por Karina Nunes Fritz.
Nos dias 23 a 25 de agosto do corrente ano, ocorreu em Londrina o V Congresso Nacional de Direito Agrário, promovido pela Sociedade Rural do Paraná e pela União Brasileira de Agraristas Universitários (UBAU) com o apoio de diversas entidades e a coordenação de Rodolfo Ciciliato, Albenir Querubini e Rafaela Parra. Nos três dias de evento discutiu-se diversos temas caros ao agronegócio e fez-se uma justa homenagem ao advogado Lutero de Paiva Pereira, um dos pioneiros do agrarismo no Brasil. Tive o prazer de participar do evento abordando um tema controvertido tanto no direito contratual quanto no direito do agronegócio, mas que, justamente por isso, merece reflexão: a alteração superveniente das circunstâncias nos contratos de compra e venda de commodities a preço fixo com entrega a termo.
De início, faz-se necessário um recorte metodológico para advertir que a discussão nada tem a ver com direito do consumidor e, portanto, é despiciendo recorrer ao diálogo das fontes ou ao Código de Defesa do Consumidor para resolver o problema. Estamos diante de um contrato privado, celebrado entre partes presumidamente paritárias e simétricas, com base na autonomia privada, o qual deve ser cumprido, afinal, todo contrato precisa ser executado nos termos pactuados, ainda quando isso implique certo sacrifício para um dos contratantes.
Pelo contrato de compra e venda de commodities agrícolas a termo e preço fixo, o vendedor se obriga a entregar determinada quantidade do produto em troca de um preço fixo pago pelo comprador. Frequentemente afirma-se que o contrato tem por fim reduzir as incertezas sobre o valor de mercado do bem. Mas não se pode perder de vista que, no rigor dogmático, a verdadeira finalidade do contrato de compra e venda é transferir a propriedade, i.e., permitir a troca do objeto contratual pelo preço. Por isso, o vendedor se obriga a transferir a coisa e o domínio para o comprador e este a pagar o preço e receber o bem[1].
Uma das peculiaridades desses contratos de compra e venda de commodities é que as prestações são acordadas no presente – em regra, antes do plantio – para serem cumpridas no futuro, havendo, então, um hiato temporal entre o momento da celebração e o momento da execução do contrato. Também característico desses contratos é que as partes acordam que a prestação do comprador – em regra: as tradings, empresas comercializadoras – deve permanecer inalterada.
Ajusta-se, por exemplo, que a saca de soja de 60kg será vendida por R$ 80,00 e, dessa forma, os contratantes “travam o preço”. Comumente se diz que esse mecanismo de preço visa garantir proteção a ambos os contratantes em caso de oscilação do valor de mercado do produto, pois qualquer que seja a variação – para mais ou para menos – as partes vão pagar e receber exatamente o inicialmente ajustado.
Um dos problemas que se põe nesses contratos é o que fazer quando a variação no preço do produto no mercado atinge índices alarmantes em decorrência de circunstâncias supervenientes à celebração do contrato, que rompem objetivamente o equilíbrio original, i.e., o sinalagma genético entre prestação e contraprestação, com base no qual os contratantes formaram a decisão de contratar.
A solução dessa questão exige uma releitura das teorias revisionistas à luz da nossa realidade atual. De início, há de se reconhecer que não vivemos mais no mundo da estabilidade dos séculos 18 e 19, quando importantes princípios contratuais foram sedimentados na doutrina do direito privado e nas primeiras codificações. Naquela época, diante da estabilidade da vida social e econômica, até poderia se justificar a proibição absoluta de que qualquer pessoa distinta das partes, sobretudo o juiz, pudesse intervir no contrato.
O século 20, contudo, já foi um grande desafio para os dogmas do direito contratual, pois tivemos, de início, duas grandes guerras mundiais que alteraram profundamente as condições socioeconômicas da época, levando, na França, o legislador a intervir e autorizar o juiz, por meio da Lei Faillot (1918), a extinguir os contratos desequilibrados pela hiperinflação[2] e, na Alemanha, o judiciário a readaptar o programa contratual de forma pontual e equilibrada, respeitando, sobretudo, a vontade hipotética das partes e o fim econômico do negócio[3].
Era a primeira vez que se reconhecia que eventos macroeconômicos anormais podem destruir o equilíbrio formal e perfeito do contrato, visto como lei entre as partes, na solene proclamação do art. 1.134 do CodeNapoléon, onde o princípio do pacta sunt servanda fora consagrado[4]. Foi nessa quadra da história que o operador do direito percebeu que o mundo da estabilidade do contrato pode ser profundamente abalado por fatores externos ou, no dizer sempre preciso de Marc-Philipp Weller, que o mundo existente no momento da celebração não mais coincide com a realidade[5].
