por Rogério Reis Devisate.
O Senado da República já aprovou o PL 2963/2019, que modifica a legislação brasileira sobre a venda de terras a estrangeiros, remetendo-o à apreciação da Câmara dos Deputados.
INTRODUÇÃO
Percebo que, não raro, as opiniões dos leigos tem se dado na superficialidade da matéria, focando-se em ser a favor ou contra a compra de terras por estrangeiros.
Para nós, juristas, em verdade, o PL 2963/2019 trata de muito mais, pois cuida tanto da aquisição da propriedade em si quanto da aquisição de posse, focando no argumento de que o país precisa de investimentos estrangeiros, mas sem nos apresentar as fontes para tal conclusão, se meramente por dogmas de natureza econômica ou se embasados em longos e fundamentados estudos de sustentabilidade, de investimentos no agronegócio, de financiamento do setor – enquanto já tramita o FIAGRO.
Também já ouvi argumentos de que ninguém é obrigado a vender. Verdade, mas o tema sob modificação legislativa está além disso, pois são muito flexíveis as dimensões negociadas: até ¼ das terras de cada município, o que em grosseiro resumo significaria até ¼ das terras do país.
E mais: há disposição de limitação de 40% da área de cada município por pessoas físicas estrangeiras da “mesma nacionalidade”, mas não se define o teto de ocupação por estrangeiros em cada município, se estes forem de várias nacionalidades. Neste caso, poder-se-ia ter até 100% da área do município ocupada por não nacionais, de origens distintas?
AQUISIÇÃO POR EMPRESAS MULTINACIONAIS OU TRANSNACIONAIS, SEM SEDE NO BRASIL
Vencidas essas indagações iniciais, temos que o PL 2963/2019 admite a compra de imóveis rurais por empresas multinacionais ou transnacionais e sem sede ou subsede em território nacional.
O seu artigo segundo remete ao Código Civil, que exige representante em território brasileiro (art. 1.134), mas isso pode criar controvérsia sobre se este terá poderes para receber citação ou que tenha equivalência com sede ou subsede em território nacional, para fins de citação, na forma do artigo 53, do Código de Processo Civil
Isso reflete diretamente no foro competente para julgar as ações que decorram de direito obrigacional, como discussões sobre contratos de compra e venda a prazo ou de parceria, envolvendo juros, inadimplemento, rescisão contratual, ações indenizatórias etc e, mesmo nas ações que tenham por foro a comarca de localização do imóvel, as citações dar-se-iam no exterior.
Pensaram nisso e nas dificuldades daí decorrentes? Deixar aos tribunais a integração dessa lacuna interpretativa não nos parece compreensível.
A par dos obstáculos processuais, não nos parece razoável que tais empresas possam vir a ter propriedades ou posses no Brasil mas sede no exterior e que nós sujeitemo-nos e ao Brasil a demandar contra elas no foro de países estrangeiros onde tenham sede ou, noutra hipótese acima considerada, a fazer lá a citação.
Ademais, ao se propor a regular o Artigo 190 da Constituição Federal, o PL 2963/2019 deve se enquadrar no objeto e na finalidade do citado dispositivo da Carta Política de 1988, assim redigido pelo Constituinte Originário:
“Art. 190. A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional.”
O comando constitucional foca na “limitação” dessa aquisição ou arrendamento, o que já estava adequadamente previsto na Lei 5709/1971 e, se não há urgência ou fato novo relevante e se a norma está recepcionada pela Carta de 1988, por qual motivo o PL vem inovar e admitir pessoas jurídicas estrangeiras como sendo as “constituídas e estabelecidas fora do território nacional” (Artigo 1º, fine).
Pelo Código de Processo Civil vigente, o foro competente será definido na forma do seu artigo 53, inciso III, sendo competente o foro do lugar onde está a sua sede, “para a ação em que for ré a pessoa jurídica”, ou onde haja agência ou sucursal (inciso b).
Até poder-se-ia fazer foro de eleição em cada contrato. Todavia, sejamos sensatos, tendo recursos vultosos para compra aqui e a lei a seu favor, tais multinacionais ou transnacionais abririam mão do que lhes favorece por um foro de eleição no Brasil?
As consequências são de dificuldades e oneração para os brasileiros, em caso de lides formadas contra tais pessoas jurídicas, com sede em outros países, para se discutir cumprimento, inadimplemento ou distrato, em contratos de arrendamento ou compra e venda. Também afetará a União e órgãos e entidades públicas, em caso de processos de Desapropriação, Discriminatória de Terras Devolutas, Ação Civil Pública por dano ambiental etc
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este ponto nos faz lembrar do Conflito de Competência suscitado em antiga ação judicial em torno do trecho ferroviário Santos x Jundiaí, em que o Barão de Mauá foi prejudicado, porque se decidiu que o foro competente era o da Inglaterra.
Se flexibilizar as regras contraria o comando do Artigo 190 da Consitutição Federal, não nos parece ser minimamente razoável criar essa controvérsia sobre a possibilidade de ser no estrangeiro o foro sobre tais debates, envolvendo terras brasileiras.
Abrir mão do foro de competência, sem se ajustar claramente o Código de Processo Civil, soaria como abrir mão da Soberania para se discutir o que ocorre em território nacional.
RJ – Niterói, 08 de janeiro de 2021.