anos, precisamente em 1862, os Estados Unidos da América publicaram o homestead act. Esse diploma estabelecia que qualquer pessoa, chefe de família, ou com 21 anos e cidadão dos Estados Unidos, ou que tivesse declarado sua intenção de se tornar tal, e quem nunca tivesse se voltado contra o Governo dos Estados Unidos ou auxiliado seus inimigos, teria direito a um quarto ou menos de terras públicas não apropriadas. Essa porção de terra deveria ser utilizada pelo donatário para cultivo e moradia durante cinco anos, período no qual a propriedade ficava imune aos débitos por ele contraídos (https://www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=true&doc=31&page=transcript).

10. Em âmbito nacional, após longos debates, foi inserido o art. 70 no CC/16, o qual possibilitava “aos chefes de família destinar um prédio para domicilio desta, com a clausula de ficar isento de execução por dividas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio”. No entanto, essa norma apenas se voltava à proteção da moradia.

11. A propriedade rural somente foi resguardada com a edição do CPC/39, que, em seu art. 942, X, passou a prever:

Art. 942. Não poderão absolutamente ser penhorados:
(…)
X – o prédio rural lançado para efeitos fiscais por valor inferior ou igual a dois contos de réis (2:000$0), desde quo o devedor nele tenha a sua morada e o cultive com o trabalho próprio ou da família; (grifou-se).

12. Essa norma visava a obstar que o devedor ficasse privado do exercício da atividade que propiciava a sua subsistência e de sua família. Embora a proteção também se estendesse à residência, já que o imóvel também deveria servir de moradia para que o devedor pudesse suscitar a impenhorabilidade, “a finalidade precípua da regra não era só garantir o direito de moradia, mas sim, e principalmente, garantir a continuidade da atividade que servia para subsistência” (CANAN, Ricardo. Impenhorabilidade da Pequena Propriedade Rural. Revista dos Tribunais. Vol. 221/2013, pp. 117 – 151, jul./2013, p. 121).

13. Nos anos seguintes, principalmente nas décadas de 60 e 80, o intenso êxodo rural reclamou a adoção de outras medidas para estimular a permanência dos cidadãos no campo. Entre elas, está a edição da Lei 7.513/86, a qual inseriu o inciso X ao art. 649 do CPC/73, para estabelecer a impenhorabilidade “[d]o imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário”.

14. A CF/88, ao depois, conferiu proteção mais ampla, ao erigir a pequena propriedade rural ao patamar de direito fundamental e afastar a exceção antes prevista na legislação infraconstitucional, nos seguintes termos:

XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

15. Em comentário a esse dispositivo legal, Paulo Bonavides esclarece que a sua finalidade é “proteger famílias menos favorecidas que vivem do que produzem em suas pequenas propriedades rurais” (BONAVIDES, Paulo. Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 151).

16. Já no ano de 2006, a Lei 11.382/2006 adequou a redação do art. 649, VIII, do CPC/1973 à CF/88 e ao entendimento jurisprudencial consolidado à época, o qual passou a ter a seguinte redação:

Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
(…)
VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

17. Ou seja, extirpou-se a parte final do antigo art. 649, X, CPC/73, que trazia um requisito adicional àqueles já exigidos pela Carta Magna. Aliás, essa redação foi integralmente reproduzida no art. 833, VIII, do atual CPC.

18. A linha do tempo delineada evidencia que, desde os primórdios, a proteção conferida à pequena propriedade rural esteve calcada na garantia da subsistência. Conquanto em alguns momentos da história a impenhorabilidade da pequena propriedade rural também tenha tutelado direitos outros que não a preservação do trabalho, este sempre foi seu objetivo primordial.

III. Dos requisitos para o reconhecimento da impenhorabilidade e do ônus de comprovar o seu preenchimento

III.I. Da extensão da propriedade e da exploração familiar

19. Para reconhecer a impenhorabilidade nos termos do art. 833, VIII, do CPC/2015, é imperiosa a satisfação de dois requisitos, a saber: (i) que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e (iii) que seja explorado pela família.

20. Destaque-se, por relevante, que conjugando as normas constitucional e infraconstitucional, as Turmas da Seção de Direito Privado desta Corte firmaram as seguintes orientações: para o reconhecimento da impenhorabilidade, não é necessário que o débito exequendo seja oriundo da atividade produtiva, tampouco que o imóvel sirva de moradia do executado e de sua família (REsp 1591298/RJ, DJe 21/11/2017; AgInt no REsp 1177643/PR, DJe 19/12/2019) e, a proteção remanesce, ainda que a propriedade rural seja oferecida em garantia hipotecária pelos respectivos proprietários (AgInt no AREsp 1361954/PR, DJe 30/05/2019; AgInt no AREsp 1428588/PR, DJe 16/05/2019).

21. Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei 8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária. Em seu artigo 4a, II, alínea “a”, atualizado pela Lei 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento” (grifou-se). Nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL – ARTIGO 333, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – PREQUESTIONAMENTO – AUSÊNCIA – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – PROPRIEDADE RURAL – CONCEITO – MÓDULO RURAL – IDENTIFICAÇÃO – NECESSIDADE – PEQUENA PROPRIEDADE RURAL UTILIZADA POR ENTIDADE FAMILIAR – IMPENHORABILIDADE – RECONHECIMENTO – RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

I – A questão relativa ao artigo 333, I, do Código de Processo Civil, relativo ao ônus da prova, não foi objeto de debate ou deliberação pelo Tribunal de origem, restando ausente, assim, o requisito do prequestionamento da matéria, o que atrai a incidência do enunciado 211 da Súmula desta Corte.

II – Para se saber se o imóvel possui as características para enquadramento na legislação protecionista é necessário ponderar as regras estabelecidas pela Lei n.o 8629/93 que, em seu artigo 4o, estabelece que a pequena propriedade rural é aquela cuja área tenha entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais. Identificação, na espécie.

III – Assim, o imóvel rural, identificado como pequena propriedade, utilizado para subsistência da família, é impenhorável. Precedentes desta eg. Terceira Turma.
IV – Recurso especial improvido. (REsp 1284708/PR, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 09/12/2011 – grifou-se)

CONSTITUCIONAL. DESAPROPRIAÇÃO. REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL NÃO PRODUTIVO: FATOS CONTROVERSOS. PEQUENA E MÉDIA PROPRIEDADE RURAL: NÃO SUJEIÇÃO À DESAPROPRIAÇÃO PARA REFORMA AGRÁRIA. C.F., art. 185, I; Lei 8.629, de 25.02.93, artigo 4o, III, a. Lei 4.504, de 1964, art. 50, § 3o, com a redação da Lei 6.476, de 1979; Decreto 84.685, de 1980, art. 5o.

I. – A pequena e a média propriedades rurais são imunes à desapropriação para fins de reforma agrária, desde que seu proprietário não possua outra. C.F., art. 185, I. A pequena propriedade rural é o imóvel de área compreendida entre um e quatro módulos fiscais e a média propriedade rural é o imóvel de área superior a quatro e até quinze módulos fiscais. Lei 8.629, de 25.02.93, art. 4o, II, a, III, a.

II. – O número de módulos fiscais será obtido dividindo-se a área aproveitável do imóvel rural pelo módulo fiscal do Município (Lei 4.504/64, art. 50, § 3o, com a redação da Lei 6.746, de 1979; Decreto no 84.685, de 1980, art. 5o).

III. – No caso, tem-se média propriedade rural, assim imune à desapropriação para reforma agrária.

IV. – Mandado de segurança deferido. (STF, MS 22579, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/1998, DJ 17-04-1998 – grifou-se)

 

22. O módulo fiscal, por sua vez, varia de município para município e é determinado em hectares em conformidade aos critérios previamente estipulados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

23. Não há dúvidas de que incumbe ao devedor comprovar que a propriedade penhorada não ultrapassada quatro módulos fiscais (REsp 1.408.152/PR, DJe 02/02/2017). Entretanto, ainda há controvérsia sobre se cabe ao exequente ou ao executado demonstrar que a pequena propriedade é trabalhada pela família.

24. Em acórdão desta Corte proferido ao ensejo do julgamento do REsp 1.408.152/PR, o primeiro sobre o tema após entrada em vigor do CPC/2015, a Quarta Turma deste Tribunal Superior decidiu que “deve ser ônus do executado – agricultor – apenas a comprovação de que o seu imóvel se enquadra nas dimensões da pequena propriedade rural. No entanto, no tocante à exigência da prova de que a referida propriedade é trabalhada pela família, a melhor exegese parece ser a de conferir uma presunção de que esta, enquadrando-se como diminuta, nos termos da lei, será explorada pelo ente familiar, sendo decorrência natural do que normalmente se espera que aconteça no mundo real, inclusive, das regras de experiência (NCPC, art. 375)”. Confira-se a ementa do referido precedente:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. IMPENHORABILIDADE. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. REQUISITOS E ÔNUS DA PROVA.
1. A proteção da pequena propriedade rural ganhou status Constitucional, tendo-se estabelecido, no capítulo voltado aos direitos fundamentais, que a referida propriedade, “assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento” (art. 5°, XXVI). Recebeu, ainda, albergue de diversos normativos infraconstitucionais, tais como: Lei n° 8.009/90, CPC/1973 e CPC/2015.

