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Direito Agrário - Foto: Daniel Jobim

A quebra de contratos e a Teoria da Imprevisão frente ao COVID-19

por Marcus Reis.

 

Com muita honra recebi a tarefa de buscar e compartilhar conhecimento a respeito dessa intrincada teoria que, por certo, será muito lembrada e, portanto, deverá ser entendida por todos que tomam e concedem créditos no Agronegócio – a Teoria da Imprevisão.

O que mais a sociedade civil brasileira carece nesse momento é de informação e direcionamento. E é isso que tentarei levar aos leitores.

O que é que acontecerá com as obrigações contratuais durante e depois da pandemia?  O que fazer quando a pandemia passar?

Devo cumprir meus contratos na integralidade ou não?

Devo cobrar o cumprimento dos contratos sobre os quais sou contratante ou não?

O que diz o Direito a respeito disso?

Qual será o posicionamento do Judiciário?

Como os advogados devem se preparar?

Essas são perguntas que ainda não podem ser respondidas.

Tentarei então nortear as discussões e dirimir parte das dúvidas com base no histórico, nas naturezas jurídicas de cada instituto e nas experiências passadas e já experimentadas a respeito do tema.

A princípio, o fundamento legal hábil a responder tais perguntas é encontrado no art. 317 do Código Civil Brasileiro:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Eis aqui a base da Teoria da Imprevisão.

É de costume e de pacificada jurisprudência e doutrina que, uma vez concluído o contrato, deve este permanecer incólume e imutável em suas disposições.

A esta imutabilidade característica do Direito Romano, nos ampara o princípio Pacta Sunt Servanda, significando que “os pactos devem ser observados”. Em outras palavras: o contrato faz lei entre as partes.

Essa obrigatoriedade de cumprimento das obrigações formam o sustentáculo do direito contratual.

Modernamente, porém, o dirigismo estatal vem trazendo às sociedades uma nova concepção dos contratos, fazendo pesar sobre eles o palio da supremacia do interesse público sobre o privado, levando a uma atenuação da rigidez do famoso Princípio Pacta Sunt Servanda.

Como se observa, a regra geral é a da imutabilidade da relação contratual por seus próprios termos, princípio este apenas atenuado pela prevalência do interesse coletivo sobre o privado.

Entretanto, atualmente, a Justiça brasileira vem admitindo com mais frequência a revisão das condições contratuais em situações excepcionais.

A antiga rigidez imutável do contrato cada vez mais abre espaço ao bom senso da revisão, onde a sentença pode substituir, no caso concreto, a vontade das partes contratantes.

Os casos mais comuns de revisão contratual ocorrem quando há abuso de direito ou enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra.

No caso de abuso de direito, o cumprimento do contrato poderá ser paralisado ou modificado sempre que se observar o desvio da sua função social e econômica. Nesse sentido, o art. 421 do Código Civil assim disciplina:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Ainda sobre o tema, Venosa[1] comenta que: “A possibilidade de intervenção judicial no contrato ocorrerá quando um elemento inusitado e surpreendente, uma circunstância nova, surja no curso do contrato, colocando em situação de extrema dificuldade um dos contratantes, isto é, ocasionando uma excessiva onerosidade superveniente em sua prestação. O que se leva em conta, como se percebe, é a onerosidade superveniente. Em qualquer caso, devem ser observados os riscos normais do negócio. Nem sempre essa onerosidade equivalerá a um excessivo benefício em prol do credor. Razões de ordem prática, de adequação social, fim último do direito, aconselham que o contrato nessas condições excepcionais seja resolvido, ou conduzido a níveis suportáveis de cumprimento para o devedor.”

E a doutrina de Venosa encontra guarida no art. 478 de nosso Código Civil:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.

Um contrato busca sempre o cumprimento de prestações a vencer, o que justifica justamente a previsão de situações de futuro. Portanto, a imprevisão que justifique a revisão contratual deverá levar em conta situações absolutamente imprevisíveis aos olhos das partes, não se admitindo intervenções judiciais em casos que fugirem dessa presunção e que corresponderem a fatores externos perfeitamente previsíveis.

A imprevisão deve, portanto, ser fenômeno global, que atinja a sociedade de modo geral ou de parte considerável desta. Tome-se o exemplo de uma guerra, uma revolução ou algo do gênero.

