por Cláudio Grande Júnior.
Foi recentemente promulgada e publicada a Lei Federal n.º 13.456, de 11 de julho de 2017, dispondo sobre regularização fundiária, rural e urbana, e outras questões correlatas. Trata-se do resultado final da conversão em lei da Medida Provisória n.º 759, de 22 de dezembro de 2016.
A nova lei traz mais uma vez à tona o problema da ocupação regular da terra como matéria afeita ao Direito Agrário. Regularização fundiária não é tema restrito meramente ao Direito Civil e ao Direito Administrativo, como pode parecer à primeira vista. Além da necessária fundamentação no Direito Constitucional, o tema inevitavelmente percorre o Direito Ambiental e só se apresenta e se dinamiza por completo com os direitos agrário e urbanístico, determinada a preponderante incidência de um ou outro destes conforme principalmente a localização da área, rural ou urbana.
A regularização fundiária rural é tema de Direito Agrário porque, em regra, se relaciona com o exercício de atividades agrárias. Estas são objeto do ramo específico do direito, denominado agrário, que, segundo Querubini e Zibetti, “é o conjunto de normas de direito privado e público que regulam as relações decorrentes das atividades agrárias, com vistas ao desenvolvimento agrário sustentável em termos sociais, econômicos e ambientais“[1].
Normalmente, as atividades agrárias acontecem no meio rural. Nem sempre, é verdade. Porém, a maioria das atividades agrárias desenvolvidas como meio de vida exige extensões maiores de terras e, por isso, inevitavelmente acontecem em áreas rurais. Outras atividades econômicas não agrárias, como de mineração e até mesmo estritamente industriais, podem acontecer na zona rural. Mas, em muitos países, incluindo o Brasil, são as atividades agrárias que dominam os espaços rurais. Assim, as regularizações fundiárias rurais se relacionam intimamente com as atividades agrárias, na maioria das vezes tendo estas por pressupostos, objetivos e consequências.
No Brasil, particularmente, a regularização fundiária de áreas onde são desenvolvidas atividades agrárias continua um problema a ser resolvido, em maior ou menor medida em todas as regiões do país, por diferentes motivos, mas principalmente na Amazônia Legal, dada a ocupação mais recente de muitas áreas de selva nessa região. A regularização fundiária é necessária porque facilita ou, em alguns casos, só ela que viabiliza o acesso a certas ferramentas de desenvolvimento agrário, como, por exemplo, o crédito rural. Relembrando que o Direito Agrário não tem por objeto regular a atividade agrária como um fim em si mesma, mas reger as relações jurídicas dela decorrentes, tendo em vista, sobretudo, as repercussões econômicas, sociais, ambientais e culturais, para toda a sociedade, da execução, ou não, das atividades agrárias e do modo como são organizadas e exploradas[2]. Por isso, conforme as diferentes realidades e problemas vividos em cada país, o conteúdo do Direito Agrário pode variar enormemente de um para outro, mesmo sempre tendo por núcleo as relações jurídicas decorrentes das atividades agrárias.[3] Assim, se, na Europa, o Direito Agrário foi organizado num momento no qual o foco já era o exercício das atividades agrárias empresarialmente organizadas; na América Latina, o Direito Agrário precisou se ocupar da questão preliminar das grandes propriedades territoriais privadas, nas quais não eram ou eram insuficientemente desenvolvidas atividades agrárias, impedindo outras pessoas de desenvolvê-las, e o das atividades agrárias desenvolvidas em terras irregularmente ocupadas. Infelizmente, esses problemas persistem no Brasil, sendo prova inequívoca disso a recente promulgação da Lei Federal n.º 13.456, de 2017, modificando em diversos pontos o tratamento jurídico conferido a eles.
