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Direito Agrário - Foto de Maurício Gewehr

O Fundo Garantidor Solidário do Agro – Lei 13.986/2020

por Rogério Oliveira Anderson.

Após muito debate no Congresso Nacional a MPV nº 897/2019, conhecida como “MP DO AGRO” foi, ao final, convertida na Lei Federal  nº 13.986, de 07 de abril de 2020, normatizando ao nível positivo, e de forma definitiva, algumas soluções há muito reclamada pelo setor produtivo, em especial, para os fins deste artigo, o denominado Fundo Garantidor Solidário (FGS-AGRO).

Cumpre esclarecer que não se trata, do ponto de vista científico, de novidade no ordenamento jurídico posto que já existem, no direito brasileiro, outros “fundos garantidores” como, por exemplo, o Fundo Garantidor de Crédito – FGC instituído pela Resolução CMN nº 2.197/1995, fundamentada nos dispositivos da Lei n.º 9.069, de 29.06.1995, e nos arts. 3.º, incisos IV, V e VI, 4.º, incisos VI, VIII, XI e XVII, e 30, da referida Lei n.º 4.595; no art. 17 da Lei n.º 4.380, de 21.08.1964, e no art. 7.º, do Decreto-Lei n.º 2.291, de 21.11.1986.

A lei, em si, não estabelece a natureza jurídica do FGS-AGRO, remetendo ao estatuto da entidade de que modo deverá ser constituído, sua administração, remuneração dos administradores, a utilização dos recursos, a representação ativa e passiva e outras disposições necessárias ao seu funcionamento.

Outrossim, o FGS-AGRO se aproxima da natureza jurídica de associação (CCB, arts. 53 e s.), não podendo assumir a forma empresarial (CCB, arts. 983), ou até mesmo de sociedade simples (CCB, arts. 997 e s.), já que o artigo 3°, § 6.°, da Lei nº 13.986/2020 veda expressamente o “pagamento de rendimentos aos seus cotistas”,  ou seja, não se distribuem lucros, elemento essencial ao conceito de empresa, nos termos do artigo 966 do CCB.

Portanto, na elaboração do estatuto do FGS-AGRO é necessária a observância das disposições atinentes às associações, nos termos do Código Civil Brasileiro, além, por evidente, dos demais normativos incidentes, dentre os quais, por evidente, a Lei nº 13.986/2020. Esclarecida a natureza jurídica de associação civil, sem fins lucrativos, passa-se, agora, a analisar as principais normas contidas na lei com vistas a esclarecer, do ponto de vista jurídico, o funcionamento dos FGSs que, como se verá, constituem-se em importantes mecanismos de disseminação do crédito rural, com a desejável redução dos juros e com a busca da soluções de mercado para este importante insumo de produção.

Segundo o artigo 1.° da Lei nº 13.986/2020, os Fundos Garantidores Solidários podem, então, garantir operações de crédito realizadas por produtores rurais, pessoas jurídicas ou físicas, inscritas, ou não, no Registro Público de Empresas Mercantis  (CCB, art. 971). As operações de crédito garantidas são aquelas definidas no artigo 2.° da Lei nº 4.829/1965 (Lei do Crédito Agrícola), ou seja, o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.

Na verdade, toda e qualquer operação de crédito que destine recursos às operações do agronegócio, estas entendidas as previstas no artigo 187 da Constituição, é passível de utilização do instrumento sob análise, como, por exemplo, aquisição de equipamentos, veículos, tecnologia, maquinário, armazenagem, insumos de produção, transporte e seguros. A lei, ainda, se preocupa expressamente com as operações de financiamento para implantação e operação de infraestruturas de conectividade rural, muito embora, como se vê, não sejam apenas estas as operações que podem ser garantidas pelo FGS-AGRO.

Outrossim, a Lei nº 13.986/2020, em seu artigo 3.°, §2.°, inciso I, permite a utilização do FGS-AGRO para a garantia de operações consolidadas como, por exemplo, os programas de securitização de dívidas, ou as decorrentes de renegociação, transação ou novação, nestes casos, podendo a instituição consolidadora exigir a transferência das garantias nas operações originais para a operação de consolidação, ou seja, sub-rogar-se nos direitos do credor original.

