“A 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) negou provimento, na última semana, a recurso do Ministério Público Federal (MPF) contra a União requerendo a demarcação dos terrenos marginais e de seus acrescidos do Rio Uruguai abrangidos pela Subseção Judiciária de Santa Rosa (RS).
O MPF alega que a inércia do Estado na área estaria pondo em risco o meio ambiente e a segurança jurídica. Em relação ao Rio Uruguai, refere que não há linha média das enchentes demarcada, o que impossibilitaria discriminar se determinada área é patrimônio da União ou não, impedindo a população de ter a delimitação correta das propriedades. Quanto ao meio ambiente, o MPF denuncia a falta de fiscalização nas margens e no leito do rio.
O relator, desembargador federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira, fundamentou sua decisão com base na sentença da 1ª Vara Federal de Santa Rosa, segundo a qual não cabe ao Judiciário assumir o papel de administrador, passando a decidir politicamente as áreas a serem demarcadas. Na decisão de primeiro grau, o juiz federal Moacir Camargo Baggio avaliou que cabe à União selecionar as zonas prioritárias de demarcação e que, atualmente, a atenção está focada no litoral norte do Rio Grande do Sul.
Por outro lado, o desembargador ponderou que a região é pouco povoada e a situação está consolidada, com raros casos de pedidos de usucapião envolvendo áreas ribeirinhas. ‘Em situações como a presente, convém reconhecer que a União, no campo político ou administrativo, não está obrigada a agir de imediato. O sistema social permite licitamente a protelação tanto da decisão política quanto da execução administrativa – pois o político e o administrador (ao contrário do juiz) não estão obrigados a invariavelmente decidir, podendo aguardar momentos mais oportunos para atuar em um ou em outro sentido’, concluiu, reproduzindo trecho da sentença.
A Subseção Judiciária de Santa Rosa engloba os municípios de Alecrim, Alegria, Boa Vista do Buricá, Campina das Missões, Cândido Godói, Crissiumal, Doutor Maurício Cardoso, Horizontina, Humaitá, Independência, Nova Candelária, Novo Machado, Porto Lucena, Porto Mauá, Porto Vera Cruz, Santa Rosa, Santo Cristo, São José do Inhacorá, São Martinho, São Paulo das Missões, Sede Nova, Tiradentes do Sul, Três de Maio, Tucunduva e Tuparendi”.
Fonte: TRF4, 01/12/2016.
Confira a íntegra da decisão:
RELATOR
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RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA
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APELANTE
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
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APELADO
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UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
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RELATÓRIO
A sentença julgou improcedente a ação (evento 42 dos originais).
Inconformado, o MPF apela (evento 46 na origem), sustentando que há relevante risco à segurança jurídica e ao meio ambiente, com a comprovada e reiterada inércia do Estado nas demarcações objeto da presente ação, sem qualquer demonstração séria e vinculada de fundamentos para tal omissão. Aduz que, em relação ao Rio Uruguai, não há linha média das enchentes ordinárias (LMEO) demarcada, o que impossibilita discriminar se determinada área é patrimônio da União ou não, o que provocaria insegurança jurídica para a população alijada da correta delimitação de suas propriedades. Alega que a omissão da SPU em identificar, demarcar e fiscalizar os terrenos marginais permitiu, e continua permitindo, o agravamento da situação ambiental nas margens e no próprio leito do Rio Uruguai.
Apresentadas as contrarrazões, subiram os autos a esta Corte.
O Ministério Público Federal opina pelo provimento da apelação.
É o relatório.
VOTO
Por outro lado, a União insurge-se quanto às alegações do MPF no sentido de que sua omissão estaria gerando insegurança jurídica, não tendo o autor demonstrado, concretamente, eventual incômodo dos moradores da região em tal sentido. Nega que a falta de demarcação de áreas ribeirinhas do Rio Uruguai possa lhe causar prejuízo, porque, eventuais construções lá existentes, estariam irregularmente edificadas em área de preservação permanente, impossibilitando a inscrição de ocupação. Ademais, entende que a ausência de demarcação não é empecilho para a repressão de condutas prejudiciais ao meio ambiente.