A nova lei dividiu a opinião pública, desde a publicação da Medida Provisória n.º 759, de 2016, que deu início ao processo legislativo. Potenciais beneficiários e profissionais do direito que militam no enfretamento da questão celebraram o novo diploma legal. Por sua vez, oposicionistas ao Governo Federal e outros heterogêneos grupos alcunhavam desde antes o diploma como “Medida Provisória da Grilagem”, porque favoreceria grileiros de terras e regularia aquisições em áreas de conservação. Alegam que a pretensão de atendimento aos mais pobres seria apenas uma fachada para a legalização simultânea de latifúndios grilados, agravando os desmatamentos e os conflitos de terras, principalmente na Amazônia[4].
Para que o debate não fique apenas na esfera política e avance para a jurídica, as novas disposições legais devem ser analisadas à luz do restante Direito Agrário e em nível superior, qual seja, o constitucional. Neste caso, não apenas no que diz respeito às disposições agrárias constantes explicitamente no texto constitucional, mas à própria interpretação do Direito Agrário à luz da Constituição, o que exige observância aos fundamentos[5] e aos objetivos fundamentais[6] da República Federativa do Brasil[7]. A regularização fundiária também deve ter por pressuposto a sustentabilidade ambiental das atividades agrárias desenvolvidas. Logo, não estão envolvidos apenas os interesses dos agro produtores empresariais maiores e mesmo familiares, mas diretamente o bem estar das populações rurais, em maior parte composta por trabalhadores rurais, e o das comunidades tradicionais, bem como os dos indígenas. A sobrevivência, atividades econômicas e qualidade de vida das populações urbanas também estão envolvidas, pois estas dependem dos resultados das atividades agrárias, o que retorna a análise ao problema da execução, ou não, das atividades agrárias e do modo como são organizadas e executadas.
Assim, emergem as seguintes indagações formuladas por Eduardo Gonçalves Rocha: quais terras devem ser regularizadas, para quem e para qual fim[8].
A propaganda do Governo Federal é no sentido de que o Presidente da República sancionou “medida que beneficia milhares de cidadãos de baixa renda” e que “a resolução do problema histórico da falta de documentação da terra, que representa um grande entrave ao acesso às políticas públicas para milhares de agricultores familiares brasileiros, está perto do fim”[9]. Agricultores familiares e cidadãos de baixa renda estão sendo beneficiados, mas, por outro lado, a nova lei modificou o art. 2º da Lei Federal n.º 11.952, de 2009, para que a exploração indireta da terra deixasse de ser entendida como “atividade econômica exercida em imóvel rural por meio de preposto ou assalariado”, para ser definida como a “atividade econômica exercida em imóvel rural e gerenciada, de fato ou de direito, por terceiros, que não sejam os requerentes”. Além do que, anteriormente, o art. 6º previa que podiam ser regularizadas as ocupações de áreas de até 15 módulos fiscais e não superiores a 1.500 hectares. Agora, podem ser regularizadas as ocupações de áreas não superiores a 2.500 hectares, justamente o teto para o qual não se exige autorização exclusiva do Congresso Nacional (CF, art. 49, XVII, e 188, § 1º). Prosseguindo, as regularizações teriam como base o valor mínimo estabelecido em planilha referencial de preços, considerando a antiguidade da ocupação, especificidades de cada região e dimensão da área. Agora, continua sendo considerado o tamanho da área, mas o preço será estabelecido entre 10% e 50% do “valor mínimo da pauta de valores da terra nua para fins de titulação e regularização fundiária elaborada pelo INCRA, com base nos valores de imóveis avaliados para a reforma agrária, conforme regulamento” (Lei n.º 11.952/09, art. 12, § 1º). Se for pago 100% do valor e o imóvel tiver até um módulo fiscal, ficam extintas as condições resolutivas previstas no art. 15, desde que respeitado o período de carência e tenham sido cumpridas todas as condições resolutivas até a data do pagamento. Por fim, as possibilidades de aplicação da Lei n.º 11.952/09 fora da Amazônia Legal também foram aparentemente ampliadas (art. 40-A).
