Ao julgar a Reclamação nº 39.991/SP, ajuizada contra decisão proferida pela 2ª Turma do STJ que recusou-se a aplicar o Código Florestal, o Min. Ricardo Lewandowski consignou que o Supremo Tribunal Federal, “em reiteradas reclamações, tem considerado que o raciocínio adotado pelo STJ, fundado nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, acarreta burla à decisão proferida pelo Plenário desta Corte na ADC 42/DF e nas ADIs 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF.“
Confira a decisão:
RECLAMAÇÃO 39.991 SÃO PAULO
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
RECLATE.(S): AGROPECUARIA IRACEMA LTDA.
ADV.(A/S):LUIZ RODRIGUES WAMBIER E OUTRO(A/S)
RECLADO.(A/S): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADV.(A/S): SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
BENEF.(A/S):MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Trata-se de reclamação com pedido de liminar ajuizada por Agropecuária Iracema Ltda. contra decisão proferida pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 1.687.335/SP.
A reclamante alega desrespeito às decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas nas ADIs 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF, 4.937/DF e na ADC 42/DF, todas de relatoria do Ministro Luiz Fux.
Sustenta, em suma, que o STJ, ao dar provimento ao recurso especial movido pelo Ministério Público estadual, com base na aplicação dos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, violou as decisões proferidas na ADC e nas ADIs já referidas.
Em 20/4/2020, deferi a liminar (documento eletrônico 14).
As informações foram devidamente prestadas (documento eletrônico 14).
Houve contestação pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (documento eletrônico 17).
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República José Elaeres Marques Teixeira, opinou pela negativa de seguimento da reclamação (documento eletrônico 20).
É o relatório necessário. Decido.
Bem examinados os autos, vê-se que a pretensão merece acolhida.
Do exame das decisões recorridas no sítio eletrônico do STJ verifico que o Tribunal reclamado, com base nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que aplicara o art. 68 da Lei 12.651/2012 a fatos anteriores à sua vigência. Colho da ementa do ato reclamado:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 3/STJ. NOVO CÓDIGO FLORESTAL. FATO PRETÉRITO. PRINCÍPIO TEMPUS REGIT ACTUM. VEDAÇÃO DE RETROCESSO AMBIENTAL. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. O presente recurso atrai a incidência do Enunciado Administrativo 3/STJ: “Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC”.
2. Em matéria ambiental, deve prevalecer o princípio tempus regit actum, de forma a não se admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental.
3. ‘O novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da ‘incumbência’ do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1o, I)’ (AgRg no REsp 1.434.797/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 17/05/2016, DJe 07/06/2016)
4. Agravo interno não provido” (Agravo Interno no Recurso Especial 1.687.335/SP, de 5/4/2019 – grifei).
Entretanto, esta Suprema Corte, em reiteradas reclamações, tem considerado que o raciocínio adotado pelo STJ, fundado nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, acarreta burla à decisão proferida pelo Plenário desta Corte na ADC 42/DF e nas ADIs 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF.
Os mencionados paradigmas apreciaram diversos dispositivos da Lei 12.651/2012, entre eles o art. 68 do novo Código Florestal, que foi declarado constitucional, com efeitos ex tunc.
Por oportuno, transcrevo trechos de decisões proferidas em reclamações semelhantes:
“4. Como se denota dos excertos acima transcritos, quanto ao art. 15 da Lei 12.651/2012, esta Suprema Corte assinalou constitucional o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no percentual de Reserva Legal.
[…]
7. Da leitura da decisão de origem, verifico que o Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para aplicar à espécie os princípios do tempus regit actum e da vedação do retrocesso em matéria ambiental. Afastada, no ponto, norma ambiental que admite o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal do imóvel com base em fundamentos de ordem constitucional.
8. Nesse contexto, houve vulneração ao que decidido na ADI’s no 4.937, 4.903, 4.902 e na ADC no 42, bem como contrariedade à Súmula Vinculante no 10, uma vez definida a constitucionalidade da criação de regimes de transição entre marcos regulatórios em matéria ambiental. Lado outro, por força da decisão proferida no Agravo em Recurso Especial no 1.209.756, esvaziada a eficácia de dispositivos normativos julgados constitucionais por essa Suprema Corte.” (Rcl 42.711/SP, Rel. Min. Rosa Weber)
“Conquanto julgado improcedente o pedido em primeira e segunda instâncias, em sede de recurso especial o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela procedência das alegações autorais, pelo que negou vigência ao artigo 15 do atual Código Florestal, por entender impossível sua aplicação retroativa, consignando:
[…]
Dessa forma, nesta análise ainda perfunctória da controvérsia e sem prejuízo de um exame mais apurado do caso quando do recebimento das informações, entendo que o ato ora reclamado encontra-se em dissonância com os acórdãos proferidos por esta Suprema Corte nos julgamentos das ADI’s 4.109, 4.102, 4.103 e da ADC 42, na medida em que deixou de dar aplicabilidade retroativa às normas ambientais declaradamente constitucionais, em sentido oposto ao que já fixado neste Supremo Tribunal.” (Rcl 43.202-MC/SP Rel. Min. Luiz Fux)
“E, da análise dos autos, observa-se que as decisões do juízo de primeiro grau e do Tribunal de Justiça de São Paulo alinham-se a aquilo que decidido no controle concentrado de constitucionalidade pela CORTE, posição aparentemente desrespeitada pela decisão reclamada, posto que afastou a incidência da Lei 12.651/2012 (Novo Código Florestal), sob o fundamento de que em matéria ambiental, deve prevalecer o princípio tempus regit actum, de forma a não se admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental (doc. 23).