Por outro lado, se uma parte reconhecer o desequilíbrio do contrato, o litígio poderá ser evitado desde que ela opte por modificar equitativamente as condições do acordo de modo a reequilibrá-lo.

O Código Civil expressa essa possibilidade em seu art. 479:

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

O Juiz ao examinar uma situação de revisão ou resolução contratual, deve levar em conta a consciência média da sociedade, devendo sempre pautar suas decisões nessa medida social.

Não pode, porém, o magistrado permitir que o judiciário seja palco de proteção ao mau devedor que intente utilizar-se da teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva com má fé. Desequilíbrios econômicos, oscilações de moeda e outros fatores que em países desenvolvidos e estáveis possam até mesmo ser considerados imprevisíveis, no Brasil não podem ser tidos como extraordinários ao ponto de se admitir a intervenção estatal, pois são bastante comuns no país.

Quanto aos contratos agrários, em tempos atuais, dado ao fenômeno da globalização, da tecnificação das lavouras, da tecnologia no campo, do acesso à informação ampla e das incontáveis possibilidades de crédito disponíveis ao Agronegócio, não mais se admite a aplicação da teoria da imprevisão em colheitas, entendendo os tribunais pátrios que o advento de pragas, fenômenos climáticos, oscilações de moeda e preço de produtos são circunstâncias absolutamente previsíveis ao homem do campo moderno.

O último exemplo clássico de utilização da teoria da imprevisão em larga escala ocorreu após o advento da Primeira Guerra Mundial através da famosa Lei Failliot, na França em janeiro de 1918, a qual autorizou a resolução dos contratos firmados antes da guerra uma vez que sua execução se tornou excessivamente onerosa ao fim do conflito.

Como se vê, somente se aplica a teoria da imprevisão ou da excessiva onerosidade em casos excepcionais, quando se encontrarem presentes acontecimentos imprevisíveis ou extraordinários.

O Juiz, dessa forma, terá de mergulhar nos fatos do caso concreto, não se limitando à aplicação da teoria de forma genérica. Terá de analisar cada caso e suas nuances exatas e peculiares, deixando a subjetividade de lado, observando se os acontecimentos atingiram uma camada mais ampla da sociedade. Caso contrário, qualquer ocorrência banal servirá de argumento ao não cumprimento do contrato.

Assim, somente considerar-se-á como extraordinário o fato anormal capaz de afastar o contrato do curso ordinário das avenças naturais e será considerado imprevisível apenas o caso fortuito ou de força maior que não puder ser previsto mesmo com toda a diligência das partes.

Contudo, a revisão ou resolução contratuais só serão possíveis em espécies comutativas de contratos bilaterais ou unilaterais onerosos (aqueles com prestações certas e determinadas), jamais em contratos aleatórios (quando há incerteza quanto aos resultados do contrato), ou seja, não se poderá considerar imprevisível a álea (o risco) do próprio negócio quando esta for própria de seu objeto.

Importante frisar, ainda, que os fatos ensejadores da onerosidade excessiva não poderão ter sua origem por culpa do próprio devedor, o qual também não poderá estar em mora com outras cláusulas contratuais diferentes daquela a que se dispõe discutir a imprevisibilidade, sob pena de não ver seu pleito analisado.

Em meu livro, Crédito Rural – Teoria e Prática, Editora Gen Forense, 2018, a respeito da aplicabilidade da Teoria da Onerosidade Excessiva em sede de contratações envolvendo CPRs, pude tecer posicionamento favorável à inaplicabilidade da Teoria da Imprevisão frente a algumas questões específicas.

As inúmeras situações prejudiciais à atividade agrícola, sejam elas de ordem econômica (variação de preço do produto no mercado externo, encarecimento de insumos, variação cambial etc.), sejam elas de outras espécies (intempéries climáticas e questões ligadas às pragas), influenciam diretamente esse nicho produtivo.

Dessa forma, a teoria da onerosidade excessiva foi suscitada em diversos momentos, como forma de readequação de contratações firmadas.

