por José Carlos Vaz.
O Projeto de Lei nº 4.588/2021, que propõe o estabelecimento de uma “Política Nacional de Proteção ao Produtor Rural” tem suscitado manifestações de defesa de “segurança jurídica” e de “não mexer em negócios que estão funcionando bem”.
O referido projeto abrange várias dimensões de regramento: nos procedimentos judiciais, nas relações do Estado com o produtor rural, no crédito rural, em outros contratos em que haja interveniência de produtor rural. É no contexto desta última dimensão que está inserido este texto.
Como todo projeto de lei, o de nº 4.588/2021 também passará pela depuração e ajustamento próprios da democracia, embora, cabe ressaltar, o processo legislativo brasileiro permita manobras para impedir o trâmite de uma proposição, independente do seu mérito, sem a necessidade de votação: muitas vezes basta apenas um congressista (se for líder, então …).
De qualquer forma, se o PL nº 4588/2021 puder ser conduzido tecnicamente, sem alaridos terroristas e tentativas de construção de narrativas, suscitará o retorno à discussão de temas que não estão bem resolvidos, e que inclusive foram objeto de embates relativamente recentes entre representantes dos produtores e dos compradores de produtos agropecuários.
Fazemos menção às discussões que resultaram na edição da Lei nº 14.112/2020, quando duas alterações importantes foram feitas no regramento aplicável aos negócios entre produtores e traders: o caso fortuito ou a força maior passou a ser aplicável às CPR – Cédula de Produto Rural; e ficou definido que produtor rural pessoa física pode utilizar a recuperação judicial, sem necessidade de prévio registro na junta comercial.
Elencamos a seguir alguns desses temas não bem resolvidos:
- A falta de transparência na formação da relação de troca produto/insumo utilizado nos contratos de barter, bem como quanto à natureza do relacionamento negocial entre o comprador da CPR e o vendedor do insumo, que na prática atua como preposto da contraparte do produtor.
- A utilização de cláusulas leoninas e penalidades abusivas, em desfavor do produtor rural, nos contratos comerciais em que ele é parte, bem como a falta de informação da fonte de recursos utilizada para a aquisição antecipada.
- A existência de assimetrias informativas e desequilíbrio de forças econômicas, entre um produtor rural, que usa o “preço de mercado”, e um conglomerado corporativo multinacional que atua na venda de insumos agropecuários e/ou em logística e/ou na compra da produção, e forma o “preço do mercado”.
- O argumento questionável de que toda compra antecipada de produto agropecuária tem uma correspondente venda antecipada, quando é sabido que essa situação não é devidamente caracterizada no contrato de que participa o produtor.
- As premissas frágeis utilizadas no estabelecimento de decisões judiciais consideradas como paradigmas relativos a “riscos típicos da atividade produtiva rural”, pois não existe seguro rural ou proteção de preço suficiente e exequível para amparar a totalidade da produção agropecuária brasileira.
- A inexistência de segregação patrimonial/financeira do produtor rural e do seu empreendimento, aumentando o risco de sua atividade e prejudicando a adequada caracterização de um evento de caso fortuito/força maior.
- A falta de previsão, nos contratos, de parâmetros passíveis de utilização no caso de frustração expressiva da produção, por motivos alheios à vontade do produtor, situações para as quais, inclusive, já poderia haver a previsão de alongamento de prazos, com ou sem utilização de arbitragem ou mediação.
A liberdade de contratar não deve servir para dar aparência de legitimidade e legalidade a atividades abusivas, estando limitada pelo princípio jurídico da boa-fé, bem como pelos ditames da boa governança corporativa, que estabelecem o primado da ética e da transparência em todos os relacionamentos de que participa uma empresa.
Nem o produtor rural pode querer se eximir das responsabilidades de boa gestão e comprometimento com o resultado de seu empreendimento, nem os traders podem quase querer voltar ao tempo em que os inadimplentes pagavam as dívidas com a prisão, a escravidão ou a entrega de um filho.
Não é afim com o ideal de uma sociedade fraterna e pluralista, que tenha como valores supremos, entre outros, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, deixar de prever, para os produtores rurais, submetidos à aleatoriedade da natureza e à concentração de mercado “fora da porteira”, tratamentos similares aos que já são admitidos para os demais empresários, para “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (Lei nº 11.101/2005, artigo 47).
Um debate aberto, pleno de razoabilidade e bom senso, poderá dar ao PL nº 4588/2021 a forma e o conteúdo mais adequados e afins com a segurança jurídica e a boa-fé contratual, podendo inclusive reconhecer que as circunstâncias contratuais podem ser diferentes, conforme a cadeia produtiva, a infraestrutura regional e a capacidade operativa de cada produtor atuar em ambientes econômicos e jurídicos menos ou mais complexos.