Logo, a fim de evitar tautologia, perfilho-me à percuciente sentença prolatada pelo Juiz Federal Moacir Camargo Baggio, adotando os seus fundamentos como razões de voto (evento 42, nos autos originais):
Por ocasião da análise do pedido liminar, não entendi presente o requisito de urgência que justificasse o deferimento da ordem antecipatória, mormente porque o MPF não teria demonstrado situação concreta caracterizadora de insegurança jurídica imputável à requerida em razão da omissão pontuada na inicial.
São, de qualquer sorte, temas incontroversos nesta demanda tanto a atribuição legal e constitucional da União para promover o procedimento em discussão (ainda que para tanto, segundo ela, dependa da prévia aferição de navegabilidade do rio – por órgão que, de qualquer sorte, integra sua organização administrativa), quanto a omissão do Ente em fazê-lo – por este justificada, basicamente, noprincípio da reserva do possível (insuficiência de recursos humanos e de verbas orçamentárias).
A União, além disso, sustenta que o Poder Judiciário não deve se omiscuir em sede de elaboração e execução de políticas públicas, pois isso macularia o Princípio da Separação de Poderes, tema ínsito ao chamado mérito administrativo.
A resolução da lide demanda enfrentamento global dessa ordem de ideias, aparentemente contraditória.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que por muito tempo a doutrina administrativista brasileira realmente lecionou, em matéria de controle jurisdicional do ato administrativo, a limitação da cognição dos Tribunais aos aspectos de legalidade do ato (competência, forma e finalidade), considerando vedada a manifestação judicial a respeito de seu mérito (motivo e objeto), porquanto as análises de conveniência e oportunidade seriam prerrogativas exclusivas da autoridade administrativa. Como bem colocado pelo Eminente Ministro Luís Roberto Barroso em estudo sobre constitucionalização do direito (Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Themis – Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará, v.4, n.2, p. 13-100, jul/dez 2006.), trata-se de concepção superada pela doutrina e jurisprudência. Na atualidade, não apenas princípios constitucionais de natureza geral ‘mas também os específicos, como moralidade, eficiência e, sobretudo, a razoabilidade-proporcionalidade permitem o controle da discricionariedade administrativa’; mesmo que, naturalmente, em relação à temática deva-se observar ‘a contenção e a prudência, para que não se substitua a discricionariedade do administrador pela do juiz’. É afirmar-se – em termos luhmannianos – que em programas decisórios do sistema jurídico é preciso sempre atentar para a autorreferência do último, evitando-se a corrupção do código binário lícito-ilícito (ou constitucional/inconstitucional), sob pena de bloqueio da comunicação jurídica.
Obviamente, ao realizar programas jurídicos (como é o caso de uma decisão judicial) o juiz não deve substituir o administrador, o que não significa que os atos do último sejam insindicalizáveis. Com efeito, desde a década de 1950 o Supremo Tribunal Federal mantém jurisprudência no sentido da possibilidade de controle judicial de atos políticos, no que respeita à sua legalidade e constitucionalidade. A esse respeito, no âmbito do MS 1.423-51 restou assentado, exemplificativamente, que ‘as medidas políticas são discricionárias apenas no sentido de que pertencem à discrição do Congresso ou do Governo os aspectos de sua conveniência ou oportunidade, a apreciação das circunstâncias que possam autorizá-las, mas a discrição legislativa não pode exercitar-se fora dos limites constitucionais ou legais’ (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Mandado de Segurança 1.423/DF, relator Ministro Luiz Gallotti, data de julgamento: 22.02.1951. Publicado no Diário da Justiça em 14.06.1951).