2. O bem de família agrário é direito fundamental da família rurícola, sendo núcleo intangível – cláusula pétrea -, que restringe, justamente em razão da sua finalidade de preservação da identidade constitucional, uma garantia mínima de proteção à pequena propriedade rural, de um patrimônio mínimo necessário à manutenção e à sobrevivência da família.

3. Para fins de proteção, a norma exige dois requisitos para negar constrição à pequena propriedade rural: i) que a área seja qualificada como pequena, nos termos legais; e ii) que a propriedade seja trabalhada pela família.
4. É ônus do pequeno proprietário, executado, a comprovação de que o seu imóvel se enquadra nas dimensões da pequena propriedade rural.

5. No entanto, no tocante à exigência da prova de que a referida propriedade é trabalhada pela família, há uma presunção de que esta, enquadrando-se como diminuta, nos termos da lei, será explorada pelo ente familiar, sendo decorrência natural do que normalmente se espera que aconteça no mundo real, inclusive, das regras de experiência (NCPC, art. 375).

6. O próprio microssistema de direito agrário (Estatuto da Terra; Lei 8.629/1993, entre outros diplomas) entrelaça os conceitos de pequena propriedade, módulo rural e propriedade familiar, havendo uma espécie de presunção de que o pequeno imóvel rural se destinará à exploração direta pelo agricultor e sua família, haja vista que será voltado para garantir sua subsistência.

7. Em razão da presunção juris tantum em favor do pequeno proprietário rural, transfere-se ao exequente o encargo de demonstrar que não há exploração familiar da terra, para afastar a hiperproteção da pequena propriedade rural.
8. Recurso especial não provido. (REsp 1408152/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 01/12/2016, DJe 02/02/2017 – grifou-se)

25. Esse posicionamento restou reiterado no julgamento do AgInt no REsp 1.826.806/RS, cuja ementa ora se transcreve:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. IMPENHORABILIDADE. EXPLORAÇÃO FAMILIAR. PRESUNÇÃO JURIS TANTUM. ÔNUS DA PROVA DO EXEQUENTE. DECISÃO MANTIDA.
1. Segundo a jurisprudência desta Corte, “em razão da presunção juris tantum em favor do pequeno proprietário rural, transfere-se ao exequente o encargo de demonstrar que não há exploração familiar da terra, para afastar a hiperproteção da pequena propriedade rural” (REsp n. 1.408.152/PR, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 1o/12/2016, DJe 2/2/2017).

2. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1826806/RS, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 23/03/2020, DJe 26/03/2020 – grifou-se)

26. Em contrapartida, esta Terceira Turma, quando instada a se manifestar sobre a matéria, externou entendimento contrário ao adotado pela colenda Quarta Turma. No REsp 1.716.425/RS (DJe 26/03/2020), de relatoria do e. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, sublinhou-se:

Com efeito, embora seja inegável a relevância social da proteção estatal ao pequeno produtor rural, a garantia da impenhorabilidade rural guarda uma particularidade que, a meu juízo, desaconselha a aplicação de entendimento análogo àquele firmado para o caso da impenhorabilidade do imóvel residencial qualificado como bem de família.

Refiro-me ao requisito específico da exploração da terra diretamente pela entidade familiar (nos termos da Constituição: terra “trabalhada pela família”).

Esse requisito, a meu juízo, não poderia presumido com base nas regras de experiência, como entendeu a egrégia QUARTA TURMA, pois a experiência, ao contrário, infirma essa presunção, uma vez que, no universo das propriedades rurais de pequena dimensão, uma quantidade expressiva é utilizada para fins de lazer (sítios de recreio) ou para fins de exploração empresarial/industrial, por exemplo.

Essa particularidade da pequena propriedade rural, a meu juízo, afasta a possibilidade de analogia com a distribuição do ônus da prova na hipótese de impenhorabilidade do bem de família. (fls. 17-19).

