ANÁLISE DA RECENTE TRANSFERÊNCIA DE TERRAS DA UNIÃO PARA O ESTADO DO AMAPÁ
Cláudio Grande Júnior
Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Procurador do Estado de Goiás.
Nos que parecem ser os últimos dias do governo de Dilma, foi definida a transferência de cerca de 4,5 milhões de hectares de terras da União ao Estado do Amapá. Para uma ideia do que isso significa, a área total do Amapá é de quase 14,3 milhões de hectares. O Decreto Federal n.º 8.713 foi assinado no dia 15 de abril, às vésperas da votação do impeachment pelo plenário da Câmara dos Deputados. Nem a cerimônia, nem o discurso foram comunicados com a antecedência habitual, o que foi identificado por setores da oposição como uma tentativa de garantir os votos dos deputados federais do Amapá.[1] O governo federal se defendeu, alegando que se tratou apenas da natural conclusão de um processo em curso há décadas, objetivando igualar o Amapá aos outros estados da federação, no que tange à dominialidade das terras públicas.
De fato, em 1988, quando o Amapá foi transformado de território federal em estado federado, 95% de suas terras pertenciam à União.[2] Em 2013, passados tantos anos, os dados disponíveis na internet demonstram que o Estado do Amapá era dono de apenas 3,7% da área de seu território.[3] Isso acontece porque, quando da criação dos estados do Amapá e de Roraima, a Constituição Federal (ADCT, art. 14, § 2º) mandou aplicar as normas e critérios seguidos na criação do Estado de Rondônia. Este teve por diploma jurídico de nascimento a Lei Complementar n.º 41, de 1981, cujo art. 15 transferiu ao Estado de Rondônia os móveis e imóveis então pertencentes ao Território Federal de Rondônia e os efetivamente utilizados pela Administração Pública do Território Federal de Rondônia. As terras devolutas e a maior parte das públicas não pertenciam ao território, mas à própria União, com representação conferida ao INCRA. Assim, não foram inicialmente transmitidos aos referidos estados os domínios das terras devolutas e das terras públicas da União não efetivamente utilizadas pelas administrações dos respectivos territórios. Neste sentido já decidiu o STF: “É equivocada a argumentação do Estado réu no sentido de que as terras formadoras do extinto Território Federal de Roraima passaram automaticamente ao Estado criado quando da promulgação da Constituição da República de 1988.”[4].
Em Rondônia, o INCRA desempenhou um papel determinante na identificação das terras devolutas e o subsequente registro imobiliário delas. Mas há críticas quanto ao processo de privatização dessas terras e atores políticos e sociais defendendo a transferência delas da União para o Estado de Rondônia.[5]
Com relação a Roraima, a Lei Federal n.º 10.304, de 2001, mandou transferir ao domínio do Estado as terras da União localizadas no território daquele (art. 1º), exceto “as áreas relacionadas nos incisos II, III, IV, VIII, IX e X do art. 20 da Constituição Federal, as terras indígenas pertencentes à União e as destinadas pela União a outros fins de necessidade ou utilidade pública” (art. 2º). As terras transferidas ao Estado de Roraima deveriam ser utilizadas em atividades de assentamento e de colonização (art. 3º). A lei deveria ser regulamentada pelo Poder Executivo (art. 4º). Além do caso acima citado, por pelo menos outras três vezes (ACO n.º 596 AgR/RR, ACO n.º 653/RR, ACO n.º 943/RR) o STF afastou a possibilidade de pretensões dominais do Estado de Roraima sobre essas terras antes que fosse expedida a devida regulamentação.[6]
Antes de ser regulamentada pelo Decreto n.º 6.754, de 2009, a lei em referência foi modificada pela Medida Provisória n.º 454, de 2009. Depois, entretanto, foi novamente modificada pela Lei Federal n.º 11.949, de 2009. Esta acrescentou a transferência ao Amapá das terras da União localizadas neste Estado-membro (art. 1º). O leque de terras excluídas da transferência foi alargado e detalhado no art. 2º, alcançando:
I – as áreas relacionadas nos incisos II a XI do art. 20 da Constituição Federal;
II – as terras destinadas ou em processo de destinação pela União a projetos de assentamento;
III – as áreas de unidades de conservação já instituídas pela União e aquelas em processo de instituição, conforme regulamento;
IV – as áreas afetadas, de modo expresso ou tácito, a uso público comum ou especial;
V – as áreas destinadas a uso especial do Ministério da Defesa; e
VI – as áreas objeto de títulos expedidos pela União que não tenham sido extintos por descumprimento de cláusula resolutória.
Dentre as terras que o inciso I acima transcrito faz remissão à Constituição Federal estão: as devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; as cavidades naturais subterrâneas; os sítios arqueológicos e pré-históricos; e as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Não custa lembrar que em Roraima há a questão da Raposa Serra do Sol.[7]
Se na redação original da lei as terras transferidas ao Estado de Roraima deveriam ser utilizadas em atividades de assentamento e de colonização, agora estabelece:
Art. 3º As terras transferidas ao domínio dos Estados de Roraima e do Amapá deverão ser preferencialmente utilizadas em atividades agrícolas diversificadas, de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, de assentamento, de colonização e de regularização fundiária, podendo ser adotado o regime de concessão de uso previsto no Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967.
§ 1º A aquisição ou o arrendamento de lotes por estrangeiros obedecerá os limites, condições e restrições estabelecidos na legislação federal.
O Decreto n.º 6.754, de 2009, regulamentou a transferência de terras para Roraima, exigindo seu art. 1º o prévio georreferenciamento, a expensas do Estado beneficiado, (§ 1º, IV) e “§ 3º A efetivação do registro em cartório da transferência de que trata o caput será feita por glebas, logo após estas serem identificadas e georreferenciadas, bem como destacadas as áreas excluídas.”. Daí porque o Ministro Luiz Fux fundamentou em 2014, na ACO n.º 926, que “A situação das terras localizadas no Estado de Roraima é, ainda hoje, indefinida.”.
