No sexto episódio do Projeto “Direito Agrário Levado a Sério”, os professores Francisco Torma, Albenir Querubini e Betina Kipper tratam do tema “Relações trabalhistas e bem-estar na atividade agrária”, discorrendo sobre o cumprimento do “eixo trabalhista” da função social da propriedade e da atividade agrária.
O tema insere-se no contexto do chamado “Direito Trabalhista aplicado ao Agronegócio”, nomenclatura que está sendo atualmente adotada pela definir o estudo de forma especializada das normas trabalhistas para as cadeias produtivas e complexos agroindustriais do Agronegócio, destacando-se uma preocupação com a prevenção de litígios envolvendo as relações trabalhistas.
O estudo do eixo trabalhista da função social da propriedade rural começa pelo Estatuto da Terra e pela Constituição Federal de 1988 (que inclusive teve importantes alterações pela Emenda Constitucional nº 81/2014), passando pela Lei do Trabalhador Rural (Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973), Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, NR-31 do MTE, etc.
O Estatuto da Terra – Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, na disposição acerca da função social da propriedade (art. 2º, § 1º), positivou como deveres decorrentes do direito de propriedade favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias, bem como de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988, ao tratar da função social da propriedade rural, no seu art. 186, previu como requisitos a “observância das disposições que regulam as relações de trabalho” (inc. III) e a “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (inc. IV), conforme transcrevemos:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
A Constituição deixa claro, portanto, que não pode haver na propriedade rural, qualquer tipo de trabalho onde não sejam observadas as normas estabelecidas em lei. Isso significa que estando um indivíduo trabalhando no local, ou deve ter registro de emprego (CTPS assinada), ou um contrato de parceria agrícola, em caso agricultura familiar, o vínculo familiar comprovado, ou contrato de safra por pequeno prazo, alguns casos específicos poderá ser permitido ingresso de trabalhadores terceirizados mediante contrato e até mesmo diaristas, mas sempre com a devida documentação, com enquadramento legal.
Ainda temos que lembrar das condições da lei para caracterização de responsabilidade solidária trabalhista, de modo que temos que cuidar que situações que ocorram com pessoas que um parceiro rural traz para dentro da propriedade, podem afetar o proprietário, principalmente as mais graves, com repercussões penais, como as alegações de trabalho equiparado a escravo.
O proprietário rural então, para ter segurança financeira e jurídica, deve ter certeza de que todas as pessoas da propriedade tenham um vínculo legal, com recebimento dos direitos trabalhistas, principalmente o sagrado salário, horas extras trabalhadas, FGTS e verbas rescisórias.
No ano de 2014, pela Emenda Constitucional nº 81 incluiu no art. 243 da Constituição Federal a previsão da condição de exploração de trabalho escravo como hipótese que autoriza a expropriação total da propriedade rural, sem indenização ao proprietário, juntamente com eventuais outros bens que pudessem estar sendo utilizados na atividade, conforme transcrevemos:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
Em que pese a nova redação do art. 243 da Constituição da Constituição ter inovado na previsão de trabalho escravo como causa de expropriação da propriedade, a única norma que conceitua o trabalho escravo é o art. 149 do Código Penal, em redação dada pela Lei nº 10.803/2003, que assim dispõe:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
A partir da previsão constante no art. 149 do Código Penal, as situações consideradas análogas à escravidão podem ser divididas didaticamente em dois grupos:
(a) Situações de restrição da liberdade:
-
- trabalhos forçados
- restrição da locomoção em razão de dívida
- cerceio do uso de meios de transporte
- apreensão de documentos ou objetos pessoais do trabalhador
- vigilância ostensiva no local de trabalho
(b) Situações de saúde e dignidade da pessoa
-
- jornada exaustiva
- condições degradantes de trabalho – água potável, alimentação, alojamentos, NR 31.
É importante destacar que o produtor rural (ou empresário do agronegócio) deve ter em mente todas essas obrigações com as pessoas envolvidas na propriedade e fazer a gestão imediatamente, pois as medidas legais tem seus custos, que devem ser computados no custo de produção, para que se tenha a real dimensão da viabilidade dos negócios. Nesse sentido, por exemplo, um trabalhador que não esteja adequado à legislação, ativo na data de hoje, pode ser um passivo trabalhista que vai aparecer daqui a 5 anos, com valores que podem ser bastante elevados.