27. Aliás, e como destacado no aresto, na vigência do CPC/73, esta Terceira Turma já se orientava no sentido de que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor tinha o ônus de comprovar que além de pequena, a propriedade destinava-se à exploração familiar. Sobre o tema, reporto-me aos seguintes julgados:

Processo civil. Impenhorabilidade de imóvel rural.
– Para declarar a impenhorabilidade com fundamento no art. 649, X do CPC, necessária a comprovação de exploração familiar com fim de garantir a subsistência. Precedentes.
Recurso conhecido e provido. (REsp 492.934/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/09/2004, DJ 18/10/2004, p. 266 – grifou-se)

PENHORA. PROPRIEDADE RURAL. POSSIBILIDADE. ÔNUS DA PROVA. VIOLAÇÃO. ARTIGO 333, I E II, DO CPC. INEXISTÊNCIA – MATÉRIA DE PROVA. SÚMULA 7/STJ.
I – O tribunal a quo deu correta interpretação ao artigo 333 e incisos do Código de Processo Civil, pois, se os próprios recorrentes deduziram as razões pelas quais seria de rigor a impenhorabilidade do imóvel rural que possuem, deveriam ter apresentado as provas pertinentes, para respaldar as suas alegações.

II – Se, com arrimo no conjunto fático-probatório, o tribunal de origem verificou a ausência dos requisitos indispensáveis para conceder o benefício da impenhorabilidade à propriedade rural dos recorrentes, esta questão não pode ser revista em sede de especial, por incidência do enunciado n.o 7 da Súmula desta Corte.

III – O dissídio jurisprudencial, por sua vez, não restou demonstrado, nos moldes exigidos pelo artigo 255 e parágrafos do Regimento Interno desta Corte.
Recurso especial não conhecido.
(REsp 177.641/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2002, DJ 02/12/2002, p. 303 – grifou-se)

28. Às razões já explicitadas no acórdão proferido recentemente por esta Turma (REsp 1.716.425/RS), convém acrescer algumas considerações que reforçam a ideia de que incumbe ao devedor demonstrar que o bem é explorado em regime de economia familiar.

29. Como regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a veracidade desse fato. Trata-se da distribuição abstrata do ônus da prova feita pelo legislador. Assim, cabe ao autor o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito e, em contrapartida, incumbe ao réu demonstrar o fato extintivo, impeditivo ou modificativo desse direito (art. 373 do CPC/2015). Nessa toada, sendo a impenhorabilidade fato constitutivo do direito do executado, é sobre ele que recai o encargo de comprovar os requisitos necessários ao seu reconhecimento. Vale dizer, é do executado o ônus de provar que a propriedade rural é trabalhada pela família.

30. Sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade do fato alegado. Isso pois, ele é o proprietário do imóvel e, então, pode acessá-lo a qualquer tempo. Demais disso, ninguém melhor do que ele para saber quais atividades rurícolas são desenvolvidas no local. Claro que, à luz das peculiaridades do caso concreto, poderá o juiz proceder à redistribuição do ônus da prova (art. 373, § 1o, do CPC/2015).

31. Ao concluir pela existência de uma presunção juris tantum de que a propriedade diminuta é trabalhada pela família, transferindo ao credor o encargo de afastar essa presunção, a egrégia Quarta Turma equiparou a impenhorabilidade da pequena propriedade rural à impenhorabilidade do bem de família. No voto condutor do acórdão, restou sublinhado que “não é razoável se exigir um minus do proprietário urbano (que tem proteção legal) – na qual basta o início de prova de que o imóvel é voltado para a residência -, em relação ao proprietário rural, hipossuficiente e vulnerável (com proteção constitucional), que, além da prova da pequena propriedade rural, teria um plus a demonstrar, ainda, que esta é trabalhada pela família” (REsp 1408152/PR, DJe 02/02/2017, fl. 16).

32. Nada obstante, com o devido respeito ao entendimento exarado, pelas razões a seguir expostas, considero não ser possível se valer da analogia empregada.

33. É verdade que a jurisprudência desta Corte se orienta no sentido de que quando o devedor sustenta a impenhorabilidade do bem constrito com base na Lei 8.009/1990, ele apenas terá que provar que o imóvel serve de residência da família, não sendo necessário demonstrar que aquele é o único imóvel. Assim, se o credor almejar a manutenção da constrição, sobre ele recairá o ônus de demonstrar que o executado é proprietário de outros bens imóveis (REsp 574.050/RS, Primeira Turma, DJ 31/05/2004; AgRg nos EDcl no AREsp 794.318/RS, Terceira Turma, DJe 7/3/2016; REsp 1.014.698/MT, Quarta Turma, DJe 17/10/2016; AgInt no REsp 1656079/RS, Terceira Turma, DJe 06/12/2018).

