quinta-feira , 21 novembro 2024
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Direito Agrário - foto: Maurício Gewehr

FIAGRO: questões agrárias e tributárias do novo fundo de investimento

por Álvaro Santos.

Acaba de ser publicada a Lei nº. 14.130/2021, a qual possibilita a criação dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, também chamado de “FIAGRO”. Mas, afinal, o que é um fundo de investimento? De acordo com a Lei da Liberdade Econômica – Lei nº. 13.874/2019 – consiste numa comunhão de recursos, os quais são aportados por vários investidores, geralmente através do mercado de capitais, que se unem, a fim de se alavancarem conjuntamente, para investirem em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. Para aqueles que investem em imóveis, as estratégias mais comuns são construção de shopping centers, locação de galpões e compra-e-venda de edifícios comerciais.

Em outras palavras, o fundo funciona como espécie de condomínio e viabiliza investimento coletivo, cabendo as decisões de alocação dos recursos a gestores profissionais. Estes têm a missão de prospectar as melhores oportunidades no mercado, seguindo regras da Comissão de Valores Mobiliários. É importante ressaltar que para ser criado, torna-se necessário a edição de um regulamento, no qual constarão as principais regras, objetivos e características, bem como a limitação da responsabilidade de cada investidor. O fundo não possui personalidade jurídica, embora esteja sujeito a inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.

Compra ou arrendamento de imóveis rurais

O FIAGRO é, portanto, uma espécie de fundo de investimento, constituído sob o regime de condomínio fechado ou aberto, que oportuniza o emprego especulativo em diversos ativos relacionados ao setor mais pujante da nossa economia: o agronegócio. O primeiro deles, destacado pela lei, se refere a imóveis rurais, como sítios, chácaras e fazendas, seja através da compra para posterior revenda, seja com fins de arrendamento.

Na primeira hipótese, os investidores, através do fundo, se tornariam proprietários do imóvel até a venda por um possível preço superior, obtendo, por consequência, um lucro imobiliário. Já na segunda, eles se revestiriam da condição de arrendador, tendo direito ao recebimento periódico da renda a ser paga pelo arrendatário. O ganho de capital ou os rendimentos obtidos seriam, então, repartidos entre os investidores, dentro das regras previstas no regulamento.

O novo artigo 20-A, § 2º, da Lei nº. 8.668/1993, inserido pela lei recém aprovada, prevê que na hipótese de arrendamento, “prevalecerão as condições livremente pactuadas no respectivo contrato”. Além disso, menciona que a única ressalva a autonomia privada seria que, em eventual inadimplemento por parte do arrendatário, sua desocupação compulsória deverá respeitar o término da safra que esteja plantada na época do inadimplemento, “respeitado o prazo mínimo de 6 (seis) meses e máximo de 1 (um) ano”.

Tal dispositivo, além de ignorar as atividades pecuárias bem como as peculiaridades das lavouras permanentes, entra em rota de colisão com as disposições do Estatuto da Terra, ao enaltecer, exageradamente, a livre pactuação entre partes. Como se sabe, o Estatuto da Terra traz um plexo de direitos e garantias ao arrendatário, como instrumentos de efetivação da função social da terra, postulado axiológico de hierarquia constitucional. Por isso mesmo, há que se defender que, mesmo nos casos em que um Fundo dessa natureza seja o arrendador, as regras especiais como os prazos mínimos, o duplo direito de preferência do produtor e a metodologia das notificações terão que ser aplicadas, uma vez que a lógica da legislação agrária é tutelar quem exerce a atividade agrária frente ao proprietário.

FIAGRO pode contratar parceria rural?

Outro ponto que chama a atenção é que a nova legislação, não traz expressamente a possibilidade de contratação de parcerias rurais por intermédio do FIAGRO, se limitando a permitir somente o arrendamento. Do ponto de vista fiscal, esse último contrato traz, em regra, um ônus maior ao dono do imóvel rural, eis que a tributação dos valores percebidos se equipara à do aluguel, fugindo das regras especiais que tratam da tributação da atividade rural, como ocorre na parceria, onde ambos os contratantes são considerados produtores.

