por Fabiano Cotta de Mello.
A teoria da imprevisão é uma técnica para enfrentar os fatos supervenientes e imprevisíveis quando da celebração do negócio jurídico. Como concluía Bartolomeo de Brescia, em glosa ao Decreto Graciano: Ergo semper subintelligitur haec condictio, si res in eodem statu manseri.[1]
A análise histórica da procura de uma técnica para conciliar o pactuado entre as partes com o surgimento de acontecimentos imprevisíveis remonta a Antiguidade Romana, ganha notoriedade, graças ao direito canônico, com o surgimento da implícita cláusula rebus sic nos contratos de trato sucessivo, ganha status de norma jurídica em códigos dos setecentos como o Código da Prússia de 1794 e, a partir do Código Napoleônico de 1804, que influenciou todas as codificações posteriores, inclusive o Código Civil brasileiro de 1916, passou a sofrer profunda rejeição diante da desejada certeza, completude e perpetuidade, que, prepotentemente, se atribuiu ao fenômeno da codificação, bem como ao dogma da autonomia da vontade e a decorrente vinculação absoluta das partes ao contratado.[2] [3]
Projetar e compreender o futuro, não por acaso, exige constante análise crítica do passado.
Em tempos de pandemia mundial, o surto do novo coronavírus de 2019, é oportuno recordar que o renascimento da ideia da imprevisão, juntamente com o fenômeno da descodificação do direito privado, teve como causa a catástrofe que a Primeira Guerra Mundial causou nas relações contratuais e na economia europeia, impondo ao legislador a edição de normas extravagantes admitindo revisão contratual em decorrência de acontecimentos supervenientes à contratação e imprevisíveis.
O exemplo mais famoso, em França, foi a Lei Faillot, de 21 de janeiro de 1918, que criou regras excepcionais para a aplicação da teoria da imprevisão no Direito francês. O ressurgimento da doutrina revisionista dos contratos, negada pelo Código Napoleônico e, por necessidades econômicas posteriores à guerra, resgatada na Lei Faillot, autorizou os juízes e tribunais franceses a resolverem ou revisarem os contratos que tivessem sido celebrados antes da guerra.[4]
Diversamente do Código Beviláqua, em que pese o Código Civil de 2002 tenha acolhido a teoria da imprevisão e contemple expressamente dispositivos que viabilizam a resolução ou revisão dos contratos quando comprovado desequilíbrio na relação contratual entre a prestação e a contraprestação, bem como o Código de Defesa do Consumidor proteja o contratante consumidor contra a onerosidade excessiva, crê-se que a catástrofe que a primeira pandemia do século XXI causará nas relações contratuais e, de conseguinte, na economia nacional e internacional, exigirá uma reformulação da própria ideia da imprevisão contratual. Necessidade que, mais uma vez, exigirá dos juízes e tribunais do país uma posição de vanguarda, a fim de reconstruir o direito privado em tempos de crise.[5]
Essa ideia que, nos últimos dias, deve ter passado pela mente de vários juristas além desse que escreve, já está materializada no Projeto de Lei nº 1179, de 2020, apresentado ao Senado Federal pelo Senador Antonio Anastasia.[6]
O projeto de lei visa instituir normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus (COVID-190).
A mens do projeto de lei brasileiro é a preservação das relações jurídicas privadas e a proteção aos vulneráveis, como ocorreu nos últimos dias em parlamentos como o dos Estados Unidos, da Alemanha, do Reino Unido e da Irlanda do Norte.
Na justificação, consta que o projeto de lei tem como princípios: (1) manter a separação entre relações paritéticas (de Direito Civil e de Direito Comercial) e relações assimétricas (de Direito do Consumidor e das Locações Prediais Urbanas); (2) não alterar as leis vigentes, dado o caráter emergencial da crise gerada pela pandemia, mas apenas criar regras transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos dos códigos e leis extravagantes; (3) limitar-se a matérias preponderantemente privadas, deixando questões tributárias e administrativas para outros projetos; (4) as matérias de natureza falimentar e recuperacional foram deixadas no âmbito de projetos já em tramitação no Congresso Nacional.
O Senador Anastasia atribui a iniciativa do projeto ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, e a coordenação técnica ao Ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça, e ao Conselheiro Otavio Luiz Rodrigues Jr., do Conselho Nacional do Ministério Público. Não por acaso, a inspiração do projeto de lei foi a já referida Lei Faillot, de 21 de janeiro de 1918.[7]
O projeto reconhece que os efeitos da pandemia configuram caso fortuito ou de força maior. Todavia, explicita que a invocação dessa excludente de responsabilidade civil contratual não se aplica às obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia, estabelecendo como termo inicial da pandemia no Brasil o dia 20 de março de 2020.[8] [9]
Modo igual, ao tratar da resilição, resolução e revisão dos contratos, torna fatos reconhecidamente previsíveis por lei — para fins de aplicação dos arts. 478, 479 e 480 do Código Civil — o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.[10] [11]
Nesse aspecto o projeto de lei não inova, mas apenas consagra através de lei entendimento jurisprudencial já consolidado no Superior Tribunal de Justiça sobre a impossibilidade de resolução ou revisão contratual com base na imprevisão quando a onerosidade excessiva decorreu de aumento da inflação, da variação cambial do dólar, por exemplo, ou de modificações do padrão monetário no país como ocorreu quando do Plano Real.[12]
De outro lado, o projeto é inovador ao, tutelando o direito constitucional à moradia, suspender até 31 de dezembro de 2020 os despejos de imóveis prediais e até 30 de outubro o pagamento de alugueres vencíveis a partir de 20 de março para locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração em decorrência do coronavírus.[13]
Em verdade, ao menos no que tange aos contratos de locação residencial, o que o projeto estabelece é um dever legal de obrigatoriedade de renegociação em decorrência do caso fortuito ou de força maior que são os efeitos da pandemia, com a flagrante intenção de esvaziar a necessidade de apelo à imprevisão e, por decorrência, de evitar o ajuizamento de milhares de ações no poder judiciário.