34. Não há dúvidas, inclusive, de que tanto a regra da impenhorabilidade do bem de família quanto a da impenhorabilidade da pequena propriedade rural são corolários do princípio da dignidade da pessoa humana. Essas normas, no entanto, tutelam bem jurídicos diversos: enquanto a primeira volta-se à proteção do direito à moradia (REsp 1.726.733/SP, DJe 16/10/2020; REsp 1.487.028/SC, DJe 18/11/2015), a segunda busca assegurar um patrimônio mínimo necessário à sobrevivência da família. Essa distinção, inclusive, é realçada no REsp 1.591.298/RJ, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze (DJe 21/11/2017), cujo trecho transcrevo:

Como já assentado, o fundamento que orienta a impenhorabilidade do bem de família (rural) não se confunde com aquele que norteia a da pequena propriedade rural, ainda que ambos sejam corolários do princípio maior da dignidade da pessoa humana, sob a vertente da garantia do patrimônio mínimo. O primeiro, destina-se a garantir o direito fundamental à moradia; o segundo, visa assegurar o direito, também fundamental, de acesso aos meios geradores de renda, no caso, o imóvel rural, de onde a família do trabalhador rural, por meio do labor agrícola, obtém seu sustento. (p. 11 – grifou-se)

35. Além disso, para o reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família, há uma razão para ser dispensada a demonstração de que o imóvel constrito é o único destinado à residência familiar, qual seja: esse não é um requisito exigido pela lei de regência, a qual, em seu art. 1o, apenas faz referência ao “imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar”. A propósito, tal circunstância foi realçada no julgamento do REsp 1.014.698/MT (Quarta Turma, DJe 17/10/2016), oportunidade em que se registrou:

(…) exigir da executada, como fez o v. aresto recorrido, mais do que a lei especial determina, é ir de encontro ao seu espírito, pois a proteção outorgada pela Lei 8.009/90 depende tão somente da produção de prova de que o imóvel é utilizado como residência pela família, não sendo necessária a demonstração de que os executados não são proprietários de outros bens imóveis. Se isto se verificar, poderão ser penhorados estes outros bens, mas nunca justamente aquele utilizado como residência. (fl. 11 – grifou-se)

36. De forma diversa, o art. 833, VIII, do CPC/2015 é expresso ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar. Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual, repise-se, consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família.

37. Pelas razões elencadas, afirma-se ser ônus do executado comprovar não só que a propriedade se enquadra no conceito legal de pequena propriedade rural, como também que o imóvel penhorado é voltado à exploração para subsistência familiar.

III.II. Da necessidade de ser o único imóvel rural

38. Relembre-se que, como visto anteriormente, a Lei 7.513/86, responsável pela inclusão do inciso X ao art. 649 do CPC/73, exigia expressamente que o imóvel rural constrito fosse o único bem do devedor.

39. Diversamente, a Lei 11.382/2006, a qual alterou o antigo diploma processual, já não mais previa esse requisito. As legislações constitucional e infraconstitucional que se seguiram nada referem, também, acerca da necessidade de o bem penhorado ser o único imóvel rural de propriedade do executado.

40. Disso se extrai que ser proprietário de um único imóvel rural não é pressuposto para o reconhecimento da impenhorabilidade com base na previsão do art. 833, VIII, do CPC/2015. Sendo assim, a imposição dessa condição, enquanto não prevista em lei, é incompatível com o viés protetivo que norteia tal preceito legal e o art. 5o, XXVI, da CF/88.

41. Sobre o assunto, há um precedente desta Corte proferido quando ainda estava em vigor o CPC/73, no qual se decidiu que o fato de a propriedade ter mais de uma matrícula não lhe retira a proteção da impenhorabilidade. Veja-se a ementa do referido julgado:

PROPRIEDADE RURAL. TAMANHO INFERIOR AO MÓDULO RURAL. EXISTÊNCIA DE DUAS MÁTRICULAS. UTILIZAÇÃO PARA SUSTENTO FAMILIAR. IMPENHORABILIDADE. POSSIBILIDADE. A propriedade rural, embora constituída por frações com matrículas distintas, com tamanho inferior ao módulo rural e utilizada como residência e para a subsistência da família, está protegida pela impenhorabilidade. (L. 8.009/90, Art. 4o, § 2o) (REsp 819.322/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/11/2006, DJ 18/12/2006, p. 39 – grifou-se)

42. Portanto, se os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas não ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será impenhorável. Caso o somatório resulte em numerário superior, a proteção se limitará a quatro módulos fiscais.

