segunda-feira , 16 setembro 2024
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Boas práticas em conflitos envolvendo terras devolutas

por Ermiro Ferreira Neto.

 

Introdução

 

As terras devolutas correspondem a um dos mais intricados problemas do Direito Imobiliário brasileiro. Suas causas são antigas e remontam à formação histórica do país, ainda no século XV. As consequências, por sua vez, são graves e sentidas ainda no século XXI, colocando em risco a segurança jurídica de produtores rurais e do agronegócio em geral, principal setor da economia nacional.

A questão se coloca quando o particular pretende regularizar sua área, caso não disponha de título de terra regular, embora a ocupe há muitos anos, ou se o Poder Público postular o cancelamento de títulos regulares, sob a alegação de que se trata de terras públicas.

As diretrizes normativas para julgar os casos são colidentes. De um lado, deve o julgador atentar para a garantia da propriedade e da segurança jurídica – o que o levaria a tutelar os direitos do proprietário ou possuidor de terras, em face da pretensão do Poder Público de não reconhecer, ou mesmo tomar suas áreas. Por outro, porém, não poderá descurar da tutela do patrimônio público ou do interesse social sobre imóveis devolutos, dado que sua destinação deve ser “compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” (art. 188, Constituição Federal).

Neste artigo, inicialmente, expõe-se os principais problemas relacionadas às terras devolutas, com foco na formação fundiária do país e na omissão do Poder Público em cumprir a Lei de Terras. Em vista da complexidade de tais conflitos, e da dificuldade em generalizar soluções, propõe-se a adoção de boas práticas para solucioná-los, com vistas a contornar as principais dificuldades surgidas em casos com este objeto litigioso.

  

  1. Terras devolutas

A qualquer um causaria espanto, do dia para a noite, ter todo o seu dinheiro apreendido sob a alegação de que todos os valores pertenceram um dia ao Estado e não há provas de como tornaram-se patrimônio privado. Algo semelhante tem ocorrido no país, envolvendo imóveis rurais. Produtores e agroindústrias têm sido acionados em processos judiciais, sob a alegação de que suas áreas são terras devolutas, devendo ser restituídas ao Poder Público. Apesar da gravidade da controvérsia, poucos consensos foram construídos nas últimas décadas para fazer frente a este problema.

A questão confunde-se com a própria formação histórica do Brasil. A ocupação do território nacional deu-se, em um primeiro momento, a partir de capitanias hereditárias. Dada a enorme extensão do território, a Coroa Portuguesa, os capitães hereditários e depois o próprio governo brasileiro, optaram por ceder glebas de terra, por meio de cartas de sesmarias, aos particulares interessados em cultivá-la.

Sem que ocorresse a transferência da propriedade, as cartas de sesmarias caracterizavam-se como concessões públicas, embora de caráter perpétuo. A terra continuava como propriedade portuguesa, mas seu uso era transferido ao particular, juntamente com os “poderes majestáticos, políticos, de jurisdição e de governo ao donatário”[1].

A ocupação por meio das sesmarias contribuiu para a consolidação do território do país, atribuindo prerrogativas quase que estatais aos beneficiários das terras. Contudo, o regime não foi capaz de promover a ocupação e a produção, e menos ainda a sua distribuição ampla entre pequenos colonos. A lei das sesmarias, editada pelo Rei de Portugal D. Fernando I em 1375, dispunha que a ausência de uso das áreas rurais importaria na perda da concessão. Contudo, a adoção na colônia brasileira, a partir de 1530, não se fez acompanhar de nenhum controle, inviabilizando o assentamento de produtores e criando na prática enormes áreas sem utilização alguma[2].

Com isto, no Brasil, as consequências do regime das sesmarias se deram de modo diferente do que ocorreu em Portugal, onde foi possível obter uma distribuição mais equilibrada da terra, contribuindo para o seu efetivo cultivo. Consta que “enquanto em Portugal se buscava incremento da produção agropecuária, aqui [no Brasil] se buscava a ocupação do solo”. Além disso, o prazo da concessão contribuía para este estado de coisas porque “lá se dava em sesmaria por prazo certo (5 anos), enquanto aqui prazo não se marcava”[3].

Diante deste cenário, e da necessidade de ampliar o acesso à terra e incrementar o seu cultivo, o Imperador D. Pedro II editou em 1850 a Lei n. 601, conhecida como “Lei de Terras”. Por meio dela, as áreas que se achavam sem uso na data da sua edição, ou que não estivessem sob propriedade particular por força de título legítimo, ou sem ocupação, passaram a ser reconhecidas como terras devolvidas (“devolutas”) ao Estado, tornando-se áreas públicas[4].

Já àquela altura, o uso da terra enquanto ativo econômico do país encontrava-se restringido por força de inúmeros problemas de irregularidade fundiária. O regime das sesmarias, aplicável a um território de dimensões continentais como o Brasil, criou situações patológicas. Sem qualquer fiscalização, sesmeiros receberam terra, mas não deram a ela uso; por outro lado, posseiros realizaram ocupações em áreas que não foram objeto de cessão, embora nelas tenham empreendido atividades produtivas. Para corrigir estes impasses, a Lei de Terras teve como propósito “legalizar a situação de sesmeiros e concessionários inadimplentes e de legitimar a posse de posseiros sem título legal”[5].

Este ponto de vista, que atribui à Lei de Terras, a condição de uma resposta institucional ao caos fundiário que havia se tornado o país após mais de trezentos anos de regime de sesmarias tem sido ratificado pela pesquisa histórica. Segundo José Luís Cavalcante, “o país havia herdado do período colonial uma situação extremamente confusa sobre a questão da terra”, circunstância que, aliada à necessidade de substituir a mão de obra escravizada por trabalhadores remunerados, levou à Lei n. 601. A este aspecto, o autor acresce que “havia uma necessidade de ordenação jurídica, pois era necessário revalidar as concessões de sesmaria e legitimar a posse, prática que crescia desordenada no final do período colonial”[6].

Este ponto é relevante porque a Lei de Terras não pretendeu estatizar a propriedade privada, nem inviabilizar a atividade produtiva. A pesquisa histórica também ratifica este ponto ao concluir que não interessava ao Poder Público, àquela altura, ter terras, de modo que “[s]eria permitida a venda de todas as terras devolutas”[7]. Além disso, embora o seu elemento mais conhecido tenha sido a definição das áreas que eram públicas, deve-se ressaltar que somente poderiam ser assim consideradas quando não vinculadas a nenhum uso público (art. 5º, §1º), quando não estivessem sob domínio particular por qualquer título legítimo (§2º), nem tivessem sido decorrentes de cartas de sesmaria, mesmo que descumpridas (§3º) ou por qualquer tipo de posse, mesmo que sem título legítimo (§4º). Daí que, no plano da doutrina jurídica, confirma-se igualmente que as terras devolutas devem ser obtidas por exclusão, diante da ausência de uso por ocasião da edição da Lei de Terras e de transferência do patrimônio público para o particular posteriormente[8].