O cenário pior, de entrar na lista dos empregadores com condições análogas ao trabalho escravo, traz consequências imediatas de corte de créditos em bancos, cortes em exportadoras, ações civis públicas, ações individuais de cada empregado buscando indenizações por danos morais, etc.
Assista ao episódio:
*Confira abaixo a lista de materiais indicados para que você se aprofunde no estudo do Direito Agrário:
BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e Regulamentações Especiais do Trabalho, 7ª ed, LTR, 2011.
BONORINO, Paulo. A extinção dos contratos agrários por violação às normas trabalhistas. Disponível em: https://direitoagrario.com/a-extincao-dos-contratos-agrarios-por-violacao-as-normas-trabalhistas/. Acesso em 05/03/2020.
BONORINO, Paulo. Comentários à decisão que condenou produtor rural por estelionato pela não assinatura de CTPS com o fim de receber seguro-desemprego. Disponível em: https://direitoagrario.com/comentarios-decisao-que-condenou-produtor-rural-por-estelionato-pela-nao-assinatura-de-ctps-com-o-fim-de-receber-seguro-desemprego/. Acesso em 05/03/2020.
CORTEZ, Julpiano Chaves. Trabalho Escravo no Contrato de Emprego e os Direitos Fundamentais. 2ª ed. LTr 2015
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 13ª ed. LTr, 2017.
Direito dos trabalhadores rurais: condição de liberdade não desqualifica trabalho análogo a escravo. Disponível em: https://direitoagrario.com/direito-dos-trabalhadores-rurais-condicao-de-liberdade-nao-desqualifica-trabalho-analogo-a-escravo/. Acesso em 05/03/2020.
Instituições financeiras são processadas por conceder crédito a negócios relacionados à exploração de trabalho análogo a escravo. Disponível em: https://direitoagrario.com/instituicoes-financeiras-sao-processadas-por-conceder-credito-a-negocios-relacionados-a-exploracao-de-trabalho-analogo-a-escravo/
KIPPER, Betina. Contratação de trabalhadores sazonais mediante empresa de trabalho temporário. Disponível em: https://direitoagrario.com/contratacao-de-trabalhadores-sazonais-mediante-empresa-de-trabalho-temporario/
KIPPER, Betina. Terceirização da atividade fim – Entendendo a decisão do STF. Disponível em: https://direitoagrario.com/terceirizacao-da-atividade-fim-entendendo-decisao-stf/
KAUFMAN, Leandro e OLIVEIRA, Tricia Mana Sá P. O Trabalho Escravo Contemporâneo. Portal Migalhas, disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/201403/o-trabalho-escravo-contemporaneo. Acesso em 05/03/2020.
LEITE, Carlos Henrique Bezzera. Curso de Direito do Trabalho, 11ª ed. Saraiva, 2019.
TRF3 confirma condenação criminal de proprietário rural do Mato Grosso do Sul por reduzir cinco trabalhadores a condição análoga à de escravos. Disponível em: https://direitoagrario.com/trf3-confirma-condenacao-criminal-de-proprietario-rural-do-mato-grosso-do-sul-por-reduzir-cinco-trabalhadores-condicao-analoga-de-escravos/. Acesso em 05/03/2020.
Nesse episódio participam:
– Francisco Torma (instagram: @franciscotorma @agrolei)
– Albenir Querubini (instagram: @albenirquerubini @direitoagrariocom)
– Betina Kipper (instagram: @betinakipper, e-mail: betina@kmgadvocacia.com.br)
O canal Direito Agrário Levado a Sério é um projeto dos Portais DireitoAgrário.com e AgroLei.com, com apoio da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.
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(Hashtag oficial do Projeto “Direito Agrário Levado a Sério”)
Episódios anteriores:
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 2: Os Ciclos do Agrarismo no Brasil
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 3: A atividade agrária como objeto do Direito Agrário
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 4: O dever de produção agrária
– “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 5: A função ambiental da atividade agrária