43. A seu turno, se o devedor for titular de mais de um imóvel rural, não contínuos, todos explorados pela família e de até quatro módulos fiscais, há que se refletir um pouco mais. Isso pois, nesse cenário, a coalisão de direitos fundamentais torna-se mais evidente.

44. De um lado, há o direito fundamental do credor à tutela executiva, o qual é uma das facetas do direito de acesso à justiça (art. 5o, XXXV, da CF/88). De outro lado, encontra-se o direito fundamental do devedor à manutenção do patrimônio mínimo necessário à sua subsistência e de sua família.

45. Segundo explica a doutrina, justamente porque a impenhorabilidade de certos bens restringe o direito fundamental do exequente à tutela executiva, “é preciso que sua aplicação de submeta ao método da ponderação” (DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: execução. 8a ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 831).

46. Nesse contexto, como forma de viabilizar a continuidade do trabalho pelo pequeno produtor rural e, simultaneamente, não embaraçar a efetividade da tutela jurisdicional, a solução mais justa e adequada é proteger uma das propriedades e autorizar que as demais sirvam à satisfação do crédito exequendo.

47. Não custa lembrar que, a partir da análise das especificidades da hipótese concreta, o julgador poderá autorizar a substituição do bem penhorado por outro igualmente eficaz e menos oneroso ao executado, em observância ao princípio da menor onerosidade da execução (art. 805 do CPC).

IV. Da hipótese em julgamento
IV. I. Da divergência jurisprudencial

48. Na alegação de divergência jurisprudencial, o art. 1.029, § 1o, do CPC, impõe ao recorrente o ônus de “mencionar as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados”. Significa dizer ser necessário que “o recorrente transcreva trechos do relatório do acórdão paradigma e, depois, transcreva trechos do relatório do acórdão recorrido, comparando-os, a fim de demonstrar que ambos trataram de casos bem parecidos ou cuja base fática seja bem similar. Após isso, deve o recorrente prosseguir no cotejo analítico, transcrevendo trechos do voto do acórdão paradigma e trechos do voto do acórdão recorrido para, então, confrontá-los, demonstrando que foram adotadas teses opostas” (DIDIER JR., Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. 13 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 348).

49. Na hipótese, entre os acórdãos trazidos à colação, não há o necessário cotejo analítico nem a comprovação da similitude fática, elementos indispensáveis à demonstração da divergência.

50. Logo, a análise da existência do dissídio é inviável ante a inobservância aos arts. 1.029, § 1o, do CPC/15 e 255, §§ 1o e 2o, do RISTJ.

IV.II. Da análise do preenchimento dos requisitos legais

51. O Tribunal a quo rejeitou a impugnação à penhora e concluiu que, embora o imóvel constrito se caracterize como pequena propriedade rural, os ora recorrentes não comprovaram residir no local, tampouco que há exploração da terra e que a dívida guarda relação com a atividade produtiva desenvolvida na propriedade. No aresto, também restou sublinhado que o fato de os recorrentes serem proprietários de outros bens imóveis constitui óbice ao acolhimento da pretensão (e-STJ, fls. 263-271).

52. Percebe-se que o acórdão recorrido não distinguiu adequadamente o bem de família rural (art. 4a, § 2o, da Lei 8.009/1990) e a pequena propriedade rural (art. 833, VIII, do CPC).

53. Nesse cenário, é imperioso ressaltar que embora as regras que conferem proteção a esses imóveis estejam calcadas no princípio da dignidade da pessoa humana, os fundamentos axiológicos que amparam uma e outra são distintos, bem como os requisitos para sua aplicação não são os mesmos.

54. Enquanto o reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família, seja urbano ou rural, pressupõe prova de que o imóvel serve de moradia à entidade familiar (art. 1o da Lei 8.009/90), os requisitos para obstar a constrição judicial sobre a pequena propriedade rural são aqueles dispostos no art. 5o, XXVI, da CF/88, reproduzidos no art. 833, VIII, do CPC/2015, e já referidos.