Vista sob este ponto de vista, a Lei de Terras tem algo de uma anistia fundiária. O próprio texto da legislação é fonte relevante para esta análise, conforme se extrai dos seus artigos 4º e 5º. O primeiro revalidou as sesmarias, garantindo a propriedade ao sesmeiro, mesmo que as condições previstas na carta de outorga da sesmaria tenham sido descumpridas; o segundo, legitimou a posse de área que não tenha sido objeto de outorga, desde que a gleba tenha sido cultivada e servisse de moradia.

Ao Poder Público, não importava obter para si terras que estavam sendo utilizadas para atividade produtiva. Ao contrário, a leitura atenta da legislação não deixa dúvidas de que o seu espírito está definido por dois marcos. Por um lado, no levantamento de informações sobre quais áreas encontravam-se ocupadas – e para tanto tem-se aí o embrião do Registro de Imóveis no país, por meio do sistema conhecido como “Registro do Vigário”, dado que as áreas deveriam ser registradas junto às igrejas (art. 13), possivelmente a instituição com maior capilaridade pelo país naquele momento. Por outro, na legitimação de toda ocupação que se revelasse minimamente útil e produtiva.

Segundo Paola Macedo, o “Estado pretendia conhecer quais terras não tinham donos nem ocupantes para que, em relação a elas, pudesse declarar-se dona a Nação”[9]. Mais de cem anos depois, o propósito do legislador encontra-se aparentemente em desacordo com as ações empreendidas pelo Poder Público, que ainda hoje não logrou êxito em realizar a discriminação das áreas públicas das áreas particulares[10], impede a regularização de áreas, e inviabiliza atividades produtivas pelo uso de medidas judiciais e administrativas a pretexto de defender as terras devolutas.

  1. Conflitos envolvendo terras devolutas: características

O reconhecimento da condição de área pública, em 1850, aliada à ausência de ações por parte do Poder Público para realizar a discriminação tempestivamente, explicam os problemas enfrentados quanto às terras devolutas, em pleno século XXI.

Tudo o que não estivesse ocupado ou, por título legítimo, sob propriedade privada, tornou-se área pública. Para discriminar o que era terra devoluta e o que era terra particular, a Lei de Terras já aludia à necessidade de medições e marcações, que deveriam ser realizadas pelo governo[11]. Sem que tenha sido realizada a discriminação prevista[12], e sem provas de se, à época da edição da lei, dada área já era ocupada ou encontrava-se sob patrimônio particular, largas porções de terra no país ainda encontram-se sob constrangedora insegurança a respeito de sua natureza pública ou privada.

O conjunto de casos atualmente relacionados às terras devolutas é bastante diverso. Tome-se três exemplos para ilustrar.

Existem situações em que imóveis são ocupados legitimamente, sem invasão de terra, há gerações, embora sem registro público. É comum que isto ocorra, por exemplo, em áreas contíguas a áreas que estejam regularizadas. Seja porque nunca houve oposição de quem quer que seja, ou mesmo por deficiências das tecnologias de georreferenciamento, o particular instalou-se na área, julga que lhe pertence, mas ela não se encontra formalizada junto ao Registro de Imóveis.

Em outras situações, as áreas têm inscrição imobiliária regular, não raro remontando à década de 20 ou 30 do século XX. Ainda assim, por considerar que não existem provas de que a parcela de terra já estivesse ocupada por ocasião da Lei de Terras, o ente público alega que não foi comprovado o “destaque do patrimônio público para o particular” (a expressão consagrou-se, dado o largo uso em processos com este objeto). O registro imobiliário, portanto, seria nulo já que não haveria prova do título que transferiu a área para um ente privado[13].

Por último, não se pode ignorar as situações de evidente ilegalidade, em que áreas públicas foram tomadas por meio de fraudes fundiárias, falsificações ou invasões violentas.

Em todas as hipóteses, é comum que o próprio Poder Público, ao logo de décadas, tenha concedido autorizações e licenças, reconhecendo a titularidade e a ocupação produtiva por meio de cadastros rurais. Porém, por não ter sido identificado destaque do patrimônio público para o particular, a União, Estados[14] ou mesmo o Ministério Público postulam a anulação completa do direito de propriedade. Isto ocorre por meio do bloqueio e do cancelamento de matrículas, ou pela negativa em outorgar anuência para procedimentos simples de usucapião, retificações de área ou averbação, junto ao Cartório de Registro de Imóveis, de poligonais de georreferenciamento.

Processos judiciais com este objeto são complexos sob o ponto de vista de sua gestão, e sofisticados, a se ter em conta a matéria controvertida.

A complexidade é inerente aos agentes envolvidos e à prova necessária para o julgamento da matéria. A alegação de terra devoluta, como referido, pode advir de estados ou da União – neste último caso, sob a representação do INCRA, na forma do art. 18 da Lei n. 6.383/76. A pretensão de cancelamento de matrículas imobiliárias exige a apresentação de prova de que a área é pública, por meio de laudos preparados pelos respectivos técnicos dos entes estatais, após análise fundiária profunda e exame dos títulos.

É comum que nestes processos judiciais as informações a respeito da titularidade, no âmbito dos órgãos públicos, encontrem-se desatualizadas. Inicialmente, o réu indicado é uma única pessoa ou um grupo pequeno de proprietários. Com a identificação de que os imóveis originais foram desmembrados, com posterior alienação ou constituição de direitos em favor de terceiros (decorrente de promessa de compra e venda ou de direitos reais de garantia, por exemplo), o pólo passivo passa a ser ocupado por dezenas de novas partes, na qualidade de litisconsortes passivos[15].

Do mesmo modo, diz-se que casos envolvendo terras devolutas são sofisticados porque as questões jurídicas em debate não são triviais. Apenas para ilustrar, pode-se citar:  (i) o levantamento de normas federais e estaduais, e sua aplicação no tempo, para avaliar seus efeitos sobre a ocupação do imóvel tido por devoluto; (ii) o exame de prova produzida a respeito do período da ocupação ou da propriedade da área, considerando o quanto disposto pela Lei de Terras e pelas legislações estaduais, a força probatória de registros históricos, informações obtidas em livros paroquiais e demais evidências; e (iii) a avaliação da boa-fé dos proprietários, à luz da cadeia de titularidade dos imóveis, e seus possíveis efeitos quanto a aquisição de imóvel de natureza supostamente pública.