A posição de Juarez Freitas sobre a discricionariedade administrativa (O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5.ed. revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2013) alinha-se a tal entendimento ao pregar, justamente, a inexistência de ato administrativo completamente insindicável, na medida em que no Estado Democrático os fundamentos de juridicidade adotados como motivação devem sempre demonstrar a coerência da escolha administrativa, à luz de princípios e prioridades constitucionais vinculantes. Trata-se do que Freitas denomina de controle do vício ou do demérito: o ato administrativo exige fundamentação congruente, ‘passível de aprovação no teste de racionalidade intersubjetiva, coibida toda e qualquer arbitrariedade, inclusive a do controle’ (Direito Fundamental à boa administração Pública. 3.ed. refundida e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2014). Por isso que, por exemplo, segundo o doutrinador gaúcho, a discricionariedade viciada pelo patrimonialismo (confusão entre o público e o privado) padece de sentido em um sistema constitucional do qual emanam prioridades inclusivas aplicáveis à formulação e implementação de políticas públicas. Essencial, nesse passo que ‘o escrutínio dos atos administrativos, longe de se tornar paralisante, esteja endereçado à concretização das prioridades relacionadas ao direito fundamental à boa administração pública’, este entendido pelo professor gaúcho como ‘direito à administração eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas’.
Destarte, quando o ordenamento conferir margem ao administrador para proferir escolhas, a discricionariedade legítima implica adequada apreciação das consequências diretas e indiretas do ato, avaliadas não apenas no âmbito da economicidade, como também da juridicidade – não se servindo, pois, a favorecimentos, perseguições ou gastos que não se mantenham em um cotejo com prioridades extraídas do texto constitucional. Assim, conclui Freitas,
em nosso sistema não se admitem atos puramente discricionários (de extração subjetivista alheia à juridicidade), nem os atos completamente vinculados (de mera obediência irreflexiva). Com essa premissa de fundo, reequaciona-se o controle sistemático das escolhas públicas, com foco no cumprimento dos deveres de implementação, em tempo útil, das políticas prioritárias do Estado Constitucional, seja pela emissão expedita dos ‘atos administrativos vinculados’, seja pelo exercício satisfatório dos ‘atos administrativos discricionários’, expungindo, destes e daqueles, as nocivas arbitrariedades por ação e por omissão.
Segundo Gustavo Binenbojm, a ideia contemporânea de discricionariedade afasta-se da concepção de um espaço de livre escolha do administrador público, convolando-se em um ‘resíduo de legitimidade, a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos prescritos pela Constituição e pela lei com vistas à otimização do grau de legitimidade da decisão administrativa’ (Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 239, p, 1-31, 2005). Com efeito, no campo da primazia dos direitos fundamentais, pode-se dizer que o adequado controle dos atos administrativos opera sempre de forma sistemática e proporcional, atentando para prioridades constitucionais orientadoras das escolhas da Administração Pública – as quais, refletidas no âmbito das políticas públicas, vinculam juridicamente a atividade administrativa nos Estados Democráticos de Direito; não estando imunes ao juízo de compatibilidade constitucional exercido pelo Poder Judiciário.
Sob essa ótica, ressaltei em análise ao pedido antecipatório que em um país continental como o Brasil, é razoável que a demarcação de terras públicas obedeça a critérios discricionários envolvendo eleição de alguma ordem de prioridades, o que parece ter ocorrido no caso vertente, já que no denominado Plano Nacional de Caracterização a União estabeleceu metas de atuação as quais não se demonstrou serem desproporcionais.
Além disso, conforme pontuado pela ré, a ausência de demarcação da área mencionada na inicial não obsta ou anula a promoção de atos tendentes à proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pelo Órgão Ministerial ou pelos órgãos ambientais. Tal raciocínio pode ser extraído, notadamente, da imposição constitucional direcionada ao Poder Público a a toda coletividade de atuarem conjuntamente na defesa e preservação do meio ambiente, forte o disposto no art. 225 da Carta Magna – exercício este que, em um primeiro momento, realmente prescinde de prévia demarcação dos terrenos marginais aos quais se referem os autos.
