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Direito Agrário - Foto: Cláudio Grande Jr.

Amazônia Legal e regularização fundiária das terras públicas ocupadas por quilombolas e outras comunidades tradicionais

Segue a síntese publicada no Informativo STF nº 882, do período de 16 a 20 de outubro de 2017, referente ao julgamento da ADI nº 4269/DF, Rel Min. Edson Fachin, ocorrido na sessão de 18.10.2017:

Amazônia Legal e regularização fundiária

O Plenário conheceu em parte de ação direta de inconstitucionalidade e, por maioria, julgou parcialmente procedente o pedido para aplicar a técnica da interpretação conforme à Constituição, sem redução de texto:

a) ao § 2º (1) do art. 4º da Lei 11.952/2009, a fim de afastar qualquer entendimento que permita a regularização fundiária das terras públicas ocupadas por quilombolas e outras comunidades tradicionais da Amazônia Legal em nome de terceiros ou de forma a descaracterizar o modo de apropriação da terra por esses grupos; e

b) ao art. 13 (2) do mesmo diploma, a fim de afastar quaisquer interpretações que concluam pela desnecessidade de fiscalização dos imóveis rurais até quatro módulos fiscais, devendo o ente federal utilizar-se de todos os meios referidos em suas informações para assegurar a devida proteção ambiental e a concretização dos propósitos da norma, para somente então ser possível a dispensa da vistoria prévia, como condição para a inclusão da propriedade no programa de regularização fundiária de imóveis rurais de domínio público na Amazônia Legal.

De início, o Colegiado assentou o prejuízo da pretensão relativa ao art. 15, I, §§ 2º, 4º e 5º, da Lei 11.952/2009 por perda do objeto, tendo em vista a superveniência da Lei 13.465/2017, que alterou substancialmente o inciso I e o § 2º do art. 15 e revogou os §§ 4º e 5º. Assim, conheceu do pleito apenas no tocante ao § 2º do art. 4º e ao art. 13 da Lei 11.952/2009.

Reportou-se à jurisprudência do Supremo Tribunal no sentido de que incumbe ao Estado e à própria coletividade a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A correta política pública procura reduzir a desigualdade social e promover o desenvolvimento sustentável da região, possibilitando o acesso às políticas de moradia, crédito rural, assistência técnica e extensão rural, dependentes da regularização do título ou da posse ou da propriedade para se concretizar.

Relativamente ao § 2º do art. 4º, o Plenário entendeu que abriu-se a possibilidade para exegese que permita a terceiros — não integrantes dos grupos identitários de remanescentes de quilombos e comunidades tradicionais — ter acesso a essas terras, se comprovados os demais requisitos para a regularização fundiária.

A Constituição, nos arts. 216 (4) do texto permanente e 68 (5) do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), defere especial proteção aos territórios ocupados pelas comunidades com modos tradicionais de criar, fazer e viver e pelos remanescentes quilombolas.

Extraiu a conceituação de comunidade quilombola do art. 2º do Decreto 4.887/2003 e a das comunidades tradicionais do art. 3º do Decreto 6.040/2007 — que instituiu a Política de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Ambas as regras se encontram no âmbito de tutela especial abarcado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, internalizada pelo Decreto 5.051/2004.

A questão central, no que concerne à caracterização das comunidades tradicionais e de sua espécie quilombola, é a terra. Eles mantêm uma relação com a terra que é mais do que posse ou propriedade. É uma relação de identidade entre a comunidade e sua terra, que recebe especial atenção na Constituição e nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. Essa tutela, entretanto, não se verifica no dispositivo legal em análise.

Mostra-se deficiente a proteção conferida pelo § 2º do art. 4º da Lei 11.952/2009, sendo preciso dar à norma interpretação de acordo com os ditames constitucionais de forma a assegurar, em sua correta e máxima efetividade, a garantia dos direitos territoriais dessas comunidades.

A respeito das comunidades remanescentes de quilombos, a Constituição assegura-lhes a propriedade das terras que ocupam tradicionalmente. O Decreto 4.887/2003, apontado pela União como norma específica em relação aos quilombolas, não trata de procedimento de regularização fundiária de terras da União.

Sobre as demais comunidades tradicionais, não há norma específica para a regularização de terras públicas por elas ocupadas, pois o Decreto 6.040/2007 não dispõe sobre a delimitação e demarcação de terras a essa população.