Cada uma destas questões merece a reflexão profunda por parte dos julgadores, sobretudo a se ter em conta os direitos envolvidos em tais conflitos. De um lado, tem-se o direito de propriedade do titular da área, que a explora economicamente e detém a prerrogativa de obter do Poder Judiciário a proteção do seu patrimônio. De outro, contudo, tem-se a alegação sobre a tutela do interesse e do patrimônio público, potencializados em casos em que a área é reivindicada por grupos sociais hipossuficientes como indígenas, quilombolas ou beneficiários de programas de reforma agrária.

 

  1. Boas práticas

À luz destas circunstâncias, a experiência recomenda a observância de algumas diretrizes de boas práticas, adotadas em casos envolvendo terras devolutas. Estas diretrizes não dizem respeito à solução dos processos judiciais, mas sim à sua condução de modo a superar do melhor modo possível as questões que costumam surgir, permitindo um melhor julgamento.

3.1. Controle de legitimidade ativa

A alegação a respeito de terras devolutas tem como pressuposto a circunstância de que elas são áreas públicas.

Desde a Constituição de 1891 as terras devolutas inseridas no território dos estados pertencem a estes entes (art. 64). O regime constitucional atual confirma esta divisão, prevendo como bens dos estados “as terras devolutas não compreendidas entre as da União” (art. 26, IV, Constituição Federal). À União, restaram as terras devolutas “indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei” (art. 20, II, Constituição Federal).

Apesar desta partilha, na prática é comum que o controle sobre a ocupação destas áreas seja realizado pelo INCRA. Ao receber pedidos de alteração ou emissão de Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), a autarquia federal examina indícios de uso indevido de terra devoluta. Agindo deste modo, embora seja representante da União nos processos de discriminação, é ela quem apresenta subsídios aos órgãos fundiários estaduais para que as ações judiciais sejam propostas.

Este cenário recomenda o controle rigoroso da legitimidade ativa para estas ações.

Como se sabe, a legitimidade processual é definida em tese, a partir da relação de direito material afirmada nos autos. Portanto, apenas pode postular a discriminação de terras devolutas, ou o cancelamento de matrículas imobiliárias, o ente público titular, em tese, do imóvel objeto da controvérsia. O Juízo deve requerer esclarecimentos quanto a esta relação de direito material, sempre que ocorrer dúvidas, sobretudo se a alegação decorrer de análise técnica do INCRA.

Em uma disputa fundiária entre particulares, por exemplo, não é possível que uma das partes suscite a condição de terra devoluta para impedir uma usucapião ou uma reintegração de posse. Não há, neste caso, legitimidade ativa para suscitar este fundamento, sobretudo a se ter em conta que apenas o ente público competente detém as informações técnicas a respeito das discriminações já realizadas para considerar uma dada área como devoluta.

Por outro lado, é igualmente comum que o Ministério Público seja a parte autora de medidas judiciais relacionadas a terras devolutas. A legitimidade aqui também deve ser controlada porque não se pode pressupor que estes conflitos envolvam “interesses sociais ou individuais indisponíveis” (art. 127, Constituição Federal).

Sobre o ponto, é certo que o Superior Tribunal de Justiça considera que “O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público” (Súmula 329), que integraria direito difuso de toda a sociedade. Em ao menos um caso, já se deu interpretação ampla à súmula para considerar existente a legitimidade do Parquet para tutelar terras devolutas. Trata-se do REsp 1227965/SC, julgado pela Segunda Turma em 02/06/2011, relatado pelo Ministro Herman Benjamin.

O caso, porém, contém particularidades que não permitem generalizá-lo. Na origem, o Ministério Público ingressou com ação civil pública contra o Estado de Santa Catarina, o INCRA e particulares, buscando obter o reconhecimento da ilegalidade quanto ao pagamento de desapropriação promovida pela autarquia federal. O fundamento da ação estava no fato de que a área desapropriada já seria pública, em vista da condição de terra devoluta localizada na fronteira. Ao julgar o recurso especial, a Segunda Turma reconheceu a legitimidade do Ministério Público.

Veja-se, porém, que a legitimidade no caso pressupõe a tutela do patrimônio público não apenas quanto ao imóvel alegadamente público, mas sobretudo em razão da pagamento dispendido pela União – e que não precisaria ter sido feito por força da condição de terra devoluta. Além disso, na ação civil pública mencionada o estado e o INCRA foram incluídos como réus, em razão da omissão quanto a questão de direito, decorrente de a área desapropriada encontrar-se em região de fronteira e por força disso ser área devoluta (art. 20, II, Constituição).

Ao contrário do que se vê a partir desses elementos, são inúmeros os casos em que não há nenhuma disputa quanto a área, mas apenas a alegação por parte do ente público de que o imóvel seria supostamente público. Tratando-se de alegação de direito de propriedade do Poder Público, e sem que tenha existido omissão relevante por parte do ente na busca de tutela de seu patrimônio, não é possível atribuir legitimidade ao Ministério Público nestas situações. Se não há interesse coletivo, como em situações envolvendo grupos hipossuficientes, nem omissão estatal, não se justifica a atuação do órgão ministerial.

Nesta linha, o mesmo Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de decidir que o Ministério Público deve intervir obrigatoriamente em feito onde se discute o descumprimento de condição em título de terra devoluta, existindo indícios de que a área é de “tradicional ocupação indígena”[16]. De igual modo, é conhecido o entendimento segundo o qual “o terreno localizado em faixa de fronteira, apenas por essa circunstância, não é considerado de domínio público, sendo ônus do Estado comprovar a titularidade pública do bem”[17]. Para manter sua própria jurisprudência coesa, portanto, deve-se reconhecer que, havendo apenas alegação de titularidade pública da área, sem pretensão de tutelar direitos sociais, mormente se a matéria exigir exame técnico e o ente competente já o realizou, reconhecer a legitimidade do órgão ministerial significaria usurpar a autoridade do estado, sem nenhum benefício ao interesse público.