A rigor, portanto, no caso vertente não se está diante de total ausência de política pública voltada à demarcação de terras públicas. A União apenas se nega, por critérios seletivos, a direcioná-las, no momento, a áreas que margeiam o rio Uruguai na Região Noroeste do Rio Grande do Sul, focando sua atuação em outras áreas do território brasileiro e do próprio Rio Grande do Sul – como, por exemplo, o litoral norte deste mesmo Estado Federativo.
No ponto, questiona-se: é possível ao Poder Judiciário sindicalizar tais escolhas da administração? A atual doutrina constitucional brasileira leciona que sim, desde que tal controle não fuja dos limites autopoiéticos de uma comunicação jurídica. Vale dizer: é licito ao julgador definir se a atuação estatal, em sede de políticas públicas, foi lícita ou ilícita, constitucional ou inconstitucional (particularmente, se atentou para princípios implícitos ou explícitos insertos na Constituição). Não lhe cabe, todavia, avocar para si a tarefa de administrador (amplamente considerada), passando a decidir políticamente em lugar deste – estaria, em tal hipótese, corrompendo o código comunicacional jurídico mediante indevida utilização do código político (próprio das agregações majoritárias democráticas).
É preciso acrescer, na lição de Celso Campilongo (Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002), que os programas do sistema político são sempre teleológicos, e este traço marcante identifica, por exemplo, programas político-eleitorais e propostas de governo. Assim, sempre que uma comunicação social, estabelecida a partir do código governo/oposição, traduzir uma tomada de decisão alinhada a programas daquela natureza (sejam eles eleitorais, parlamentares ou administrativos – estes últimos, amplamente considerados), estar-se-á diante de uma comunicaçãopolítica e não jurídica, porque o sistema jurídico trabalha com programas normativos (aí incluídos textos e precedentes jurídicos, leis, contratos e práticas jurisprudenciais).
Os tribunais, a propósito, não controlam as consequências de suas decisões e por isso, ao resolverem conflitos podem vir a gerar novos conflitos, diversamente do que se observa em relação às decisões políticas, que podem ser revistas a qualquer tempo (Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 77 ss.).
Em suma, em sede de sindicabilidade de políticas públicas, a atuação do Poder Judiciário deve ser excepcional, pois este não foi talhado para produzir agregações majoritárias. Pode, em dúvida, reconhecer e declarar a irrazoabilidade e a desproporcionalidade de determinada política pública, mas não detém competência (nem experiência) para afirmar que uma escolha é melhor ou pior do que outra.
Convém reconhecer que a sociedade contemporânea se sujeita a infindáveis variações, mudanças e contingências. Além disso, para que seus objetivos sejam atingidos mostra-se necessária a realização de constantes escolhas dentre uma gama enorme de possibilidades. O ambiente, ainda em termos luhmannianos, é sempre mais complexo que os sistemas político e jurídico, porque oferta mais possibilidades de experiências ou ações do que estes podem aceitar ou processar simultaneamente. É em razão da complexidade do mundo que os sistemas sociais sempre operam seletivamente – vale dizer, elegem algumas dessas possibilidades (passíveis de processamento pelo seu código seletor), desprezando, por conseguinte, muitas outras (ou mesmo mantendo-as latentes, aguardando uma melhor oportunidade para processamento).
De qualquer sorte, no mundo contingente e incerto que marca a hipercomplexidade, inexistem garantias de que decisões tomadas sejam corretas ou adequadas.