55. Traçadas essas considerações, da leitura da impugnação à penhora, depreende-se que os devedores sustentam a impenhorabilidade do imóvel rural por se tratar de pequena propriedade rural. Para elucidar, confira-se os seguintes trechos da petição:

“A propriedade penhorada é utilizada pelos Executados e seus familiares para trabalhar. Fazem uso da terra penhorada para trabalhar e cultivar, para prover o sustento familiar.

O art. 5o, inciso XXVI, da CR/88, prevê que:

XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

Segundo o art. 4o, alínea “a” da Lei 8.629/1993, a pequena propriedade rural é a área compreendida entre um e quatro módulos fiscais, sendo que o cálculo do módulo fiscal é definido pelo Incra, em cada município, tomando-se por base o art. 4o do Decreto 84.685/1980. Na oportunidade junta-se a tabela disponibilizada pelo INCRA, que confirma que a propriedade do embargante se enquadra no conceito de pequena propriedade rural.

O art. 4, inciso II, da Lei 4.504/64, prevê ser a “propriedade familiar” o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com ajuda de terceiro.

De acordo com a tabela do INCRA, o módulo fiscal na Comarca de Carangola e na cidade de Fervedouro é 28ha. Já a propriedade penhora é de área de 11.51.81 ha.

(…)

Os Executados são casados e possuem filhos. A família toda trabalha na propriedade objeto da penhora, sendo que o sustento da família é retirado da exploração da propriedade rural ora penhorada por este juízo. Inquestionável que a hipótese trazida à baila é atraída pela norma contida no art. 833, inc. VIII, do CPC, que diz que:

Art. 833. São impenhoráveis:

VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família; (e-STJ, fls. 215-218)

 

56. Era sob essa ótica, então, que o TJ/MG deveria ter apreciado a questão. Isso significa que, diversamente do entendimento sublinhado no aresto recorrido, para a aplicação da norma prevista no art. 833, VIII, do CPC/2015, é prescindível que o executado resida no local e que o débito seja decorrente da atividade agrícola. É suficiente a comprovação, pelo executado, de que a propriedade é pequena e destinada à produção rural para subsistência da família.

57. O primeiro requisito está preenchido na hipótese em julgamento, porquanto a decisão proferida pelo Juízo de primeiro grau e o acórdão referem que a propriedade rural penhorada não corresponde a sequer um módulo fiscal do Município de Carangola/MG (e-STJ, fls. 38-41 e fls. 263-270).

58. Já com relação ao segundo requisito legal, a Corte Estadual entendeu inexistir comprovação de que a terra é explorada pela família (e-STJ, fl. 267). Desconsiderou-se, no entanto, que o ora recorrido, em sua manifestação acerca da impugnação à penhora, não se insurgiu contra a alegação dos ora recorrentes no sentido de que o bem constrito é responsável pela subsistência da família.

59. Conforme realçado nas razões do especial, o exequente limitou-se a aduzir não ser possível o cancelamento da penhora, porque os executados são proprietários de outros bens imóveis. Veja-se o seguinte trecho da petição:

“O imóvel em questão só poderia ser alcançado pelo manto da impenhorabilidade se fosse o único de posse e propriedade dos postulantes” (e-STJ, fl. 127)

60. Isso significa que o exequente não se desincumbiu do seu ônus de impugnação específica. Consequentemente, a alegação de fato de que o imóvel é explorado pela família tornou-se incontroversa, sendo dispensável a produção de prova. Afinal, “a confissão [rectius: admissão] gera duas consequências: a dispensa de prova e a presunção de veracidade da alegação de fato confessada” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 399).

61. Destarte, o segundo pressuposto também está satisfeito.

62. Ocorre que, como visto, o acórdão impugnado ainda apontou um outro óbice ao reconhecimento da impenhorabilidade: o fato de os executados serem proprietários de outros imóveis rurais. Mas, a Corte Estadual não averiguou se os terrenos são contínuos e, não sendo, se também são explorados pela família.

63. Impõe-se, assim, o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que, em novo julgamento do recurso de agravo de instrumento, reaprecie esse fato, seguindo a orientação definida no item II. II, supra.

64. Como consequência, resta prejudicado o pleito subsidiário de substituição do bem penhorado.

 

V. Da multa por embargos manifestamente protelatórios

 

65. Ao examinar os embargos declaratórios opostos pelos ora recorrentes, o TJ/MG entendeu tratar-se de recurso meramente protelatório e, por conseguinte, aplicou a multa prevista no art. 1.026, § 2o, do CPC/2015, à razão de 1% sobre o valor da causa.