O exame da legitimidade ativa, naturalmente, é um dever do Juízo em toda e qualquer ação judicial. Em conflitos envolvendo terras devolutas, porém, este controle assume dimensão importante, já que fixa com que órgão público o interessado deverá manter interlocução. Com isto, esta prática estimula soluções de consenso, ou no mínimo ratifica quais são as autoridades competentes para receber documentos ou esclarecimentos sobre a área, em vez de estabelecer este tipo de diálogo apenas no ambiente litigioso dos autos.

3.2. Estímulo a soluções consensuais

 

Em conflitos envolvendo terras devolutas deve haver estímulo para a busca de soluções consensuais.

Esta boa prática decorre não apenas do dever previsto no art. 3º, §3º do Código de Processo Civil, como das experiências envolvendo casos desta espécie. Circunstâncias como a complexidade da controvérsia e o longo tempo de espera para uma solução definitiva reforçam a conveniência da autocomposição.

Exemplo eloquente disto pode ser encontrado na Resolução 510/2023 do Conselho Nacional de Justiça. Ao disciplinar a Comissão Nacional de Soluções Fundiárias e as Comissões Regionais de Soluções Fundiárias, considerou-se que conflitos fundiários, o que inclui as situações envolvendo terras devolutas, requerem uma política de tratamento adequado destes litígios. Uma das medidas previstas, quanto a este ponto, é a “interlocução, realizada pelas comissões regionais, com o juízo no qual tramita eventual ação judicial, com os Centros Judiciários de Solução de Conflitos (Cejusc) e Centros de Justiça Restaurativa, sobretudo por meio da participação de audiências de mediação e conciliação agendadas no âmbito de processo judicial em trâmite no primeiro ou segundo grau de jurisdição” (art. 1º, §4º, inc. V).

Para tanto, o Juízo onde tramita a ação “fará a remessa dos autos para a estrutura administrativa de apoio à Comissão, sem prejuízo da ciência do conflito pelas comissões regionais por mera comunicação de qualquer uma das partes ou eventuais interessados” (art. 4º). A comissão, então, atuará para mediar o conflito (art. 13).

Como estas disputas abrangem áreas supostamente públicas, a solução de consenso não deverá ser a simples conciliação entre a parte e o representante do ente público. Se, de ato, for identificado fraude no registro de imóveis, ou o uso ilegal de terra devoluta, e desde que haja boa-fé dos atuais ocupantes, é possível obter a regularização fundiária fora do Poder Judiciário, em vez de simplesmente aguardar o desfecho de um longo processo judicial.

Em cada um dos estados há disciplina específica para a regularização das ocupações. Usualmente, isto poderá ocorrer pela concessão de direito real de uso, ou pela alienação efetiva da área pública, seja a título gratuito, seja a título oneroso, mimetizando os mesmos instrumentos existentes em nível federal para a regularização das ocupações em área da União[18]. A este arcabouço se somam as comissões de soluções de conflitos fundiários, com participação do Poder Executivo, do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Em ações envolvendo terras devolutas, a experiência recomenda valer-se destes mecanismos. Tanto a conciliação obrigatória (art. 334, Código de Processo Civil) pode ter lugar neste âmbito específico, como poderá o Juízo buscar, com a cooperação das partes envolvidas, suspender o feito para que ocorram tratativas junto a tais órgãos (art. 313, II, Código de Processo Civil).

 

3.3. Fixação do ônus da prova e fé pública registral

 

Outra prática essencial diz respeito à fixação do ônus da prova em conflitos envolvendo terras devolutas.

A postulação do ente público objetiva a invalidação da propriedade exercida pela parte requerida, supostamente em razão de a área não ser privada, mas sim pública. Pretensões com este perfil, ao fim, buscam cancelar a matrícula imobiliária.

Nesta hipótese, a fixação do ônus da prova não pode se afastar da premissa segundo a qual ao autor incumbe comprovar o “fato constitutivo de seu direito” e ao réu “o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor” (art. 373, Código de Processo Civil). Se o ente público entende que o imóvel é público, e por isto lhe pertence, a ele cabe a prova para tanto.

A distribuição do ônus, ademais, deve levar em consideração a existência de registro da propriedade junto ao Cartório de Registro de Imóveis. O registro constitui o direito de propriedade e esta prerrogativa somente pode ser afastada a partir da anulação do título (art. 1.245, §2º, Código Civil).

Uma vez inscritas, as informações constantes da matrícula têm fé pública. Extrai-se esta consequência a partir do citado art. 1.245, §2º do Código Civil, na medida em que o proprietário de um imóvel apenas deixa de sê-lo a partir da alteração desta condição junto ao Cartório de Registro de Imóveis.

Esta característica tem especial efeito para a tutela da segurança jurídica e da confiança de terceiros no sistema registral. De acordo com Francisco Loureiro, a fé pública registral garante que “a existência do direito registrado ou a inexistência do direito cancelado prevalecem absolutamente em relação ao terceiro de boa-fé que, confiando nos assentos do Registro de Imóveis, celebrou o negócio jurídico com o titular aparente”. Aquele que, confiando nesta presunção de veracidade, celebra negócio envolvendo imóvel inscrito junto ao Registro de Imóveis, “deve ser protegido em sua aquisição ainda quando haja inexatidão ou nulidade no registro”[19].

Este bloco de normas, em conjunto, estabelece um standard importante para conflitos envolvendo terras devolutas, mas nem sempre observado pelo Poder Público ou por julgadores. A presunção de fé pública nas informações registrais, aliada à regra geral de ônus da prova, impõe a quem postula a anulação do direito de propriedade sobre um imóvel o dever de produzir prova acima de dúvida razoável a respeito deste ponto.

Em linha com a interpretação proposta acima, há número relevante de casos no âmbito dos tribunais superiores. Em julgado de 1976, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que “Cabe ao Estado o ônus da prova de que a gleba é terra devoluta”[20]. Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça consolidou seu entendimento nesta mesma direção, como já referido: “A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça tem firmado sua orientação no sentido de que o terreno localizado em faixa de fronteira, apenas por essa circunstância, não é considerado de domínio público, sendo ônus do Estado comprovar a titularidade pública do bem”[21].

Esta posição foi firmada no julgamento de ações de usucapião. Nestes casos, o particular pretende obter o reconhecimento de que se tornou proprietário de uma área, em razão do exercício da posse após o decurso do prazo previsto para as diversas modalidades de usucapião. Se, ao ser intimado, o Estado alega que o imóvel é terra devoluta e, portanto, público, o ônus da prova quanto a este fato é seu[22].