Nesse aspecto, a nova ideia de imprevisão seria, temporariamente, não lançar mão da teoria da imprevisão, sob pena de agravar ainda mais a consequências econômicas e sociais da crise.
Sob o prisma a relação obrigacional como relação de cooperação, pode-se afirmar que o projeto de lei cria ao locador de imóvel residencial um dever cooperativo de suportar a dilação do adimplemento da prestação devida pelo locatário, como forma de manter o negócio jurídico e, em especial, garantir ao vulnerável o direito à moradia até que seja superada a pandemia.[14]
Acredita-se que, assim como a Lei Faillot em França, o PL nº 1179 ainda sofrerá aprimoramentos e ampliações durante o processo legislativo. Todavia, desde já, deve-se registrar como louvável a rápida iniciativa conjunta dos poderes legislativo e judiciário no intento de conferir novos e menos incertos contornos normativos à ideia de imprevisão contratual em tempos de coronavírus.
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Notas:
[1] OSTI, Giuseppe. Clausola Rebus sic Santibus in Novíssimo Digesto Italiano, p. 354: Se as coisas se mantiverem no mesmo estado, o pacto se mantém.
[2] O § 377 do Código Prussiano de 1794 admitia expressamente a cláusula rebus sic stantibus. Em contrapartida, o art. 1.134 do Código Napoleônico de 1804 estabeleceu norma flagrantemente contrária à aplicação teoria da imprevisão, afirmando que o contrato faz lei entre as partes e que os contratantes não podem revogar o contratado sem consentimento mútuo.
[3] Para uma contextualização histórica da imprevisão: SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão de Contratos: Do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
[4] A Lei Faillot tratava dos contratos de fornecimento de carvão, concluídos antes da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918), mas que sofreram impacto por causa do conflito. A iniciativa francesa criou regras excepcionais para a aplicação da teoria da imprevisão.
[5] Na lição de Judith MARTINS-COSTA, exige-se para a incidência do art. 478 do CC, “a comprovada realização das condições – inafastáveis e cumulativas a saber: (i) que o contrato não se classifique como de execução instantânea; (ii) que o fator de desequilíbrio seja superveniente, isto é, que o evento causador da excessiva onerosidade seja superveniente à conclusão de contrato comutativo, ou de seu aditamentos; bem como que o evento causador do desequilíbrio: (iii) tenha sido, no momento da conclusão do contrato (ou da sua renovação, ou do aditamento), imprevisível às partes; (iv) não seja imputável à parte que o alega; (v) cause a uma das partes <<onerosidade excessiva>> e (vi) à outra parte <<extrema vantagem>> e (vii) escape ao risco próprio do negócio, isto é: que o risco não se classifique como <<risco normal do negócio>>”. Tratando-se de relação de consumo, a incidência é da segunda parte do inc. V do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor: “desde que caracterizadas e comprovadas as condições alie exigidas – isto é, a ocorrência de fatos supervenientes que tornem as prestações excessivamente onerosas, em prejuízo do consumidor – caber a revisão” (A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 655 e 656).
[6] Se aprovado, o projeto de lei muda temporariamente regras para despejo de inquilinos que alugam imóveis residenciais, suspende prazos de prescrição, restringe o direito de devolução de mercadorias previsto no CDC, permite assembleias de empresas, condomínios e outras pessoas jurídicas na modalidade virtual e prorroga a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados.
[7] Consta expressamente da justificação ao Projeto de Lei que: Algumas das normas contidas neste projeto serão apresentadas pelo Min. Dias Toffoli ao Conselho Nacional de Justiça, sob a forma de recomendação aos magistrados brasileiros. Permanecerá, contudo, a necessidade de uma alteração legislativa, que terá efeitos gerais e vinculantes para toda a população brasileira.
[8] O dia 20 de março de 2020 foi o da publicação do Decreto Legislativo nº 6, que reconheceu, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.
[9] Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.
[10] Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.
§ 1° As regras sobre revisão contratual previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.
§ 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.
[11] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
[12] Respectivamente: RESp 744446/DF, 2ª T. do STJ, rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 05.05.2008: Não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato, como há muito afirma a jurisprudência do STJ; AgRg no REsp 1518605/MT, 3ª T. do STJ, rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 12.04.2016: A variação ocorrida no valor da moeda americana ao final do ano de 2008, com reflexo no contrato de compra e venda de fertilizantes, indexado com base na variação do dólar americano, não se revela imprevisível a ponto de autorizar o Poder Judiciário, com base na Teoria da Imprevisão, a proceder à sua revisão e alterar o indexador estipulado; e REsp 1321614/SP, 3ª T. do STJ, rel. p/acórdão Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 03.03.2015: O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, não autorizam concluir pela imprevisibilidade desse fato nos contratos firmados com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária.
[13] Note-se que o projeto apenas diferiu o pagamento dos alugueres de imóveis residenciais e não contemplou na benesse legal as locações não residenciais (comerciais).
[14] Sobre a relação obrigacional como relação de cooperação: MARTINS-COSTA, Judith, ob. cit., p. 234-237.