O que dizer, então, do nosso século 21, com as rasantes transformações tecnológicas, climáticas, científicas, regulatórias, geopolíticas, com a Guerra na Ucrânia desafiando a paz mundial e a pandemia de Covid-19, que parou o mundo por um instante, obrigando as pessoas a se isolarem em suas casas e parte do comércio e da indústria a fechar as portas? Sem dúvidas, vivemos hoje um mundo de instabilidade e de rápidas (e profundas) transformações.
Isso obriga os contratantes a serem extremamente diligentes na hora de redigir o contrato, não só antevendo, mas regulando em detalhes os efeitos de possíveis alterações que podem surgir (ou não) no desenrolar do contrato, o que faz com que os custos de transação aumentem e os instrumentos contratuais passem a ser cada vez mais extensos e complexos, dificultando o trabalho hermenêutico.
Os contratantes, porém, não têm o dom de Nostradamus de prever com clareza o futuro. E, a rigor, explica a moderna dogmática obrigacional, não basta só prever a possibilidade hipotética de um evento acontecer. Isso a indústria cinematográfica já faz com maestria, pois inúmeros são os filmes sobre guerras, acidentes nucleares catastróficos, inundações, derretimento de geleiras, secas, pestes, pandemias, dizimação da raça humana, choque de meteoros ou cometas com a terra, invasão de alienígenas, vida em outro planeta. Se levarmos ao pé da letra a vetusta teoria da imprevisão, concluiremos que Hollywood acaba com a imprevisibilidade de muitos acontecimentos, pois quase tudo já foi antevisto pela arte. Fica a dúvida: os contratos não poderão ser readaptados nem mesmo diante desses acontecimentos?
Por isso, o elemento da imprevisibilidade precisa ler lido à luz dos novos tempos. Não basta apenas prever a possibilidade hipotética de um evento acontecer; é necessário vislumbrar as consequências concretas dos eventos que impactam o contrato. E quais serão exatamente as consequências dos eventos mencionados? Não sabemos. A verdade é que não conseguimos prever com precisão os efeitos de acontecimentos futuros e incertos. E se nem os cientistas podem fazê-lo com segurança, como exigir que os contraentes o façam e negociem agora a alocação dos riscos decorrentes desses eventos?
Existem milhões de cardiopatas no Brasil, mas nem todos precisam de transplantes cardíacos. A maioria se trata com remédios, pequenas intervenções cirúrgicas, com alimentação saudável e prática de exercícios físicos. Ou seja, é necessário que o paciente faça um esforço para ficar bem: faça dieta, pare de beber, faça exercícios físicos, etc. Esse esforço é indispensável também porque o transplante só é indicado quando todas as outras soluções fracassam.
O mesmo raciocínio deve ser aplicado nas situações de desequilíbrio superveniente no contrato: nem todos precisam de revisão contratual; a maioria precisa fazer um sacrifício para cumprir o contrato. O direito exige que o devedor faça um esforço para cumprir o contrato desequilibrado. Se, por exemplo, a geada prejudicou parte da colheita, deve o produtor, em princípio, adquirir o restante no mercado para cumprir a prestação, que não se tornou impossível sob o aspecto jurídico, porque a impossibilidade é um obstáculo intransponível ao cumprimento do contrato e, nesse caso, o produtor pode – rectius: deve – adquirir o produto no mercado, ainda que por um preço mais elevado.
O ponto nevrálgico consiste em determinar o limite do sacrífico a partir do qual ele se torna exagerado e irrazoável, vale dizer, inexigível. Quando o contrato ainda pode ser cumprido, mas exige um sacrífico irrazoável do devedor, estamos não no campo da impossibilidade, mas no da alteração superveniente das circunstâncias, que os alemães chamam de quebra ou perturbação na base do negócio.
Com a devida vênia às opiniões em contrário, é evidente que a pandemia de Covid-19 e, principalmente, seus efeitos socioeconômicos foram absolutamente imprevisíveis para sociedade em todo o mundo. Só que nem todos os contratos precisam ser reajustados, mas só aqueles em que o devedor demonstrar cabalmente no caso concreto que ele foi profundamente afetado pelos efeitos da pandemia e em patamar acima do limiar do sacrífico razoável que o direito exige que se faça para cumprir o contrato.