O certo, contudo, é que existem significativas diferenças operacionais entre o sistema político e o sistema jurídico, assim como também divergem os critérios decisórios político e judicial. A própria seletividade de um e de outro sistema é divergente, coadunando-se com suas funcionalidades específicas. Ambos produzem decisões coletivas vinculantes, atuam em torno da legislação e utilizam-se da força coercitiva estatal, além de encontrarem na Constituição seu fundamento normativo (NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda, 2013. p. 117). Mas a rigor – retomando Campilongo – o sistema jurídico presta-se normalmente a manter e estabilizar expectativas específicas; ao passo que ao sistema político cumpre, diversamente, produzir agregações majoritárias. Por conseguinte, o plexo de comunicações sociais usualmente mobilizadas para a produção de decisões políticas revela-se infinitamente maior do que as comunicações conectadas para produção de uma decisão jurídica. Além disso – em razão de sua própria lógica de inclusão generalizada – para manter seu fechamento operacional o sistema político precisa manter e multiplicar uma alta complexidade interna, num processo de contínua circulação de possibilidades, corolário da própria democracia como ‘pressuposto para a manutenção da complexidade, visto que continuamente reproduz as possibilidades de escolha, garante a reversibilidade das decisões e está sempre aberta à renovação dos temas’ (CAMPILONGO, 2002, p. 73).
É possível destacar, nessa esteira, que a capacidade de apreensão cognitiva do legislador ou governante é sempre muito ampla, estando ele em contato quase imediato com o conflito e detendo, em tese, a faculdade de corrigir as decisões tomadas. Diversamente, o contato do juiz com o conflito é sempre retardado, pois este usualmente chega à apreciação judicial após erigir e passar por tentativas extrajudiciais de resolução. Portanto, o julgador normalmente trabalha com desilusões, procurando manter expectativas contra-fáticas. Além disso, as decisões judiciais são justificadas a partir da solidez e coerência dos fundamentos adotados pelo julgador. Já os critérios de justificação do legislador ou do governante são distintos: estes usualmente prestam contas ao próprio eleitor, que pode sancionar erros políticos por meio da reprovação eleitoral (CAMPILONGO, 2002).
É certo, nesse contexto, que nos regimes democráticos o modelo de circulação dinâmica do poder apenas se estabelece a partir do momento em que, dentro do sistema político, o código de referência do direito também se tornar relevante. Com efeito, o caráter difuso e flutuante do poder reclama seja ele orientado por uma distinção entre poder conforme e poder contrário ao direito (vale dizer, o código binário lícito/ilícito passa a ser considerado um código secundário do poder, ao lado da própria diferenciação primária) (LUHMANN, Niklas. Poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília 1985, p. 36). Em termos sistêmicos, destarte, Estado de Direito se define como a ‘relevância da distinção entre lícito e ilícito para o sistema político’ (NEVES, Marcelo. Os Estados no centro e os Estados na periferia. Alguns problemas com a concepção de Estados na sociedade mundial em Niklas Luhmann. In: Revista de Informação Legislativa, ano 52, número 206, abr./jun. 2015. 2015, p. 117), cumprindo assentar, mais precisamente, que ‘todas as decisões do sistema político estão subordinadas ao direito’ (LUHMANN, apud NEVES, 2015, p. 117) – o que não significa reconhecer a possibilidade de sobreposição de códigos binários diferenciadores, mas apenas que estes se reportam reciprocamente na dinâmica do poder: ‘assim como as decisões políticas subordinam-se ao controle jurídico, o direito positivo não pode prescindir, por exemplo, de legislação controlada e deliberada politicamente (LUHMANN, apud NEVES, 2015, p. 117). No Estado Democrático de Direito, ademais, é a Constituição que reingressa o código lícito/ilícito como segundo código no interior do sistema político, cumprindo [em tese] a função de imunizá-lo juridicamente contra interesses particularistas e mandatos imperativos, assegurando a formação pluripartidária no parlamento pela institucionalização do procedimento eleitoral (programa específico do sistema político, subordinado ao controle jurídico, que traduz verdadeira generalização do apoio político). A Constituição, por outro lado, ‘também protege o sistema político, mediante a instituição da chamada ‘divisão de poderes’, contra uma expansão destrutiva de sua própria autonomia’ (NEVES, 2015, p. 118).