Mesmo não havendo inscrição imobiliária da área, esta circunstância não significa que a área seja automaticamente devoluta. Ainda que sem registro, é possível que a área esteja sob regime de direito privado[23]. Este é o caso, por exemplo, de áreas cujas inscrições imobiliárias foram destruídas por força de incêndios ou enchentes, algo que não é incomum[24].  Este ponto é também ratificado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[25].

Alega-se, contudo, que em ações de discriminação o ônus de provar que a terra não é devoluta seria do particular. Este ponto costuma ser suscitado pelo Poder Público com base no procedimento da ação discriminatória, que exige do particular que apresente os documentos que comprovam sua propriedade (art. 4º, Lei n. 6.383/76). Nesta mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça já considerou que “cabe ao particular o ônus de provar o domínio em ação discriminatória de terras devolutas, uma vez que a demonstração de dominialidade realiza-se por exclusão: são de domínio público todas as terras, exceto aquelas relativamente às quais o particular cabalmente comprove a presença de cadeia registral válida e regular”[26].

As posições da Corte quanto às ações discriminatórias e ações de usucapião criam um aparente antagonismo que deve ser examinado com cuidado.

Não há fundamento para uma distribuição distinta no ônus da prova, conforme seja um procedimento ou outro. Na usucapião, se o Poder Público se opõe à pretensão do usucapiente, incumbe a ele demonstrar o fato extintivo do direito do autor porquanto a área seria pública, e insuscetível de ser usucapida. Na discriminação, se o imóvel do particular não se encontra inscrito regularmente no registro de imóveis, isto não exclui o dever do ente estatal comprovar a condição de terra devoluta.

Certamente nesta segunda hipótese, a ausência de inscrição deverá ser examinada pelo julgador como mais um elemento de prova, mas não o único, à luz das demais informações que sejam prestadas pelo Poder Público. O fato é que não se deve afastar a regra ordinária de distribuição do ônus da prova em nenhum dos casos. Para Arruda Alvim, seja em ação de usucapião, seja em qualquer outro procedimento, a prova de que uma área é devoluta é de responsabilidade do Poder Público[27].

Especificamente na hipótese em que, em ação discriminatória, o particular apresente os títulos pelos quais adquiriu a terra, mesmo a posição a respeito da inversão do ônus da prova não é incompatível com a presunção registral de que a área é privada.

Citado na ACO 158, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, Donaldo Armelin, por exemplo, considera que na ação discriminatória “impende ao réu provar a natureza privada de seu domínio, seja pela exibição de título de domínio em face da alegação do domínio público, seja por haver adquirido esse domínio através das formas admissíveis de usucapião, demonstrando cabalmente todos os requisitos para tanto exigidos pelo sistema jurídico”. Uma vez apresentados os documentos registrais, contudo, “a presunção de existência de domínio público em relação às áreas não tituladas, cede passo àquela emergente do título dominial formalmente perfeito, quanto à natureza privada do domínio”[28].

No mínimo, portanto, o debate sobre o ônus da prova em ações discriminatórias pode ser compatibilizado da seguinte forma: (i) em ações discriminatórias há a obrigação de o particular apresentar o título e demais documentos que comprovam a propriedade; (ii) uma vez apresentados, se ainda assim o ente público pretender anular o registro, cancelando a matrícula, deverá o julgador atentar para a distribuição do ônus da prova e a presunção de fé pública registral; (iii) neste caso, incumbirá ao ente público a prova de que o título é nulo e que o imóvel dever ser considerado terra devoluta.

Em conflitos relacionados a terras devolutas, a ausência de observância deste ponto pode levar a resultados desastrosos. A interpretação inadequada do acórdão proferido no julgamento no AgInt no REsp 1308652 / MG, tomando-o como um precedente na linha de que o ônus de provar que a área não é pública seria do particular, pode levar a conclusão equivocada. É indiscutível que o particular deve, em ações discriminatórias, apresentar os documentos que comprovam sua propriedade; após, se ainda assim o ente público considera que a área é pública, será ônus seu comprovar a eventual fraude, sob pena de retirar-se todos os efeitos da fé pública registral.

Disto decorre, por exemplo, que a tese da ausência de destaque do patrimônio público para o particular, frequentemente utilizada pelo Poder Público, encontra-se em desacordo com a regra do ônus da prova. Uma vez que o particular apresente títulos e registros imobiliários regulares, é o ente público quem deve provar eventual irregularidade em tais documentos, à luz da fé pública dos atos registrais.

Esta boa prática não desconsidera a possibilidade de fraudes registrais, que de fato devem ser combatidas pelos entes públicos. A proposta, porém, traça um ponto de partida: existindo inscrição imobiliária, é o Poder Público quem deve provar a condição de terra devoluta. Trata-se de prova viável e que pode ser alcançada a partir da análise de cadastros públicos, auditorias fundiárias e exames de cadeias de titularidade.

3.4. Avaliação cuidadosa do bloqueio da matrícula

 

Um último cuidado deve ser tomado com relação ao pedido de bloqueio da matrícula, comum em casos envolvendo terras devolutas.

Conforme dispõe a Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), a matrícula poderá ser bloqueada “Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação” (art. 214, §3º). Sob este fundamento, pedidos de bloqueio são formulados a título de tutela de urgência no curso de medidas judiciais ou administrativas que tenham por objeto terras devolutas.

O bloqueio da matrícula tutela igualmente quem se afirma proprietário (no caso das terras devolutas, o ente público), como terceiros que venham a ter direitos sobre o imóvel sob discussão. Uma vez que a sua alienação, ou a constituição de direitos reais, pode causar mais insegurança diante da perspectiva de a área ser considerada pública, impedir que sejam realizados novos registros “congela” a situação de fato até que as alegações sejam apuradas.

Quanto ao propósito do bloqueio, a doutrina é unânime ao afirmar que este instrumento não pode ser considerado um fim em si mesmo[29]. Buscando pela sua raiz, já se disse que “o bloqueio de matrícula, inicialmente sem previsão legal, tem origem no direito alemão com função acautelatória para impedir que assentos com certo grau de contradição viessem a causar maiores danos a terceiros”[30].

No Brasil, a doutrina costuma indicar que a aplicação do bloqueio se deu por criação pretoriana, embora exista divergência sobre quem foi o efetivo criador. Encontra-se referência aos juízes Ricardo Henry Marques Dip e José Renato Nalini, posteriormente alçados a desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ao assumirem a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo/SP teriam regulamentado o procedimento, com vistas a evitar a coexistência de registros realizados em circunscrição incompetente ou em duplicidade[31]. Segundo Marcelo Paulo Almeida, porém, a real origem estaria na jurisprudência da Corregedoria daquele mesmo tribunal, que antes mesmo da Lei de Registros Públicos, adotava a “prática de proibir que se promovam quaisquer atos de registro ou averbação na matrícula bloqueada até seja sanada a irregularidade” objeto de apuração[32].