A doutrina alemã explica isso muito bem: não é qualquer evento – v.g., qualquer alta do dólar – que justifica a revisão dos contratos. É necessário um evento de consequências anormais, extraordinárias, imprevistas pelas partes, que tornem o cumprimento da prestação extremamente gravoso para o devedor ou até fruste o fim ultimo do contrato, quando, então, a única solução será a extinção do negócio.
Ao juiz é vedado presumir que o devedor fora afetado pelo evento, por exemplo, pela pandemia ou pela forte variação cambial. Ao contrário: recai sobre a parte prejudicada o ônus de demonstrar “contabilisticamente” que o cumprimento da prestação se tornou excessivamente oneroso e que ele não tem “gordura financeira” suficiente para suportar a execução contratual. Nos termos do § 313 do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), ele deve demonstrar ainda que, se tivesse antevisto esses acontecimentos, teria celebrado o contrato sob outras condições ou quiçá desistido da celebração. Afinal, se antevista a superveniência das circunstâncias, o contrato fosse celebrado nos mesmos termos, razão não haveria para sua readaptação.
E, evidentemente, é necessário ainda que a parte prejudicada não tenha assumido – por força de lei ou do contrato – o risco de que aquele evento com suas consequências (exemplo: Covid-19 com a alta de 100% no valor da saca de soja no mercado) viesse de facto a ocorrer. Mas as partes não podem, em princípio, afastar o reequilíbrio do contrato diante de toda e qualquer situação possível e inimaginável, pois a autonomia privada, conquanto princípio estruturante do direito contratual, não é ilimitada e encontra freios na boa-fé e no dever de consideração pelos interesses legítimos da contraparte.
Os contratos de compra e venda de grãos têm a peculiaridade de que as partes sabem de antemão que pode haver flutuação do valor de mercado das commodities, podendo o preço do produto subir ou descer, prejudicando ora o vendedor, ora o comprador, como aconteceu, por exemplo, na safra de soja de 2020/2021, quando o valor do produto no mercado teve uma valorização de 100%. Outra peculiaridade é que muitos contratos afastam a oscilação do dólar e do valor de mercado do bem como evento imprevisível a justificar a revisão contratual.
Muitos autores entendem, por isso, que a flutuação cambial é evento previsível na comercialização de commodities, pois o valor de mercado do bem tem como parâmetro, dentre outros, a cotação do grão na bolsa de Chicago. Logo, toda oscilação faz parte da álea normal do contrato, sendo, portanto, previsível para os contratantes. Com a devida vênia, esse entendimento mostra-se antiquado, apegado ainda à velha teoria francesa da imprevisão, que, por sinal, não foi recepcionada pelo art. 1.195 do Código Civil francês com a reforma em 2016, que atualmente permite a revisão judicial dos contratos.
Quando se diz que toda e qualquer variação cambial é evento previsível, parte-se de uma análise do evento in abstrato, não de sua ocorrência concreta em um determinado momento histórico e com as suas características reais. Nenhum contratante – e, logo, nenhum produtor – assume o risco de toda e qualquer variação cambial. A oscilação precisa ser analisada in concreto: se naquele momento histórico era previsível para os agentes econômicos antever a ocorrência e o grau daquela flutuação. De novo: variação cambial, guerras, pandemias, revoluções, choque de meteoro sempre poderão existir. E, por isso, o juiz ou o árbitro nunca poderá readaptar os contratos a fim de possibilitar ao devedor cumprir a prestação?
Tomando como exemplo a safra de soja de 2020/2021, não se pode efetivamente afirmar que o produtor – no momento da celebração do contrato – assumiu o risco de que o valor da saca tivesse uma valorização de 100%. Sob a ótica da racionalidade econômica, lente pela qual os contratos (também) precisam ser analisados, nos termos do art. 113 § 1º V do Código Civil, isso se mostra insustentável, pois não é crível que um agente econômico, que age racionalmente para otimizar sua atividade, assuma livremente um risco tão alto de flutuação no valor do objeto contratual.
Isso configura, à toda evidência, uma quebra clara e inequívoca na equivalência das prestações, no sinalagma que existia – no momento da conclusão do negócio – entre a quantidade da mercadoria e o preço, equivalência que levou o produtor a consentir no valor acordado. E se regra em sentido contrário resulta do contrato, isso pode ser um indício de desequilíbrio estrutural entre as partes, que afasta a presunção de simetria, nos termos do art. 421-A do Código Civil.
