por Francisco Torma.
Não é raro o direito agrário sofrer ataques. Recentemente, o projeto do novo Código Comercial condenava nosso Estatuto da Terra à morte, ao criar um desengonçado “Direito do Agronegócio”, conjunto este de normas que retirava do produtor rural qualquer proteção à sua atividade, desconsiderando absolutamente o risco agrobiológico e, por consequência, a teoria da agrariedade.
Entretanto, o projeto do novo Código Comercial está sendo debatido e não é, neste momento, o maior risco do direito agrário.
Surpresa causou nos juristas que atuam nas questões do campo a inclusão, na Medida Provisória 881/2019 – a MP da Liberdade Econômica –, de uma proposta de alteração no Estatuto da Terra.
O art. 54 da MP – surgido aos 44 minutos do segundo tempo – busca incluir um parágrafo décimo no art. 92 do Estatuto, que até então conta com nove parágrafos.
Não é novidade alguma para o estudioso do direito agrário que os contratos agrários típicos possuem forte regramento legal, regramento este que prevalece sobre o contratado, se o acordado entre as partes for contrário às determinações do Estatuto e seu regulamento. Isto porque a legislação protege sobremaneira a parte que efetivamente está produzindo na terra. E esta proteção não é mero capricho legal, mas sim a forma que se dispõe para garantir as melhores condições a quem está produzindo no imóvel agrário, ao mesmo tempo em que garante ao proprietário o proveito econômico da sua gleba.
Pois, contrariando todo o texto do Estatuto da Terra e seu regulamento, o parágrafo alienígena que pretende pousar no final do art. 92 busca deixar as partes totalmente livres na contratação, exceto se uma das partes se enquadrar no conceito de agricultor familiar.
Veja o texto do parágrafo décimo:
§ 10. Prevalece a autonomia privada nos contratos agrários, exceto quando uma das partes se enquadre no conceito de agricultor familiar e empreendedor familiar rural, conforme previsto o art. 3º da Lei 11.326, de 24 de julho de 2006.
Não vou entrar no mérito da desastrosa técnica legislativa de se querer alterar o Estatuto da Terra por Medida Provisória, sem nenhuma urgência que justifique tal medida. Mas quero suscitar dois imbróglios nítidos que surgem no horizonte.
Primeiramente, trata-se de uma generalidade. “Prevalece a autonomia privada nos contratos agrários”, diz o texto da MP. Só que, até chegarmos no art. 92 do Estatuto da Terra, já passamos por um complexo regramento que incide sobre os contratos agrários. Ou seja, teremos – se aprovada a MP desta forma – uma grande dúvida sobre o que efetivamente está valendo nos contratos: se o regramento típico dos contratos agrários ou a expressão genérica do art. 92, § 10. Se o objetivo é causar insegurança jurídica para os contratantes e muitas ações tramitando no Judiciário, a mudança cai como uma luva.
Com esta alteração no seu texto, o Estatuto da Terra se torna uma lei altamente contraditória, já que uma frase perdida no fim de um artigo confronta todo o texto que lhe precede. Sabemos, também, que leis contraditórias são um prato cheio para discussões judiciais intermináveis, o que certamente não é o interesse do produtor rural brasileiro neste momento.
Em segundo lugar, a ressalva do texto em relação ao agricultor familiar acaba colocando esta categoria em maus lençóis. Veja que o dito parágrafo décimo explicita que o regramento contratual do Estatuto da Terra tem aplicabilidade nas situações onde uma das partes é agricultor familiar.
Desta forma, vemos como altamente prejudicial ao direito agrário e ao produtor rural brasileiro a alteração do Estatuto da Terra proposta pela MP 881. Portanto, devemos agir – hábil e rapidamente – para que este trecho da MP seja dela destacado e, preferencialmente, enterrado.O problema reside no fato de que a alteração legislativa diferencia o produtor familiar dos demais, o que pode leva-lo a enfrentar dificuldades na contratação. Enquanto ele carregaria consigo e aos contratos que firmar o regramento rígido da lei, aos demais produtores a “liberdade” seria plena. Uma diferenciação que mais lhe prejudica do que beneficia. No ponto, a alteração legal pretendia criar um passarinho, mas gerou um urubu.
É preciso sim modernizar vários pontos do Estatuto da Terra, mas de maneira correta e planejada. Não podemos permitir que o Estatuto seja remendado para pior, prejudicando o produtor rural brasileiro e lhe trazendo insegurança jurídica.
O produtor rural precisa de tranquilidade e segurança para trabalhar e alimentar o mundo. Toda vez que sua paz for ameaçada, nós, agraristas, estaremos de prontidão para denunciar e enfrentar as ameaças.
O direito agrário viverá, porque o produtor rural precisa dele. E ele precisa do produtor rural.
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