À parte a sua origem, posteriormente o mecanismo foi introduzido na Lei de Registros Públicos pela Lei n. 10.931/2004. Ampliou-se a sua aplicação para qualquer situação em que o julgador considere que novos registros podem causar danos de difícil reparação.

Dada esta amplitude, a conveniência do bloqueio deve ser examinada com cuidado. A experiência mostra que a pretexto de tutelar a segurança jurídica, são muitos os casos em que esta medida torna-se gravosa demais, sem nenhum benefício para o próprio ente público ou para terceiros. Tome-se, também aqui, três exemplos reais.

Existem situações em que a área objeto da controvérsia vem sendo utilizada há muitos anos para a realização de atividade produtiva. Por força disso, sobre ela constam garantias em favor de terceiros que financiam a atividade, como hipoteca ou alienação fiduciária. De igual modo, o Poder Público, por meio de órgãos fundiários e ambientais, reconhece a propriedade e conferiu, ao longo do tempo, as licenças necessárias ao seu titular.

Em outros casos, não há qualquer conflito sobre a titularidade da área entre vizinhos, ou entre o titular e grupos indígenas, quilombolas ou de movimentos sociais.

Outra hipótese comum ocorre se o pedido é formulado pelo Ministério Público (cujo controle de legitimidade ativa deve ser adotado como boa prática), sem que o ente público interessado tenha apresentado manifestação a respeito da possível condição de terra devoluta.

Em cada um destes exemplos, vê-se que o bloqueio da matrícula inviabiliza a atividade produtiva. Não raro, esta gravíssima consequência ocorre sem que sequer o ente interessado tenha realizado a discriminação ou tenha sequer alegado a condição de terra devoluta. Nestes casos, deve-se ter presente que, embora trate-se de medida de acautelamento, o bloqueio é ferramenta “excepcionalíssima já que ao retirar do comércio ativo imobiliário configura medida de índole notadamente contra-econômica”[33].

Convém, portanto, que o uso do bloqueio da matrícula seja prudente, sabendo-se das consequências danosas ao próprio proprietário e a terceiros de boa-fé. É possível, em certos casos, atingir o mesmo objetivo com menos dano.

Antes do bloqueio, por exemplo, é recomendável que se estabeleça o contraditório. Embora o deferimento do bloqueio sem oitiva da parte contrária tenha previsão no próprio art. 214, §3º da Lei de Registros Públicos, a boa prática a respeito do ônus da prova recomenda que o julgador colha a manifestação do proprietário e demais titulares de direito que serão afetados pela medida.

Nesta oportunidade, será possível trazer aos autos os documentos fundiários da área em discussão. Como visto, sob a regra do ônus da prova sob a luz da fé pública registral, a existência destes documentos e, de outro lado, a ausência de prova acima de dúvida razoável por parte do ente público, permitirá ao julgador ter uma melhor visão sobre o caso e sobre a conveniência do bloqueio da matrícula.

O estabelecimento do contraditório também garante a observância da fé pública registral como standard de prova. Se, como dito, há presunção de veracidade das informações constantes do registro, é importante obter tais informações antes da realização do bloqueio da matrícula.

Sobre este ponto, deve-se adotar por analogia o que dispõe o art. 1º, §1º da Lei n. 6.739/69. Ao tratar do cancelamento de matrículas de imóveis rurais, que corresponde ao ambiente comum das terras devolutas, a norma exige “provas irrefutáveis” para tanto. Uma vez que o bloqueio pretende antecipar, em certa medida, os efeitos do cancelamento, parece razoável exigir-se, de igual modo, standard probatório acima da média, dada a gravidade da medida e o afastamento, sem cognição exauriente, da fé pública registral.

Ainda assim, caso existam, de fato, elementos probatórios mínimos na pretensão do Poder Público, o bloqueio poderá também ser substituído pela averbação premonitória da ação ou procedimento administrativo que discute a irregularidade da matrícula. Veja-se que aqui haverá a tutela da segurança jurídica, já que a informação a respeito da controvérsia constará da matrícula, mas sem a proibição da prática de atos registrais na matrícula do imóvel.

Mesmo a averbação, contudo, deve ser acompanhada de prova mínima sobre a situação de terra devoluta, ainda que os elementos, neste momento, não sejam fortes o suficiente para o bloqueio. Deve-se ponderar que, mesmo a averbação, na prática, criará embaraço ao uso do imóvel, já que financiadores ou eventuais interessados poderão sentir-se inseguros em realizar negócios que tenha por objeto área controversa.

Por fim, mesmo em caso de bloqueio, não é recomendável que o imóvel tenha a sua exploração econômica inviabilizada por prazo indefinido. A experiência mostra que casos envolvendo terras devolutas levam décadas para serem julgados. Fora do comércio jurídico, e sem segurança para a realização de investimentos, áreas nesta condição tendem a desvalorizar-se até perderem completamente seu valor.

Para fazer frente a este efeito adverso, é também prudente que o Juízo estipule prazo para o bloqueio, ainda que ele possa ser renovado, caso necessário. Esta medida encontra respaldo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Em linha com esta preocupação, já se disse que “o bloqueio da matrícula é ato de natureza provisória, a ser tomado no âmbito de um procedimento maior, no qual se discuta a nulidade do registro público”. Resulta daí que “o bloqueio da matrícula, por si só, não pode prevalecer indefinidamente”[34].

Conclusão

 

O Poder Judiciário não deveria se ocupar de julgar casos envolvendo terras devolutas. A existência de inúmeros casos pendentes sobre este tema é prova chocante de omissão do Poder Público, em todas as instâncias que se relacionam com os temas fundiários.

Dado o quadro real, porém, e a necessidade de dar solução definitiva a estas controvérsias, é essencial que os juízos competentes desenvolvam e disseminem boas práticas. Temas como o controle de legitimidade, o estímulo à solução de consenso, o standard probatório e o bloqueio da matrícula podem contribuir para a criação de padrões decisórios, viabilizando soluções mais justas.