Delineada toda essa perspectiva, imperioso reconhecer que, no caso específico, a omissão estatal descrita pelo MPF aparentemente não frustrou expectativas normativas, especialmente aquelas relacionadas à atuação prestacional do Estado voltada à concreção de direitos fundamentais ou ao atendimento de relevante interesse público. E esta Vara Federal não tem-se negado a assumir uma postura de ativismo judicial quando essas últimas circunstâncias se revelam presentes – como exemplos recentes, pode-se citar que no âmbito da Ação Civil Pública nº 5000013-32.2015.404.7115 houve intervenção judicial em politicas públicas de natureza ambiental; no âmbito da Ação Civil Pública nº 5000067-37.2011.404.7115 houve intervenção judicial em politicas públicas na área de saúde indígena; e no âmbito da Ação Civil Pública nº 5000600-25.2013.404.7115 houve intervenção judicial em politicas públicas da área educacional; no âmbito da Ação Civil Pública nº 5000135-45.2015.404.7115 houve intervenção judicial em politicas públicas da área energética. Em todas esses hipóteses, entretanto, mostrava-se flagrante a possibilidade de ponderação jurídica entre valores e interesses conflitantes; passíveis, portanto, de resolução no campo do direito.
Não é isso que se percebe no caso em apreciação.
A rigor, quando o Estado deixa voluntariamente de demarcar parcela de seu domínio, ele próprio parece ser o maior prejudicado – e esse autoprejuízo, além disso, salvo prova em contrário, se revela essencialmente patrimonial. É certo que, em última análise, no plano abstrato toda a coletividade igualmente se prejudica, mas em um país repleto de mazelas e iniquidades, é difícil sustentar que a temática deva ser prioritária, a ponto de justificar uma especial ponderação constitucional entre valores jurídicos conflitantes. Tal circunstância reclama, diversamente, uma ponderação essencialmente política entre custos e benefícios da alocação de recursos públicos em área de pouco interesse social ou estatal – isso, repiso, considerando-se que não se demonstrou concretamente no curso do feito a caracterização de ilicitude ou de inconstitucionalidade.
É difícil acolher, nesse contexto, a tese vertida pela parte autora, de que a situação narrada na inicial poderia ensejar insegurança jurídica nesta Região do País. É fato notório que a ocupação de áreas ribeirinhas do rio Uruguai (pouco povoadas, diga-se de passagem) retrata situação consolidada, não havendo notícias – especialmente nos autos – de que exista qualquer movimento popular, institucional ou mesmo midiático voltado à demarcação daquelas áreas de domínio. Por outro lado, são muito poucos os casos de ações judiciais com pedido de usucapião envolvendo áreas ribeirinhas já aportados nesta Subseção Judiciária. Em todos eles, de qualquer sorte, a requerida sempre foi defendida pela Advocacia da União, não se estando, no que tange a tal aspecto, diante de situação de lesão ao interesse público ou de convulsão social capaz de caracterizar perigo de instabilidade jurídica, a justificar o pleito inaugural.
Em situações como a presente, convém reconhecer que a União, no campo político ou administrativo, não está obrigada a agir de imediato. O sistema social permite licitamente a protelação tanto da decisão política quanto da execução administrativa – pois o político e o administrador (ao contrário do juiz) não estão obrigados a invariavelmente decidir (non liquet), podendo aguardar momentos mais oportunos para atuar em um ou em outro sentido.
O indeferimento do pedido declinado na inicial, portanto, não se fundamenta na reserva do possível. Seria, por exemplo, perfeitamente lícito, além de materialmente possível, deslocar a atuação demarcatória estatal atualmente desempenhada na costa norte do estado do Rio Grande do Sul para esta região noroeste; mas esta espécie de escolha, reitero, se revelaria essencialmente política – e, portanto, apenas sindicalizável frente à ocorrência de incoerências, ilicitudes ou inconstitucinalidades.
Por tais motivos, impõe-se a improcedência do pedido.
Ante o exposto, voto no sentido de negar provimento ao apelo, nos termos da fundamentação.
EMENTA
ACÓRDÃO
Veja também:
– Terras públicas: Justiça Federal nega pedido de demarcação de terras da União em terrenos marginais do Rio Uruguai (Portal DireitoAgrário.com, 06/07/2016)