Por isso, a corriqueira alegação de que o aumento do valor da saca não causa prejuízo ao produtor, mas tão só o impede de auferir maiores lucros, não se sustenta sob a ótica da racionalidade econômica, pois o produtor não teria consentido no preço se tive previsto tão crassa oscilação. E, além disso, sabe-se que o aumento do dólar encarece os custos de produção: insumos, fertilizantes, defensivos, sementes, etc.
Atente-se que a equivalência das prestações pode ser quebrada ainda com a excessiva redução do valor da saca no mercado e, nesse caso, o contrato pode, em tese, ser reajustado para aquele comprador que demonstrar no caso concreto a excessiva dificuldade de cumprir a prestação. Porém, da mesma forma que nas hipóteses de valorização da mercadoria, a revisão não é automática para todo mundo. Aliás, o reajuste contratual nunca é automático. Ele só pode ser feito – e avaliado – no caso concreto, de acordo com as circunstâncias de cada situação individual, o que impede o temido efeito cascada na cadeia do agronegócio.
Dessa forma, as oscilações do preço das commodities agrícolas no mercado precisam ser analisadas concretamente para saber se as mesmas foram – ou não – imprevisíveis e extraordinárias para os contratantes. Constatando tratar-se de evento de efeitos gravosos e imprevistos, que quebram o sinalagma genético entre prestação e contraprestação e tornam excessivamente gravoso o cumprimento, pode o juiz ou o árbitro, com base no art. 317 do Código Civil, intervir pontualmente no contrato para restabelecer o quanto possível o equilíbrio original, levando sempre em conta os interesses de ambos os contratantes.
Atente-se, por fim, que diante de uma alteração superveniente das circunstâncias, autorizadora do reajuste contratual, o incumprimento da obrigação não configura a mora ou inadimplemento do devedor, até porque o devedor deseja cumprir o contrato, só quer fazê-lo, excepcionalmente, sob outras condições. Logo, configurado os requisitos para a revisão judicial, não pode o comprador pretender acionar cláusulas penais moratórias ou compensatórias como o wash-out ou pleitear os demais efeitos da mora ou do inadimplemento, pois esses pressupõem o descumprimento culposo do contrato e não se pode falar em culpa do devedor diante de graves alterações na base do negócio, provocadas por fatores externos e alheios à sua esfera de risco e responsabilidade.
Por isso, muitos autores negam, de plano, o caráter extraordinário e imprevisível da oscilação dos preços das commodities agrícolas, afastando, consequentemente, a aplicação do art. 317 ou do art. 478 do Código Civil, para, na sequência, qualificar a não entrega dos grãos como descumprimento culposo e, dessa forma, justificar o acionamento pelo comprador da cláusula de wash-out e dos demais efeitos do inadimplemento.
A revisão contratual, porém, não é uma carta branca para a quebra dos contratos. Quem assim entende, não compreendeu para que serve o instituto. Ao contrário: a revisão contratual visa viabilizar, possibilitar o cumprimento de um contrato que foi desequilibrado por fatores externos e gravosos não imputáveis ao devedor. Evidentemente, a regra é e continua sendo o cumprimento do contrato nos termos pactuados. Mas em casos excepcionais, o direito não pode deixar de socorrer a parte prejudicada, reajustando e preservando o contrato, o que favorece e fomenta a economia, pois é melhor um contrato reajustado e cumprido do que um negócio desfeito. Por fim, vale recordar a metáfora: apenas os casos graves precisam de transplante cardíaco. O mesmo vale para os casos de desequilíbrio contratual superveniente.
—
Notas:
[1] Confira-se a lição sempre atual de Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. t. 39. Rio de Janeiro: Bolsoi, 1962, p. 11. No mesmo sentido: LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts. v. 1, 13a ed. München: Beck, 1986, p. 6.
[2] Acerca da aplicação da Lei Faillot e da evolução na França da revisão contratual, seja consentido remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Alteração das circunstâncias do negócio: como o direito francês poderia inspirar o PL n. 1.179/2020. www.aasp.org.br. Publicado em 27/04/2020.
[3] Para um panorama geral sobre a teoria alemã da quebra da base do negócio jurídico e sua aplicabilidade no direito brasileiro, permita-se remeter ainda a: NUNES FRITZ, Karina. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Migalhas, 17/12/2020.
[4] “Art. 1.134. Les contrats légalement formés tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faits.” Atualmente, com a reforma do Código francês em 2016 a regra passou para o art. 1.103.
[5] WELLER, Marc-Philippe; LIEBERKNECHT, Markus; HABRICH, Victor. Virulente Leistungsstörugen – Auswirkungen der Corona-Krise auf die Vertragsduchführung. NJW 2020, p. 1021.