Um absurdo não justifica outro: se é inacreditável que proprietários sejam assombrados com questionamentos sobre seus imóveis baseados em uma lei de 1850, não se deve dar em resposta julgamentos desconectados da realidade ou motivados pela mera dúvida sobre o passado de uma gleba de terra. Racionalizar a solução destas controvérsias é essencial para adequar a conduta do Poder Público e garantir segurança jurídica para o agronegócio brasileiro.

Notas:

[1] SILVA, Ângela. Terras devolutas. Revista de Direito Imobiliário, v. 14/1984, dez.1984, p. 42 – 82.

[2] ALVARENGA, Octávio Mello. Teoria e Prática do Direito Agrário. Rio de Janeiro: Consagra, 1979, p. 23.

[3][3] GUGLIELMI, Vito José. As terras devolutas e seu registro. Revista de Direito Imobiliário, v. 29/1992, jan/jun.1992, p. 86-114.

[4] SILVA, Ângela. Terras devolutas. Revista de Direito Imobiliário, v. 14/1984, dez.1984, p. 42 – 82.

[5] MACEDO, Paola de Castro Ribeiro. Regularização registral de terras devolutas e discriminação de terras. In: SCAFF, Fernando Campos; KUMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Regularização fundiária rural. São Paulo: YK Editora, 2022, p. 94.

[6] CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Revista Histórica, São Paulo, v. 2/2005, p. 1-8. O autor destaca os papéis de José Bonifácio e Diogo Feijó na formulação das primeiras ideias a respeito da necessidade de distribuição e organização da ocupação das terras no país.

[7] CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Revista Histórica, São Paulo, v. 2/2005, p. 1-8.

[8] Segundo Marçal Justen, qualificam-se deste modo os imóveis que, na data da vigência da Lei 601, “não se encontravam nem (a) afetados ao desenvolvimento de atividades estatais nem (b) sob a posse privada, não receberam uma outra qualificação jurídica posteriormente”. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo [livro eletrônico]. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

[9] MACEDO, Paola de Castro Ribeiro. Regularização registral de terras devolutas e discriminação de terras. In: SCAFF, Fernando Campos; KUMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Regularização fundiária rural. São Paulo: YK Editora, 2022, p. 95.

[10] A discriminação para apartar as terras públicas das particulares não chegou a ser levada a efeito. Pode-se intuir as enormes dificuldades tecnológicas e institucionais para uma tal tarefa no século XIX, considerando as dimensões do território nacional, e mais ainda a se ter em conta que mesmo no século XXI este intento ainda não foi concluído. Ao tratar do tema, José Luiz Cavalcanti, citando outros estudos, conclui que “a Lei de 1850 e sua regulamentação em 1854 foram um fracasso. Poucas sesmarias foram revalidadas ou posses foram legitimadas, conforme exigia lei. O governo imperial abandonou a inspeção de terras públicas em 1878, depois de ter realizado pouquíssimo para impor a lei”. CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Revista Histórica, São Paulo, v. 2/2005, p. 1-8. Também assim: “Não surtiu a Lei de 1850 o efeito desejado. Nesse particular, o Império se mostrou inferior as necessidades do pais. ‘Teve – assinala Amaro Cavalcanti [Elementos de Finanças, Rio de Janeiro, 1896, n. 31, p. 107] – uma Repartição Geral das Terras Publicas, por espaço de mais de 30 anos, com a qual se despenderam grandes e constantes somas; as suas comissões técnicas, para o fim de demarcar as terras do Estado e dar-lhes conveniente destino, foram dispendiosas e frequentes; e com tudo isso, nunca houve na Repartição Central sequer um mapa ou inventario completo, do qual constassem todos os lotes já demarcados, com a indicação de seu destino, isto e, se tinham sido vendidos, dados gratuitamente, concedidos a empresas ou reservados a algum mister do publico serviço’”. LIMA, Ruy Cirne. Pequena Historia Territorial do Brasil, Sesmarias e Terras Devolutas, Edição Sulina, 2. Ed, p. 73.

[11] Art. 7º. O Governo marcará os prazos dentro dos quaes deverão ser medidas as terras adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que estejam por medir, assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a medição, attendendo ás circumstancias de cada Provincia, comarca e municipio, o podendo prorogar os prazos marcados, quando o julgar conveniente, por medida geral que comprehenda todos os possuidores da mesma Provincia, comarca e municipio, onde a prorogação convier.

(…)

Art. 9º Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará proceder á medição das terras devolutas, respeitando-se no acto da medição os limites das concessões e posses que acharem nas circumstancias dos arts. 4º e 5º. Qualquer opposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a medição; mas, ultimada esta, se continuará vista aos oppoentes para deduzirem seus embargos em termo breve. As questões judiciarias entre os mesmos possuidores não impedirão tão pouco as diligencias tendentes á execução da presente Lei.

Art. 10. O Governo proverá o modo pratico de extremar o dominio publico do particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução ás autoridades que julgar mais convenientes, ou a commissarios especiaes, os quaes procederão administrativamente, fazendo decidir por arbitros as questões e duvidas de facto, e dando de suas proprias decisões recurso para o Presidente da Provincia, do qual o haverá tambem para o Governo.

[12] É digno de registro a sucessão de leis que trata do processo de discriminação, sem que isto tenha se feito acompanhar de ações efetivas por parte do Poder Público para a sua promoção. Inicialmente, tratou da matéria o Decreto-Lei 9.760/46. O decreto veio a ser revogado pela Lei federal 3.081/56, que aboliu o processo discriminatório administrativo para admitir apenas a discriminação judicial. Após, o Estatuto da Terra (Lei federal 4.504/64) restaurou a discriminação administrativa quanto a terras devolutas federais (art. 11), mantida a via judicial para a discriminação de terras devolutas estaduais. Atualmente, a Lei 6.383/76 prevê a discriminação, por meio de procedimento administrativo ou judicial, tanto para as terras devolutas estaduais quanto para as federais.

[13] Este é o caso, por exemplo, do que ocorre em terras localizadas na região do Pontal do Paranapanema, conforme testemunho dos advogados Miguel Flora, Coraldino Vendramini e Renato Lopes: “O Pontal do Paranapanema está localizado no extremo oeste do estado de São Paulo, na divisa entre os estados do Paraná e de Mato Grosso do Sul. A região é conhecida nacionalmente por questões fundiárias, de grilagens e de seguidas invasões de propriedades. No meio disso tudo está o Estado de São Paulo, sustentando que as terras são devolutas, e que os registros imobiliários em nome dos particulares estão eivados de vício insanável na origem da filiação dominial. A situação da região é diferente de outras regiões do Brasil, pois quase todos os imóveis estão devidamente registrados nos Cartórios de Registros de Imóveis.” FLORA, Miguel de Oliveira; VENDRAMINI, Coraldino; LOPES, Renato Maurilio. Dever do Estado em indenizar proprietários de terras pelo cancelamento do registro. Conjur, 25/08/2023. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2023-ago-25/opiniao-cancelamento-registro-imobiliario-terras-devolutas/>. Acesso em: 24/08/2024.