[…]
Inexiste, assim, uma questão legal e infraconstitucional de conflito de leis no tempo, a justificar solução final pelo Superior Tribunal de Justiça, considerando sua competência constitucional. Há, isto sim, recusa formal de aplicação de uma norma com eficácia retroativa sobre fato passado, apesar do reconhecimento, pela CORTE, da constitucionalidade das disposições.
Configura-se, assim, a ofensa ao decidido nas ADI 4901, 4902, 4903 e4937, bem como na ADC 42, de relatoria do Min. LUIZ FUX, eis que a decisão reclamada esvazia a eficácia dos dispositivos declarados constitucionais pela Suprema Corte.” (Rcl 42.889/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes)
“Por fim, destaco o seguinte trecho da manifestação do Procurador-Geral da República, que bem direciona o deslinde da questão veiculada nesta reclamação (eDOC 39, p. 11-13):
‘A manutenção do posicionamento adotado pela Corte Regional (e pelo Superior Tribunal de Justiça em vários julgados posteriores ao julgamento proferido na Suprema Corte), no sentido da aplicação do princípio tempus regit actum e do postulado da vedação do retrocesso em matéria ambiental, leva a um sério risco de perpetuação da judicialização do tema da aplicabilidade do Novo Código Florestal, gerando insegurança jurídica. Tendo sido já discutida a controvérsia pela Suprema Corte em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a discussão sobre a validade do dispositivo legal em questão está superada e sua aplicação ao caso é obrigatória.
[…]
Contata-se, assim, que o acórdão reclamado, ao afastar a aplicação do art. 62 da 12.651/2012, deixou de observar a autoridade das decisões desta Corte proferidas em sede de controle concentrado.” (Rcl 38.764/SP, Rel. Min. Edson Fachin)
“Desse modo, entendo que o ato reclamado, ao recusar a aplicação dos arts. 62 e 61-A do Código Florestal ao caso concreto, esvaziou a força normativa dos dispositivos legais em dissonância com a decisão vinculativa formalizada por esta Suprema Corte no julgamento das ADIs 4.901, 4.902 e 4.903, 4.937 e da ADC 42.” (Rcl 39.270/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes)
“5. No voto condutor do julgamento do acórdão reclamado, o Ministro Relator no Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.668.484 ressalvou seu entendimento pessoal e seguiu posicionamento da Turma daquele Tribunal para aplicar o princípio tempus regit actum para fazer incidir a Lei n. 4.771/1965 à espécie
[…]
Essa compreensão, entretanto, parece divergir do decidido por este Supremo Tribunal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 4.937, 4.903 e 4.902 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 42 quanto à legitimidade constitucional do Poder Legislativo para instituir ‘regimes de transição entre marcos regulatórios, por imperativos de segurança jurídica (art. 5o, caput, da CRFB) e de política legislativa (artigos 21, XVII, e 48, VIII, da CRFB)” (Rcl 43.703- MC/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia)
“Em juízo de estrita delibação, entendo que a autoridade reclamada,ao recusar aplicação ao art. 62 da Lei no 12.651/2012 no caso concreto com fundamento no “princípio do tempus regit actum” e do postulado da vedação do retrocesso em matéria ambiental, em 19/4/2018, esvaziou a eficácia normativa do referido dispositivo legal cuja validade constitucional fora afirmada pelo STF na ADI 4.903/DF e na ADC no42/DF (sessão de julgamento de 28/2/2018, ata de julgamento publicada no DJe de 2/3/2018).
[…]Por essas razões, entendo que há plausibilidade na tese de que o TRF3, ao recusar a aplicação do art. 62 do Código Florestal na solução do caso concreto, esvaziou a força normativa do dispositivo legal, recusando eficácia vinculante ao julgado pelo STF na ADI 4.903/DF e na ADC no42/DF” (Rcl 43.327-TP/SP, Rel. Min. Dias Toffoli)
Ademais, confiram-se os seguintes julgados de ambas as Turmas desta Corte:
“DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. APLICAÇÃO. CÓDIGO FLORESTAL. ADI 4.901. 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.901, reconheceu a constitucionalidade dos arts. 61-A e 62 do Código Florestal. De modo que a não aplicação desses dispositivos, sob o argumento de que o novo código não poderia alcançar fatos pretéritos, resulta no esvaziamento da eficácia da referida norma, cuja validade constitucional foi afirmada por esta Corte. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento.” (RE 1.051.404- AgR/SP, Rel. Roberto Barroso, Primeira Turma)
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL. LEI N. 12.651/2012. CÓDIGO FLORESTAL. APLICAÇÃO RETROATIVA. OBSERVÂNCIA DO DIREITO ADQUIRIDO E DO ATO JURÍDICO PERFEITO. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO AMBIENTAL. AFASTAMENTO DE NORMAS LEGAIS COM FUNDAMENTO EM NORMAS CONSTITUCIONAIS POR ÓRGÃO FRACIONÁRIO DO PODER JUDICIÁRIO: AFRONTA AO ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. CONTRARIEDADE À SÚMULA VINCULANTE N. 10 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.” (RE 1.216.014-AgR/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma)
Nesse contexto, entendo que a decisão reclamada afrontou os paradigmas invocados na exordial.
Isso posto, julgo procedente o pedido para cassar a decisão que deu provimento ao RESP 1.687.335/SP, assim como os acórdãos posteriores que a mantiveram, com observância ao entendimento firmado no julgamento da ADC 42/DF e das ADIs 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF.
Comunique-se, transmitindo-se cópia desta decisão ao STJ e ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Intime-se. Publique-se.
Ministro Ricardo Lewandowski
Relator