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Direito Agrário

STJ mantém a proibição de outorga de exploração de poço artesiano para consumo humano em local onde há fornecimento público de água

“A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou decisão da Justiça do Rio Grande do Sul que havia concluído pela possibilidade de outorga de exploração de poço artesiano para consumo humano, em local onde há fornecimento público de água.

O caso envolveu uma entidade beneficente que possui poço artesiano em sua sede. A entidade encaminhou ao Departamento de Recursos Hídricos estadual o pedido de outorga para utilização e regularização do poço.

Limitação legal

O pedido foi indeferido. Segundo a decisão administrativa, a utilização da água só poderia ser autorizada para fins de irrigação, por aplicação da Lei Estadual 6.503/72, que estabelece que ‘nas zonas servidas por rede de abastecimento de água potável, os poços serão tolerados exclusivamente para suprimento com fins industriais ou para uso em floricultura ou agricultura‘.

Contra o indeferimento, a entidade ajuizou ação, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) acolheu a pretensão, em parte, para reconhecer a possibilidade de outorga de exploração de poço artesiano para consumo humano. Foi determinado, então, o prosseguimento do processo administrativo para verificação dos demais requisitos exigidos na outorga.

Utilização racional

No STJ, o Estado do Rio Grande do Sul alegou ser incabível a possibilidade de outorga de poço artesiano a particular para consumo humano, uma vez que há fornecimento de água pela concessionária de abastecimento público.

O relator do recurso, ministro Francisco Falcão, afirmou que as edificações permanentes urbanas devem estar conectadas às redes públicas de abastecimento de água e que essa instalação hidráulica predial não pode ser alimentada por outras fontes, nos termos do artigo 45, parágrafo 2º, da Lei 11.445/07. Segundo ele, a restrição ao uso dos poços apenas para fins industriais ou para o uso em floricultura ou agricultura foi acertada.

‘Diante da necessidade da preservação do meio ambiente pela utilização racional e controlada dos recursos hídricos, ao admitir a exploração de poço artesiano por particular, para consumo humano, em local onde há rede pública de abastecimento de água, o acórdão recorrido é que afronta injustificadamente a legislação federal que estabelece as normas gerais da política nacional de utilização da água no território brasileiro’, concluiu o relator”.

Fonte: STJ, 09/03/2017.

Direito Agrário

Confira a íntegra do julgado:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.345.403 – RS (2012/0197280-0)

RELATOR : MINISTRO FRANCISCO FALCÃO

RECORRENTE : ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROCURADOR : PATRÍCIA BERNARDI DALL’ACQUA E OUTRO(S) – RS038849

RECORRIDO : SOCIEDADE BATISTA DE BENEFICIÊNCIA TABEA

ADVOGADOS : ROBERTA SOUSA AVILA – RS045778 e LUCIANO PIRES PEREIRA E OUTRO(S) – RS069726

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO FRANCISCO FALCÃO (RELATOR):

Trata-se de recurso especial interposto pelo ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, assim ementado, in verbis:

APELAÇÃO CÍVEL. PEDIDO DE OUTORGA DE EXTRAÇÃO DE ÁGUA DE POÇO ARTESIANO PARA FINS DE CONSUMO HUMANO. NEGATIVA A PRETEXTO DE A LEGISLAÇÃO CONTEMPLAR APENAS PARA FINS INDUSTRIAIS, DE FLORICULTURA E AGRICULTURA. DECISÃO QUE CONTRARIA JURISPRUDÊNCIA E ATÉ MESMO PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO. TODAVIA, PRETENSÃO INICIAL QUE MERECE ACOLHIDA SOMENTE EM PARTE, ISTO E, UMA VEZ AFASTADO O FUNDAMENTO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA, SER ORDENADO PROSSIGA O RESPECTIVO PROCESSO, A FIM DE VERIFICAÇÃO DO CUMPRIMENTO DOS DEMAIS REQUISITOS. NÃO É POSSÍVEL, NAS CIRCUNSTÂNCIAS, ORDENAR SEJA EXPEDIDA A OUTORGA DE EXPLORAÇÃO. POR MAIORIA, APELAÇÃO PROVIDA EM PARTE (fl. 277).

Opostos embargos de declaração pela recorrida, esses foram rejeitados (fls. 322-326).

Em seguida, o recorrente opôs embargos infringentes, que foram rejeitados, conforme a seguinte ementa, litteris:

DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. USO DE POÇO TUBULAR. AÇÃO ORDINÁRIA. Autorização de uso de água para consumo humano. Possibilidade. Embargos infringentes desacolhidos, por maioria (fl. 374).

Adiante, foram opostos embargos de de declaração pelo recorrente, tendo sido rejeitados (fls. 407-411).