Trazendo essa perspectiva para o FIAGRO, cumpre pontuar que, a princípio, embora esteja obrigado a se inscrever no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ, ele não possui personalidade jurídica. Tal fato, evita uma dupla tributação, ou seja, sobre os resultados obtidos pelo Fundo e posterior tributação dos investidores. No entanto, cumpre pontuar que a Lei nº 9.779/1999, em seu art. 3º, prevê situações aptas a atraírem a equiparação do Fundo de Investimento Imobiliário – FII, à pessoas jurídicas, sujeitando-o a tributação correspondente (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS).

Por óbvio, que tais dispositivos não poderão ser automaticamente aplicados ao FIAGRO, dada a densidade normativa do princípio da legalidade estrita que vige no Direito Tributário. Por isso, eventual pretensão equiparatória do Fisco exigirá a edição de lei específica tratando do assunto. Caso sobrevenha norma nesse sentido, a tributação dos resultados do FIAGRO que sofrer a equiparação deverá seguir os parâmetros da pessoa jurídica que ajusta contrato de arrendamento, sem poder se valer dos reflexos fiscais do contrato de parceria rural, mais amenos, em regra.

Demais ativos à disposição do FIAGRO

Além da compra ou arrendamento de imóveis rurais, o FIAGRO poderá alocar os recursos prospectados em outros ativos, tais como: participação em sociedades que explorem atividades da cadeia produtiva agroindustrial; ativos financeiros ou títulos de crédito emitidos por pessoas físicas e jurídicas que integrem o setor; direitos creditórios do agronegócio e títulos afins; dentre outros. Como se vê, o portfólio a disposição dessa nova estrutura é bastante amplo, o que pode torná-lo mais dinâmico do que os fundos já existentes.

Em se tratando de participações societárias, chama a atenção a possibilidade de aporte em Holdings Rurais, Lojas Agropecuárias, Revendas de Insumos, Cerealistas e Agroindústrias, como Frigoríficos e Usinas. A finalidade do investimento será, tanto a percepção de dividendos dessas sociedades quanto a alienação futura das cotas ou ações com eventual ágio. Esse tipo de investimento também possibilitaria o aumento de capital dessas “empresas”, seja diretamente com o aumento de capital ou, mesmo, através de um mútuo conversível, por exemplo.

Outro nicho para investimentos consiste nos títulos relacionados ao financiamento privado do agronegócio. Desde as famosas Cédulas de Produto Rural – CPR até títulos mais sofisticados, como o Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, a Letra de Crédito do Agronegócio – LCA ou o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA. Além destes, é possível investimentos lastreados em Certificado de Depósito Agropecuário – CDA e Warrant Agropecuário e, também, na recém lançada Cédula Imobiliária Rural – CIR, trazida pela “Lei do Agro”. Através desses instrumentos, o FIAGRO poderá antecipar recursos aos players das diversas cadeias, tomando esses títulos em garantia da operação, por exemplo.

Como se dá a tributação dos investidores?

Aspecto essencial refere-se aos encargos tributários a que estão sujeitos os investidores, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Os rendimentos auferidos podem decorrer da distribuição periódica de resultados obtidos pelo FIAGRO e, ainda, de eventual ganho de capital obtido na revenda das cotas no chamado mercado secundário. A rigor, tal ganho também poderá ser obtido no resgate das cotas, em caso de liquidação do fundo.

Tanto os rendimentos periódicos quanto os ganhos de capital percebidos pelo FIAGRO e distribuídos aos investidores estão sujeitos à incidência do imposto sobre a renda na fonte à alíquota de 20 %. No caso de resgate de cotas, que se dá no encerramento do fundo, também haverá retenção na fonte. No entanto, em caso de venda das cotas, no mercado secundário, a tributação seguirá as mesmas normas fiscais aplicáveis às operações de renda variável.

O texto original previa, na mesma linha dos Fundos Imobiliários, isenção do imposto sobre a renda para investidores pessoas físicas, caso estivessem presentes três requisitos: a) se o Fundo tiver suas cotas admitidas à negociação exclusivamente em bolsas de valores ou no mercado de balcão organizado; b) possuir no mínimo 50 cotistas; c) o cotista tiver menos que 10 % da totalidade das cotas. Esse benefício é um atrativo de investidores muito importante. Todavia, tal dispositivo fora vetado pelo Presidente da República, sob o argumento de implicar em renúncia fiscal.