Participam dos FGSs pelo menos dois devedores (o número máximo pode ser limitado por ato administrativo do poder executivo), o credor e o garantidor, se houver. Os devedores, como se viu, são os agentes econômicos atuantes na cadeia do agronegócio que se dediquem às atividades que tenham relação com o segmento econômico, em quaisquer de suas etapas (antes, dentro e fora da porteira), desde que necessitem de crédito, bancário ou não bancário, para suas operações.

Os credores podem ser as instituições integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural (art. 7.°, da Lei nº 4.829/1965), desde que autorizadas a operar no segmento, com ou sem a vinculações de recursos provenientes das fontes oficiais de financiamento ou, ainda, de recursos oferecidos em livres condições de mercado.

Ainda,  operações que envolvam a concessão de crédito, mesmo que não contém com a intervenção de instituições financeiras, podem ser garantidas pelo FGS-AGRO, como, por exemplo, o barter, ou, ainda, a emissão de títulos de crédito do agronegócio, ou, ainda, contratos de safra futura, figurando, nestas hipóteses, os respectivos credores como integrantes do fundo, na condição de participantes.

Por fim, a lei prevê a participação de garantidores, caso existam, como integrantes do FGS-AGRO. Esses garantidores podem ingressar originariamente na composição do fundo, ou, ainda, por força da sub-rogação das garantias das operações de origem, conforme referido acima.  Em todo o caso, os garantidores somente podem ingressar por expressa disposição de vontade, não sendo obrigados, no caso de sub-rogação, a participar da associação caso não queiram (art. 5.°, inciso XX, da Constituição).

A lei prevê percentuais mínimos de integralização das cotas e dos recursos para o FGS-AGRO, fixando como base de cálculo os saldos devedores das operações garantidas, ainda que consolidadas (art. 3.°, § 2.°, inciso II, da Lei nº 13.986/2020).

Deste modo: a) a cota primária, de responsabilidade dos devedores, deve obedecer ao percentual mínimo de 4% (quatro por cento) do valor da operação garantida, ou do saldo devedor; b) a cota secundária, a cargo do credor, ou dos credores originários em caso de consolidação,  equivale a 4% (quatro por cento) do valor da operação, ou do saldo devedor; e, c) a cota terciária, de responsabilidade do garantidor, se houver, corresponde a 2% (dois por cento) do valor da operação ou do saldo devedor, podendo tal cota ser integralizada mediante redução do saldo devedor do credor garantido pelo FGS.

São, como visto, percentuais mínimos, que podem ser ampliados teoricamente até 100% (cem por cento), a depender do perfil de crédito dos participantes do FGS-AGRO, e da aceitação de todos os participantes. A proporcionalidade entre as cotas primária, secundária e terciária, se houver, pode ser alterada pela vontade dos participantes vez que, como dito, os percentuais previstos no caput do artigo 3.° da Lei nº 13.986/2020 são mínimos.

Em caso de alteração dos percentuais de integralização é mister manter as proporções internas nas cotas dos mesmos participantes, de modo a se evitar que uns integralizem mais, ou menos, que outros na mesma cota.

O FGS-AGRO garante as operações até o limite dos recursos existentes, ou seja, até o valor integralizado pelos cotistas. Em caso de descumprimento do dever de integralizar, por analogia, vez que não se trata de sociedade empresária ou simples, aplicam-se o disposto nos artigos 1.004, caput e parágrafo único, e 1.058, ambos do Código Civil, ou seja, as previsões relativas ao denominado sócio remisso, isto é, execução, redução proporcional de cota, exclusão do quadro social, além de perdas e danos.

Por outro lado, os recursos integralizados são absolutamente impenhoráveis vez que enquanto não quitadas as operações garantidas não podem ser objeto de penhora e não responderão por outras dívidas e obrigações, presentes ou futuras, contraídas pelos participantes, independentemente da natureza dessas dívidas e obrigações, nos termos do artigo 3.°, § 4.°, da Lei nº 13.986/2020.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em 13/06/2019, por exemplo, no REsp 1.327.643/RS, relatado pelo Ministro Luiz Felipe Salomão, que os bens dados em garantia cedular rural, vinculados à CPR, são impenhoráveis em virtude de lei, mais propriamente do interesse público de estimular essa modalidade de crédito, a bem de setor de enorme relevância, motivo pelo qual não poderiam ser penhorados para satisfazer créditos trabalhistas.