66. Segundo a jurisprudência desta Corte, é correta a aplicação da penalidade prevista no art. 1.026, § 2o, do CPC/2015, quando as questões tratadas foram devidamente fundamentadas na decisão embargada e ficou evidenciado o caráter manifestamente protelatório dos embargos de declaração.

67. As questões suscitadas em sede de embargos declaratórios já haviam sido examinadas pelo Tribunal Estadual, circunstância que evidencia seucaráter meramente protelatório.

68. Assim, deve ser mantida a multa aplicada.VI. Conclusão69. Forte nessas razões, CONHEÇO EM PARTE do recurso especial e, nessa extensão, DOU-LHE PARCIAL PROVIMENTO, para determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que, em novo julgamento do recurso de agravo de instrumento, verifique se os outros imóveis de propriedade dos recorrentes são contínuos ou não à propriedade penhorada, à luz da orientação delineada neste voto.

 

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. PENHORA DE IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. IMPENHORABILIDADE. ÔNUS DA PROVA DO EXECUTADO DE QUE O BEM CONSTRITO É TRABALHADO PELA FAMÍLIA. DESNECESSIDADE DE O IMÓVEL PENHORADO SER O ÚNICO IMÓVEL RURAL DE PROPRIEDADE DO EXECUTADO. MULTA POR EMBARGOS MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIOS. MANUTENÇÃO. JULGAMENTO: CPC/2015.

1. Ação de execução de título extrajudicial ajuizada em 04/05/2017, da qual foi extraído o presente recurso especial interposto em 14/10/2019 e atribuído ao gabinete em 25/10/2019.

2. O propósito recursal consiste em dizer: a) se houve cerceamento de defesa; b) sobre qual das partes, exequente ou executado, recai o ônus da prova de que a pequena propriedade rural é trabalhada pela família e c) se o fato de os recorrentes serem proprietários de outros imóveis constitui óbice ao reconhecimento da impenhorabilidade.

3. A prova testemunhal postulada era incapaz de alterar o resultado da demanda, razão pela qual inexiste cerceamento de defesa.

4. Conquanto em alguns momentos da história a impenhorabilidade da pequena propriedade rural também tenha tutelado direitos outros que não a preservação do trabalho, este sempre foi seu objetivo primordial. Para reconhecer a impenhorabilidade, nos termos do art. 833, VIII, do CPC/2015, é imperiosa a satisfação de dois requisitos, a saber: (i) que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e (iii) que seja explorado pela família. Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei 8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária. Em seu artigo 4a, II, alínea “a”, atualizado pela Lei 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento”.

5. Na vigência do CPC/73, esta Terceira Turma já se orientava no sentido de que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor tinha o ônus de comprovar que além de pequena, a propriedade destinava-se à exploração familiar (REsp 492.934/PR; REsp 177.641/RS). Ademais, como regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a veracidade desse fato (art. 373 do CPC/2015) e, sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade do fato alegado. Demais disso, art. 833, VIII, do CPC/2015 é expresso ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar. Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual, repise-se, consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família.

6. Ser proprietário de um único imóvel rural não é pressuposto para o reconhecimento da impenhorabilidade com base na previsão do art. 833, VIII, do CPC/2015. A imposição dessa condição, enquanto não prevista em lei, é incompatível com o viés protetivo que norteia o art. 5o, XXVI, da CF/88 e art. 833, VIII, do CPC/2015. Há que se atentar, então, para duas situações possíveis: (i) se os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas não ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será impenhorável. Caso o somatório resulte em numerário superior, a proteção se limitará a quatro módulos fiscais (REsp 819.322/RS); (ii) se o devedor for titular de mais de um imóvel rural, não contínuos, todos explorados pela família e de até quatro módulos fiscais, como forma de viabilizar a continuidade do trabalho pelo pequeno produtor rural e, simultaneamente, não embaraçar a efetividade da tutela jurisdicional, a solução mais adequada é proteger uma das propriedades e autorizar que as demais sirvam à satisfação do crédito exequendo.

7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas.

8. Segundo a jurisprudência desta Corte, é correta a aplicação da penalidade prevista no art. 1.026, § 2o, do CPC/2015, quando as questões tratadas foram devidamente fundamentadas na decisão embargada e ficou evidenciado o caráter manifestamente protelatório dos embargos de declaração.

9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.

 

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 02 de fevereiro de 2021(Data do Julgamento)

 

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

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