Outro ponto que convém ser lembrado diz respeito a integralização das cotas através do aporte de bens e direitos, inclusive imóveis. Quer dizer, ao invés do investidor transferir dinheiro, poderia aportar um imóvel rural, tornando-se cotista. A nova lei também trazia uma regra de diferimento para apuração do imposto de renda sobre o ganho de capital, caso houvesse diferença entre o valor da integralização e o custo de aquisição do bem. Através dela, o tributo só deveria ser recolhido proporcionalmente no momento da venda das cotas do investidor ou no resgate, na hipótese de encerramento. Esse tratamento diferenciado também fora vetado, com base na mesma justificativa.

Duas questões merecem reflexão sobre a integralização de bens. A primeira é que a apuração do ganho de capital na alienação de imóveis rurais possui regra especial, trazida pelo artigo 19, da Lei nº. 9.393/1996, responsável por normatizar o Imposto Territorial Rural – ITR. De acordo com esse regramento, o ganho de capital corresponderá à diferença entre os VTN’s  (valor da terra nua) constantes das declarações dos anos de alienação e aquisição, não seguindo, portanto, os valores efetivos das transações. Entendemos que essa regra deverá ser aplicada também na integralização de bens ao FIAGRO, mesmo que sejam avaliados a valor superior.

Dúvida interessante se refere ao Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis Intervivos – ITBI. A lei não faz qualquer referência a esse tributo. Apesar disso, é importante lembrar que alguns Municípios estão tentando, à revelia do Texto Constitucional, cobrar esse imposto parcialmente na integralização de imóveis ao capital social de pessoas jurídicas. Espera-se que essa pretensão não avance contra a integralização de imóveis ao FIAGRO, até porque o fato de não possuir personalidade jurídica, afasta uma efetiva transmissão da propriedade do investidor para o fundo. Por consequência, a nosso ver, só poderia ser cobrado na alienação do imóvel pelo FIAGRO a um terceiro.

O terceiro ponto vetado diz respeito à isenção do IRRF relativo a rendimentos obtidos por pessoas físicas em aplicações, através do Fundo, em CDA, WA, CDCA, LCA, CRA e CPR-financeira. Mais uma vez a evasiva utilizada fora a suposta renúncia de receitas. Vale pontuar que o FIAGRO consiste num novo instituto, razão pela qual não se cogita de renúncia de uma realidade já existente. Além disso, esse e os demais vetos geraram uma verdadeira distorção entre essa nova estrutura e os já conhecidos Fundos de Investimento Imobiliário – FII, sem qualquer justificativa para a diferenciação.

Espera-se que o Congresso derrube esses obstáculos, sob pena de inviabilizar o FIAGRO, desrespeitando, ainda, o mandamento constitucional contido no artigo 187, inc. I, da Constituição Federal, que elenca, como instrumento de política agrícola, “os instrumentos creditícios e fiscais”. Nas palavras de Fábio Calcini e Renato Buranello, em artigo publicado na Conjur, “tem potencial de ser um verdadeiro divisor de águas”[1] no financiamento privado do agronegócio. Só cabe ao Congresso dizer se esse “potencial” se concretizará ou não.

Conclusão

Como visto, o FIAGRO poderá se tornar um importante veículo para o fomento do Agronegócio, seja pelas vantagens tributárias que traz aos investidores seja por aumentar os recursos disponíveis aos produtores e demais players das cadeias produtivas. A gestão profissional, submetida às regras da CVM, gera mais governança e transparência para todos as partes envolvidas. Apesar disso, vale ressaltar que a criação desses fundos deve se compatibilizar com as normas agrárias, em caso de arrendamento de imóveis rurais. Por fim, deve-se pontuar que o sucesso do FIAGRO está condicionado ao afastamento dos vetos presidenciais e ao restabelecimento do tratamento tributário diferenciado deferido ao Setor pelo Texto Constitucional.

Nota:

[1] https://www.conjur.com.br/2021-mar-26/direito-agronegocio-fiagro-relevancia-necessidade-tratamento-fiscal-especifico

 

Álvaro Santos – OAB/GO 39.413
[email protected]
Mestrando (IDP-Brasília).
Especialista em Processo Civil (Damásio), Ambiental (UFPR), Tributário (IBET) e Agrário/Agronegócio (FMP).
Extensão em Direito do Agronegócio (INSPER), Tributação no Agro (IBET)(FGV), Agronegócios (FGV) e Planejamento Tributário (IBMEC). Integrante da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU e do Grupo de Estudos em Tributação do Agronegócio – GETA.

Veja também:

Lei dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro

Retrospectiva jurídica do agronegócio em 2020

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