A adequada verificação de constitucionalidade de dispositivos legais como os acima elencados não pode se dar apenas por parâmetros puramente normativos, sendo necessário agregar elementos factuais para uma melhor compreensão do bloco de constitucionalidade que a norma legal não pode afrontar. Nessa perspectiva, citando Ruggeri e Spadaro, ensina Juliano Taveira Bernardes que “o parâmetro de controle assume composição mista, compreendendo tanto elementos “normativos” quanto “factuais”[10]. Nos direitos agrário e ambiental isso talvez seja ainda mais comum e, consequentemente, evidente do que em outros ramos do direito.
Além disso, o restante do Direito Agrário e até mesmo do ordenamento jurídico vigente também devem ser considerados, para se evitar ilogicidades internas que poderiam levar a resultados desarrazoáveis e inevitavelmente inconstitucionais. Por isso, prossegue Bernardes, a averiguação da constitucionalidade não se resume ao confronto polarizado exclusivamente entre normas constitucionais e normas questionadas. Muitas vezes, a operação se realiza de modo “triangular”, considerando também outras normas infraconstitucionais como parâmetros subsidiários. “É inconcebível imaginar que a resolução do conflito entre a constituição e a lei possa prescindir, inteiramente, da análise do resto do sistema normativo”[11].
Concluindo, a regularização fundiária rural foi e continua sendo um importante tema de Direito Agrário no Brasil. Os pontos polêmicos da nova lei federal, como os acima citados neste texto, podem ser discutidos para além do espectro político, em um verdadeiro estudo jurídico-científico de Direito Agrário, no qual a constitucionalidade deles deva ser discutida tomando por parâmetro de controle não apenas o texto da Constituição, mas a realidade vivida (parâmetro misto) e o restante do ordenamento jurídico, principalmente o conjunto de normas que compõem o Direito Agrário (parâmetro subsidiário). É a mensagem que fica aos que venham a se debruçar sobre o estudo dessas novas questões legais.
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Notas:
[1] ZIBETTI, Darcy Walmor; QUERUBINI, Albenir. O direito agrário brasileiro e sua relação com o agronegócio. Direito e democracia: revista de divulgação científica e cultural do Isulpar. Curitiba, vol. 1, n. 1, jun. 2015, p. 2. Disponível em: <http://www.isulpar.edu.br/revista/direito-e-democracia/file/130-o-direito-agrario-brasileiro-e-a-sua-relacao-com-o-agronegocio.html >. Acesso em: 19 ago. 2017.
[2] GRANDE JÚNIOR, Cláudio. Usucapião sobre terras públicas e devolutas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 1.
[3] ZIBETTI, Darcy Walmor; QUERUBINI, Albenir. Op. cit. p. 16-17.
[4] GRANDE JÚNIOR, Cláudio. Brasil: país das regularizações fundiárias. Coluna opinião jurídica PGE-GO, Goiânia, jul. 2017. Disponível em: <http://www.sgc.goias.gov.br/upload/arquivos/2017-07/28—brasil-o-paIs-das-regularizaCOes-fundiArias.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2017.
[5] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
[6] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[7] BARROSO, Lucas Abreu. A política agrária como instrumento jurídico da efetividade dos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil na Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://abda.com.br/texto/LucasBarroso2.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2017.
FURTADO, Fabrício Ribeiro dos Santos. O Direito agrário como instrumento de efetivação dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. In: TARREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco. Fundamentos constitucionais de direito agrário: estudos em homenagem a Benedito Ferreira Marques. São Paulo: SRS, 2010, p. 27-47.
[8] https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=10207067410122028&id=1783987550
[9] GRANDE JÚNIOR, Cláudio. Brasil: país das regularizações fundiárias. Op. cit..
[10] BERNARDES, Juliano Taveira. Controle abstrato de constitucionalidade: elementos materiais e princípios processuais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 144
[11] BERNARDES, Juliano Taveira. Op. cit., p. 149.