Inconformadas, interpuseram as partes recursos especiais, ambos inadmitidos pela instância de origem (fls. 514-529), deixando a ora recorrida de interpor o consequente agravo e tendo sido provido o agravo do ora recorrente (fl. 589-590).

No presente recurso especial (fls. 438/462), o recorrente aponta, preliminarmente, ofensa ao art. 535, inciso II, do CPC/73, porquanto o Tribunal de origem, a despeito da oposição de embargos de declaração, não se pronunciou sobre pontos necessários ao deslinde da controvérsia, mais precisamente a respeito dos arts. 1º, 5º, 11, 12 e 18 da Lei n. 9.433/1997 e 45 da Lei n. 11.445/2007.

No mérito, aduz que o acórdão recorrido, ao concluir pela possibilidade de outorga de exploração do poço artesiano, violou os dispositivos legais acima elencados.

Sustenta, em síntese, ser incabível a possibilidade de outorga de exploração de poço artesiano por particular para o consumo humano, na medida em que há fornecimento de água pela concessionária de abastecimento público.

Aponta, ainda, divergência jurisprudencial com julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, alegando que “O dissídio entre as decisões confrontadas resta evidenciado na parte do voto vencedor do acórdão recorrido em que afirma ser cabível a manutenção da exploração do poço artesiano, sem prévia outorga do poder público e em local servido pela rede púbica de água” (fl. 461).

Não foram apresentadas contrarrazões.

Às fls. 603-610, o Ministro Humberto Martins, então relator do presente recurso, não conheceu do recurso especial. Interposto agravo regimental pelo recorrente, o nobre Ministro tornou sem efeito o anterior decisum para julgamento do recurso pelo colegiado (fls. 626-628).

Aberta vista ao Ministério Público Federal, esse emitiu parecer pelo desprovimento do recurso especial (fls. 636-643).

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO FRANCISCO FALCÃO (RELATOR):

Ainda que o presente julgamento ocorra quando já em vigor o Código de Processo Civil de 2015, como a decisão recorrida foi publicada sob a égide da legislação processual civil anterior, quanto ao cabimento, aos demais pressupostos de admissibilidade e ao processamento do recurso, aplicam-se as regras do Código de Processo Civil de 1973, diante do fenômeno da ultratividade e do enunciado administrativo n. 2 do Superior Tribunal de Justiça.

Relativamente à violação ao artigo 535, II, do Código de Processo Civil de 1973, ao apreciar a demanda, o Tribunal a quo manifestou-se sobre todas as questões pertinentes à litis contestatio , fundamentando seu proceder de acordo com os fatos apresentados e com a interpretação dos regramentos legais que entendeu aplicáveis, demonstrando as razões de seu convencimento.

Aliás, quanto à legislação federal alegada pela recorrente como aplicável, ao julgar embargos de declaração do acórdão que decidiu os embargos infrigentes, a Corte de origem fez a seguinte observação:

Ademais, não há espaço para o reconhecimento da não- recepção do Código de Águas pela Constituição Federal, pois resguardada a Competência da União, bem como a Lei Federal n. 9.433/97 não possui o alcance pretendido.

Embora de maneira sucinta, houve, portanto, o enfrentamento da legislação federal tida como violada pela recorrente.

A par disso, o julgador não está obrigado a discorrer sobre todos os regramentos legais ou todos os argumentos alavancados pelas partes.

As proposições poderão ou não ser explicitamente dissecadas pelo magistrado, que só estará obrigado a examinar a contenda nos limites da demanda, fundamentando o seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice e com a legislação que entender aplicável ao caso concreto.

Não há se falar, portanto, em violação ao art. 535, II, do Código de Processo Civil de 1973.

Por outro lado, relativamente à aplicação analógica do óbice decorrente da Súmula 280 do Supremo Tribunal Federal – por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário -, ao tornar sem efeito a decisão monocrática de fls. 603/601, o Exmo. Sr. Ministro Humberto Martins fez as seguintes e ponderadas observações:

No caso concreto, discute-se a necessidade de outorga do ente estatal para extração de água de poço artesiano para fins de consumo humano, bem como se há empecilho da legislação federal e se o bem público de uso comum (água) estaria sujeito a limitações administrativas.

Por essa razão, e com a finalidade de viabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa, torno sem efeito a decisão monocrática para posterior julgamento do recurso especial do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL pelo Colegiado.

Como se pode notar, efetivamente, o mencionado óbice não se aplica à hipótese ora analisada, uma vez que a parte pretende, com o presente recurso, a análise da sua alegação de que a decisão recorrida contrariou a legislação federal que trata do tema.

Pois bem. Ao estabelecer a política nacional de recursos hídricos, a Lei Federal n. 9.433/97 fixou algumas diretrizes, dentre as quais se destacam as seguintes:

Art. 1º. A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I – a água é um bem de domínio público;

II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

[…]

Art. 5º. São instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

[…]

III – a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos;

[…]

Art. 11. O regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativos dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água.

Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos:

I – derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo;

II – extração de água de aquifero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo;

[…]

Art. 18. A outorga não implica a alienação parcial das águas, que não são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso.

Mas não é só. Ao estabelecer as diretrizes nacionais para o saneamento básico e para a política federal de saneamento básico, a Lei Federal n. 11.445/2007 fixou a seguinte regra:

Art. 45. Ressalvadas as disposições em contrário das normas do titular, da entidade de regulação e de meio ambiente, toda edificação permanente urbana será conectada às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitários disponíveis e sujeita ao pagamento das tarifas e de outros preços públicos decorrente da conexão e do uso desses serviços.

§1º. Na ausência de rede públicas de saneamento básico, serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade regularora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos.

§2º. A instalação hidráulica predial ligada à rede pública de abastecimento de água não poderá ser também alimentada por outras fontes.

Desse modo, embora se trate de competência legislativa concorrente, por força da disposição contida no artigo 24, VI, da Constituição Federal, ao fixar as normas gerais, por se tratar de questão de política ambiental, a União tutelou o interesse coletivo em detrimento do particular, estabelecendo, inclusive, textualmente, que as edificações permanentes urbanas devem estar conectadas às redes públicas de abastecimento de água e que essa instalação hidráulica predial ligada à rede pública de abastecimento de água não pode ser alimentada por outras fontes.

Não pode ser considerada, assim, ilegal a limitação administrativa estabelecida pelo recorrente no sentido de que, nos locais dotados de rede de abastecimento de água potável, os poços serão tolerados exclusivamente para suprimento com fins industriais ou para uso em floricultura ou agricultura.

Ao contrário, diante da necessidade da preservação do meio ambiente pela utilização racional e controlada dos recursos hídricos, ao admitir a exploração de poço artesiano por particular, para o consumo humano, em local onde há rede pública de abastecimento de água, o acórdão recorrido é que afronta injustificadamente a legislação federal que estabelece as normas gerais da política nacional de utilização da água no território brasileiro.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar improcedente o pedido formulado pela recorrida na petição inicial da presente demanda, restabelecendo, inclusive, a condenação dela à verba honorária corretamente fixada na respeitável sentença (fls. 194/199) em R$ 1.000,00 (um mil reais). Deixo de arbitrar os honorários sucumbenciais recursais ao recorrente, por força do enunciado administrativo n. 7 deste Superior Tribunal de Justiça.

É o voto.

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO. ART. 535 DO CPC/73. INOCORRÊNCIA. EXTRAÇÃO DE ÁGUA SUBTERRÂNEA. POÇO ARTESIANO. OUTORGA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. TUTELA DO INTERESSE COLETIVO EM DETRIMENTO DO PARTICULAR. LEGALIDADE DA LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA PARA UTILIZAÇÃO DE POÇO ARTESIANO COM A FINALIDADE DE CONSUMO HUMANO DE ÁGUA POTÁVEL.

I – Trata-se, na origem, de ação ordinária julgada improcedente, na qual se objetivou a outorga e a autorização para a utilização de poço artesiano para o consumo humano de água subterrânea. Em apelação, acolheu-se em parte o pedido para o prosseguimento do procedimento administrativo, a fim de que se verificasse o cumprimento dos demais requisitos por parte da autora, ora recorrida.

II – Não há violação ao artigo 535 do CPC/73 quando o Tribunal de origem, ao apreciar a demanda, manifestou-se sobre todas as questões pertinentes à litis contestatio , fundamentando seu proceder de acordo com os fatos apresentados e com a interpretação dos regramentos legais que entendeu aplicáveis, demonstrando as razões de seu convencimento.

III – Ao fixar as normas gerais, por se tratar de questão de política ambiental, a União tutelou o interesse coletivo em detrimento do particular, estabelecendo, inclusive, textualmente, que as edificações permanente urbanas devem estar conectadas às redes públicas de abastecimento de água e que a respectiva instalação hidráulica predial não pode ser alimentada por outras fontes.

IV – Não pode ser considerada ilegal a limitação administrativa estabelecida pelo recorrente no sentido de que, nos locais dotados de rede de abastecimento de água potável, os poços serão tolerados exclusivamente para suprimento com fins industriais ou para uso em floricultura ou agricultura.

V – Recurso especial provido para julgar improcedente o pedido formulado pela recorrida na petição inicial da demanda.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).”

Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Og Fernandes, Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). LÍVIA DEPRÁ CAMARGO SULZBACH, pela parte RECORRENTE: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Brasília (DF), 16 de fevereiro de 2017(Data do Julgamento)

MINISTRO FRANCISCO FALCÃO

Relator

Direito Agrário

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