[14] A Constituição de 1891 atribuiu aos estados as terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios: Art 64 – Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.

[15] Exemplo disso ocorreu nos autos da ACO 158, apenas julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2020 – 62 anos após a sua distribuição. A área em disputa, tida pela União como de dominialidade federal, limitava-se a 11 títulos de posse. Nela, porém, foram construídos bairros em que residiam mais de 4000 pessoas quando do seu julgamento. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mar-12/62-anos-stf-nega-posse-uniao-terras-devolutas/>. Acesso em: 24/08/2024.

[16] REsp 934.844/AM, rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, j. 19/10/2010.

[17] AgInt no REsp n. 1.508.890/RS, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 11/2/2020, DJe de 18/2/2020.

[18] Lei 11.952/2009, com a sua atual redação dada pela Lei n. 13.465/2017.

[19] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos – teoria e prática. São Paulo: JusPodivm, 2017, p. 579.

[20] RE 86.234, rel. Min. Moreira Alves, j. 12/11/1976.

[21] AgInt no REsp n. 1.508.890/RS, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 11/2/2020, DJe de 18/2/2020.

[22] “As terras que nunca foram da União, do Estado-membro ou do Município, nem dos particulares, são terras sem dono, terras res nullius, terras adéspotas. Podem ser objeto de posse, no sentido privatístico, ou em via de ser usucapidas. Não entram no rol das terras devolutas definidas no Dec.-lei 9.760/1946, de modo que não é de invocar-se a respeito delas o art. 200 do Dec.-lei 9.760/1946. Se alguém as possui ad interdicta ou ad usucapionem e o Estado afirma que são terras devolutas no sentido do Dec.-lei 9.760/1946, tem o Estado o ônus da prova”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Jeferson Carús Guedes e Otávio Luiz Rodrigues Júnior. t. XII, São Paulo: RT, 2012, p. 655.

[23] “O fato de serem as terras devolutas definidas por exclusão nos textos legais não retira do ente estatal a necessidade de demonstrar tal circunstância. Esse raciocínio vem sendo aplicado pelo Judiciário brasileiro desde a década de 70”.  ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Problemas registrais. Terras devolutas. Usucapião. Contestação de ação reivindicatória. Revista de Processo, São Paulo, v. 167/2009, jan.2009, p. 405-432.

[24] “Dessa forma, o silogismo ‘não possui registro logo é terra devoluta’ esbarra na história do Direito Registral e, em uma interpretação sistemática da Carta Magna, não pode ser aproveitado. Pensar de forma   diferente é atentar contra o Direito Fundamental à Propriedade e criar profunda insegurança jurídica sobre o sistema de registro de imóveis brasileiro. Basta pensar no absurdo exemplo de que, se por algum motivo (pane no sistema, enchente, incêndio no cartório etc.) as matrículas de diversos imóveis se perderem  definitivamente, todas essas propriedades privadas passariam a ser terras públicas devolutas”. BANDEIRA DE MELLO, Ricardo; DOURADO, Felipe Nascimento; CALVO, Ivan Mauro. Reflexões sobre a inconstitucionalidade do processo de arrecadação e discriminação de terras devolutas no estado da Bahia. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 1, n. 2, jul./dez. 2021.

[25] “1. A inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usucapião não induz presunção de que o imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva” REsp n. 964.223/RN, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 18/10/2011.

[26] AgInt no REsp 1308652 / MG, rel. Min. Herman Benjamin, j. 21/09/17.

[27] “Deve-se salientar que a cabal comprovação da natureza devoluta das terras é ônus do Poder Público que não se restringe à ação de usucapião. Por coerência de raciocínio, o próprio registro do bem carece de prévio ajuizamento de ação discriminatória pelo ente estatal interessado, mormente em situações de dúvida quanto à existência de prévia ocupação de boa-fé por particulares, ação esta na qual o ônus da comprovação da devolutividade das terras incumbe ao Estado, por se tratar de fato constitutivo do direito invocado”. ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Problemas registrais. Terras devolutas. Usucapião. Contestação de ação reivindicatória. Revista de Processo, São Paulo, v. 167/2009, jan.2009, p. 405-432.

[28] ARMELIN, Donaldo. Aspectos Processuais da Ação Discriminatória, Revista de Processo, vol. 70/1993, abr/jun, 1993, p. 116-34,

[29] “Denota-se, portanto, que o bloqueio tem cunho essencialmente acautelatório. Não é fim em si mesmo. O seu mister é resguardar direitos. Tem-se, aliás, nítida intervenção estatal na medida em que se torna indisponível um bem com o fito de obter a conformidade legal. É dizer, trata-se de instrumento em que o Estado, reconhecendo a ilegalidade, mas protegendo o adquirente de boa-fé, tão somente paralisa as ações contrárias ao ordenamento jurídico até a regularização do registro”. RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. A matrícula: paradigmas para o sistema de registro eletrônico de imóveis. Revista de Direito Imobiliário, v. 86/2019, jun.2019, p. 215-262.

[30] ALMEIDA, Marcelo Paulo. Regularização fundiária de interesse específico e o registro imobiliário. In: YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato; FIGUEIREDO, Marcelo; AMADEI, Vicente (coord). Direito notarial e registral avançado [livro eletrônico].  São Paulo: Thomson Reuters, 2014.

[31] SILVA FILHO, Elvino. Do cancelamento no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 27, jan./jun.,1991.

[32] ALMEIDA, Marcelo Paulo. Regularização fundiária de interesse específico e o registro imobiliário. In: YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato; FIGUEIREDO, Marcelo; AMADEI, Vicente (coord). Direito notarial e registral avançado [livro eletrônico].  São Paulo: Thomson Reuters, 2014.

[33] RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. A matrícula: paradigmas para o sistema de registro eletrônico de imóveis. Revista de Direito Imobiliário, v. 86/2019, jun.2019, p. 215-262.

[34] REsp 1133451/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 27/3/2012.

Ermiro Ferreira Neto
Doutor em Direito Civil (USP). Professor de Direito Civil e Direito Imobiliário da Faculdade Baiana de Direito. Advogado.

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