Nesse particular debate, não bastasse a literalidade do artigo 11o da Lei nº 8.929/94, mantido pela Lei do Agro, predispondo que “não pode o emitente da CPR invocar em seu benefício o caso fortuito ou de força maior”, o Superior Tribunal de Justiça, em diversas oportunidades firmou o entendimento de que, ainda que não houvesse expressamente essa impossibilidade de suscitação de caso fortuito e/ou de força maior, não pode o produtor falar em imprevisibilidade de alteração de preços, variação cambial, incidência de pragas e fenômenos climáticos prejudiciais à lavoura como fatores imprevisíveis aos labores agrícolas.

Como amplamente divulgado por aludida Corte Superior, as questões acima são corriqueiras à atividade agrícola, os riscos mencionados são inerentes ao plantio e à venda de “commodities” já que se colocam como caracteres indissociáveis ao próprio negócio.

Por outro lado, se a questão da onerosidade excessiva frente a situações entendidas como de razoável previsibilidade pelo Tribunal não pode ser invocada, o que se dizer diante de uma pandemia que mobilizou e parou o planeta?

A resposta a esta pergunta não é tão óbvia.

Como citei acima, o Judiciário por certo usará o bom senso, analisará cada caso de maneira independente e individual, não atendendo a manadas de casos por analogia.

A conciliação será peça fundamental à solução dos conflitos e será utilizada como ferramenta utilíssima à solução dos conflitos que se assemelham.

Os Juízes deverão entender a real necessidade de cada contratante e suas especificidades frente ao caso concreto.

Apesar de um caso clássico de caso fortuito e de força maior completamente imprevisível, não poderão os magistrados aplicar a Teoria da Imprevisão a todos que baterem às portas do judiciário em razão da pandemia, pois, como ensina o ditado popular, enquanto uns choram, outros vendem lenços, e isso deverá ser apurado.

Diferentemente dos bares e restaurantes, das academias de ginástica, dos eventos e congressos cancelados e tantos outros negócios que sofreram diretamente os impactos da pandemia, o Agronegócio vai muito bem. O Brasil bateu recordes de exportação graças ao Agro; as commodities agrícolas batem recordes de preços e o setor continua suportando o PIB e deverá ser o único a crescer em 2020.

Tive a honra de intermediar um webinar realizado no último dia 29/04, no qual participaram o presidente do STJ, Ministro João Otávio de Noronha, o ilustre professor Silvio Venosa e o presidente da OAB/Minas Gerais, Dr. Raimundo Júnior. Nessa oportunidade, pude confirmar as teses aqui discutidas. Tanto o ministro como o professor Venosa compactuam com a posição de análise particular e detalhista de cada contrato antes de aplicar a revisão, além de fortemente recomendarem a tentativa de composição das partes antes da provocação do Judiciário.

De qualquer forma, como dito, cada caso deverá ser interpretado individualmente, pois o setor sucroalcooleiro, por exemplo, está sentido os efeitos da pandemia com a baixa do petróleo e do consumo; os hortifruti também sentiram e outras áreas ligadas ao Agro experimentaram perdas dignas de revisão.

Por este ângulo, o candidato à Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva terá de provar dela fazer jus.

Os oportunistas deverão ser afastados.

O joio deverá ser separado do trigo e esperamos que a justiça seja aplicada cumprindo seu papel de pacificadora social levando segurança jurídica a todos e evitando o caos, pois tudo isso passará e a vida retornará ao normal de maneira diferente, melhor, mais humana, cooperativa e solidária.

Forte abraço a todos e cuidem-se.

Uberlândia, 21 de mai. de 2020.

Nota:

[1] Venosa, Silvio de Salvo, Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, Volume II, 16a Edição, São Paulo, Atlas, 2016, pag. 526.

Marcus Vinícius de Carvalho Rezende Reis – CEO no Reis Advogados, sócio da Nagro Crédito Agro, Vice Presidente da Comissão Especial de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB Federal, Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU, Membro Honorário do Notório Saber da Associação Brasileira de Direito do Agronegócio (ABD-AGRO), escritor e autor dos livros “Manual Jurídico da CPR – Teoria e Prática da Cédula de Produto Rural” e “Crédito Rural – Teoria e Prática”. MBA em Gestão Empresarial e MBA em Direito Empresarial. Palestrante nos principais eventos voltados ao Direito do Agronegócio e atualmente um dos maiores especialistas da área no país.

 

Direito Agrário

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