Logo, a Lei 11.952/2009, que seria de aplicação apenas subsidiária a esses grupos, passava a ser de aplicação cogente, porquanto não era derrogada por qualquer outra, colocando em risco o exercício dos direitos a eles resguardados constitucionalmente.

Além disso, o estatuto legal impugnado destina-se a promover a titulação de terras a proprietários individuais, consoante se infere de seu art. 5º, que cuida da regularização da ocupação ao próprio ocupante, seu cônjuge ou companheiro. Acontece que a propriedade de terras ocupadas pelas citadas comunidades é de feição coletiva e, sem a garantia de um tratamento específico, possibilita-se a não observância dessa característica.

Noutro passo, quanto ao art. 13 da Lei 11.952/2009, o Colegiado compreendeu que o direito ao meio ambiente equilibrado foi garantido a todos, de modo difuso, pelo texto constitucional, em seu art. 225, “caput”. Sendo assim, deve o legislador tornar certa a máxima efetividade dos direitos fundamentais, vedado, de toda maneira, proteção insuficiente à segurança desses direitos.

Os direitos fundamentais não podem ser tidos somente como proibições de intervenção, expressando ainda um postulado de proteção. Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso, como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela.

A tutela desse direito seria fragilizada diante da simples dispensa da vistoria prévia nos imóveis de até quatro módulos fiscais, se apenas essa medida fosse eleita para a verificação do cumprimento dos requisitos legais para a titulação do domínio ou concessão de direito real de uso.

Um exame mais aprofundado da questão posta desautorizaria simples conclusão pela retirada da norma do ordenamento jurídico.

O Tribunal conjugou os interesses sensíveis que o problema da dispensa da vistoria prévia colocou. A ausência do laudo de vistoria assumiu maior gravidade após a Lei 13.465/2017, que modificou vários dispositivos da Lei 11.952/2009. Com efeito, se antes a União ancorava-se também na realização de vistoria final para a concessão definitiva do título de domínio ou do termo de concessão de uso, agora, a nova redação conferida ao art. 16 não mais previa referida exigência, comprovando-se o cumprimento das cláusulas resolutivas pela juntada de documentação pertinente. Ou seja, os imóveis de até quatro módulos fiscais, via de regra, não passariam por qualquer vistoria no processo de regularização fundiária.

O reconhecimento de sua inconstitucionalidade, contudo, não podia levar ao comprometimento dos propósitos dessa legislação. Foi necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre a eficiência na fiscalização dessas pequenas propriedades a serem regularizadas e a proteção do meio ambiente amazônico, de forma a assegurar a real possibilidade de melhoria na qualidade de vida das pessoas que retiravam da floresta seu sustento e que colaboravam para a manutenção do desenvolvimento sustentável da região.

Vencido o ministro Marco Aurélio, que acompanhou o relator quanto ao conhecimento da ação, mas, na parte conhecida, considerou-a improcedente. Vencido, em parte, o ministro Alexandre de Moraes, com relação ao que decidido sobre o art. 13, ao entender pela presunção “iuris tantum” da boa-fé da declaração do ocupante do imóvel, no que foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes.

(1) Lei 11.952/2009: “Art. 4o Não serão passíveis de alienação ou concessão de direito real de uso, nos termos desta Lei, as ocupações que recaiam sobre áreas: (…) § 2o As terras ocupadas por comunidades quilombolas ou tradicionais que façam uso coletivo da área serão regularizadas de acordo com as normas específicas, aplicando-se-lhes, no que couber, os dispositivos desta Lei.”
(2) Lei 11.952/2009: “Art. 13. Os requisitos para a regularização fundiária dos imóveis de até 4 (quatro) módulos fiscais serão averiguados por meio de declaração do ocupante, sujeita a responsabilização nas esferas penal, administrativa e civil, dispensada a vistoria prévia. Parágrafo único. É facultado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário ou, se for o caso, ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão determinar a realização de vistoria de fiscalização do imóvel rural na hipótese prevista no caput deste artigo.”
(3) CF/1988: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (…) § 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.”
(4) CF/1988: “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (…) II – os modos de criar, fazer e viver;”
(5) ADCT: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
ADI 4269/DF, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 18.10.2017. (ADI-4269)

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