Tal entendimento, correto, pretende preservar a garantia dos credores que ficariam desincentivados à realização de operações de crédito caso percebam a fragilidade do FGS frente a outros créditos existentes na ordem jurídica e econômica. É mister observar os fins sociais da norma a que ela se dirige e às exigências do bem comum, conforme artigo 5.°, da Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro – LINDB).

Em todo o caso, cumpre recordar, por exemplo, o disposto no artigo 186, caput, do Código Tributário Nacional, que estabelece a preferência absoluta do crédito tributário frente a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho.

Resta aguardar o trabalho da jurisprudência quando questões envolvendo tal disposição desaguarem no Poder Judiciário, em especial no que tange à tormentosa questão dos créditos acidentários, trabalhistas e tributários.

O FGS-AGRO, em todo o caso, poderá ser utilizado para a satisfação do credor, ou da instituição consolidadora, após o vencimento das operações, ou das parcelas, sem que tenha havido o adimplemento. Ou seja, vencida e não cumprida a obrigações, poderá, então, o credor exigir o pagamento pelo FGS-AGRO que, dentro dos seus limites, procederá à utilização dos saldos das cotas na seguinte ordem: a) cota primária; b) cota secundária; e, c) cota terciária.

Em todo o caso, é necessária a constituição do FGS-AGRO em mora, nos termos do parágrafo único, do artigo 397, do Código Civil já que é preciso demonstrar o implemento do termo decorrente da ausência de pagamento pelo devedor da obrigação decorrente da operação garantida.

Neste sentido, apesar do nome, o FGS-AGRO não estabelece propriamente uma relação de solidariedade entre os seus participantes. Fosse assim, na data do vencimento o credor poderia exigir o pagamento diretamente do fundo, nos termos do que dispõe os artigos 275 e seguintes do Código Civil.

O que há, em verdade, uma garantia fidejussória que comporta benefício de ordem entre o devedor principal e o FGS-AGRO, que somente será instado a pagar caso haja o inadimplemento da dívida, situação que ensejará o aperfeiçoamento do termo da obrigação, conforme artigo 135 do Código Civil.

Por outro lado, o FGS-AGRO responde tão somente até o limite dos saldos disponíveis decorrentes da integralização efetivada pelos cotistas dos respectivos fundos constituídos. Ou seja,  a solidariedade que há é parcial já que a dívida não pode ser exigida por inteiro do devedor, mas, sim, até o limite supra referido.

Por fim, o FGS-AGRO será extinto após a quitação das operações por ele garantidas ou o exaurimento de seus recursos. No caso de remanescer recursos após o pagamento de todas as obrigações garantidas, o saldo será devido aos cotistas na proporção da integralização das suas cotas, na seguinte ordem: a) cota terciária; b) cota secundária; c) cota primária.

Se não for o caso de continuidade das operações, mediante aporte de novos recursos, para novas operações, deverá ser providenciada a baixa dos atos constitutivos do FGS-AGRO junto ao registro de pessoas jurídicas competente.

O FGS-AGRO, por não desenvolver a captação de recursos do público ou a distribuição de títulos e valores mobiliários não se submete à fiscalização da CVM. Do mesmo modo, como não se trata de instituição financeira ou entidade equiparada, não é fiscalizado pelo BACEN, assim como não sofre a regulação pela SUSEP. Por fim, por não se tratar de sociedade empresária, não se submete à Lei nº 11.101/2005 (lei de falências).

Cuida-se, como se vê, de mais um instrumento de mercado, fundado na autonomia privada e na liberdade de iniciativa dos agentes econômicos, sobretudo do agronegócio, que permite a existência de mecanismos de autofinanciamento da atividade produtiva, com potencial de liberar mais recursos públicos e subsidiados, atualmente vinculados ao segmento, para outros importantes ramos de atividade da economia, assim como já ocorreu com os títulos de crédito do agronegócio (Lei nº 11.076/2004) e com as operações de barter.

Rogério Oliveira Anderson – Mestre em Direito Agrário, Especialista em Gestão do Agronegócio, Professor da Graduação e Pós-Graduação do IESB, Procurador do Distrito Federal, Advogado. Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.

 

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