Já o recente Decreto n.º 8.713, de 15 de abril de 2016, arrola no seu Anexo I as glebas arrecadadas e matriculadas em nome da União que são transferidas ao domínio do Estado do Amapá, por força do art. 1º. À primeira vista, parece um dispositivo legal de efeitos concretos, contudo o respectivo § 1º manda considerar a exclusão daquelas áreas acima mencionadas, arroladas na Lei Federal n.º 10.304, de 2001, com redação dada pela Lei Federal n.º 11.949, de 2009, bem como os “territórios quilombolas já delimitados e aqueles a serem delimitados”. Além disso, determina que “§ 2º A efetivação dos registros em cartório da transferência de que trata o caput será feita por gleba, com apresentação de seu georreferenciamento certificado pelo INCRA.”.
Os Anexos II, III e IV trazem as terras excluídas da transferência, respectivamente: as terras indígenas, os projetos de assentamento e de titulação quilombola e as unidades de conservação. Outros dispositivos do art. 1º tentam a difícil conciliação da pressa na transferência das terras com a necessidade de segurança na delimitação das exclusões impostas:
§ 3º O procedimento de exclusão das áreas da União não depende de anuência do Estado do Amapá.
§ 4° Até a conclusão das exclusões de todas as áreas da União na respectiva gleba, eventuais desmembramentos propostos pelo Estado do Amapá deverão ser submetidos à anuência prévia da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, que deverá se manifestar no prazo de sessenta dias, sob pena de concordância tácita.
[…]
§ 6º O domínio das áreas a que faz referência a alínea “g” do inciso I do § 1º que não forem delimitadas no prazo de vinte meses, contado da data de publicação deste Decreto, passará ao Estado do Amapá, a quem caberá efetuar a titulação dos territórios quilombolas nos termos do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT e do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.
Não há como negar que a execução prática do decreto pode acarretar o agravamento das questões agrárias existentes na região e até mesmo o surgimento de novos problemas. Movimentos sociais integrantes do Fórum de Acompanhamento de Conflitos Agrários e Desenvolvimento (FACADE) já questionaram a transferência das terras e protocolizaram um requerimento junto ao MPF no Amapá, alegando que “a forma como a transferência foi realizada não garante benefícios aos cidadãos que vivem em comunidades quilombolas e indígenas”[8].
A verdade é que o caso suscita discussões jurídicas não apenas agrárias e ambientais, mas também de ordem constitucional, no que diz respeito à distribuição de bens e competências no pacto federativo, que serão analisados futuramente em outra análise neste sítio eletrônico.
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Notas:
[1] http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/04/16/oposicao-acusa-governo-de-dar-terras-por-votos-do-amapa-contra-impeachment.htm
[2] http://www.brasil.gov.br/governo/2016/04/transferencia-de-terras-da-uniao-para-o-amapa-cumpre-a-legislacao
[3] http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2013/10/governo-diz-que-amapa-e-dono-de-apenas-37-do-proprio-territorio.html
[4] ACO 926, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 02/09/2014, publicado em DJe-172 DIVULG 04/09/2014 PUBLIC 05/09/2014.
[5] http://www.rondoniaovivo.com/noticia/rondonia-estado-sem-terra-por-tadeu-fernades/29811
[6] Em dois dos casos houve julgamento colegiado:
RECURSO – AGRAVO – JUÍZO DE RETRATAÇÃO. É da natureza do agravo, pouco importando a espécie, o juízo de retratação. TUTELA ANTECIPADA – VEROSSIMILHANÇA E RISCO. Surgindo a verossimilhança e o risco de manter-se com plena eficácia o quadro, impõe-se o deferimento da tutela antecipada. DOMÍNIO – TERRAS DA UNIÃO – TRANSFERÊNCIA À UNIDADE DA FEDERAÇÃO – RORAIMA – LEI Nº 10.304/01. A exclusão prevista no artigo 2º da Lei nº 10.304/01 é motivo para implementar-se tutela antecipada, afastando, sobre as terras nele mencionadas, a postura dominial do Estado. (ACO 596 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11/03/2004, DJ 27-08-2004 PP-00052 EMENT VOL-02161-01 PP-00077)
MANDADO DE SEGURANÇA. GLEBAS PERTENCENTES À UNIÃO. REGISTRO EM NOME DO ESTADO DE RORAIMA. LEI 10.303/2001. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO. 1. Dispondo a Lei 10.303/2001 estarem excluídas, da transferência ao Estado de Roraima, as terras relacionadas nos incisos II, III, IV, VIII, IX e X do art. 20 da Constituição Federal, e havendo expressa previsão de regulamentação no prazo de 180 dias, tem-se por antijurídico o precipitado registro das glebas em nome do Estado-membro, antes mesmo de esgotado o referido prazo, e sem a necessária e prévia identificação daquelas que serão mantidas em nome da União. 2. Segurança concedida. (ACO 653, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 18/11/2004, DJ 04-02-2005 PP-00007 EMENT VOL-02178-01 PP-00029 LEXSTF v. 27, n. 317, 2005, p. 61-68 RTJ VOL-00194-03 PP-00749)
[7] http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL975896-5601,00-LULA+REPASSA+TERRAS+DA+UNIAO+A+RORAIMA+E+DIZ+QUE+ESTA+PAGANDO+DIVIDA.html
[8] http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2016/05/movimentos-sociais-denunciam-transferencia-de-terras-da-uniao-ao-ap.html