por Fabiano Cotta de Mello.
A problemática gerada ao produtor rural — diante da pré-fixação do preço da soja nos contratos de venda futura e da elevação recorde da oleaginosa na safra 2020/2021 — parece não ter solução porque repete-se como um mantra que o pacto de compra e venda de safra futura é um contrato aleatório e que a jurisprudência do STJ não admite a aplicação da teoria da imprevisão a esse tipo de contrato, porquanto o grão vendido, cuja entrega foi diferida a um curto espaço de tempo, possui cotação em bolsa de valores e a flutuação diária do preço é inerente ao negócio entabulado.[1]
O que pouco se cogita, todavia, é a viabilidade jurídica da revisão do preço nos contratos futuros firmados entre produtores rurais e compradores sob invocação da quebra da base objetiva do negócio jurídico, devido a alteração de uma circunstância econômica imprevisível no seu grau.
Não é tecnicamente correto afirmar que o contrato de compra e venda de safra futura de soja é com contrato aleatório. Pois o contrato de compra e venda é um contrato tipicamente comutativo.
O que ocorre, pela força do disposto no art. 483, parágrafo único, do CC/2002, é a permissão do legislador civil para que se possa, no tocante à venda da coisa futura, converter esse contrato comutativo em aleatório, pela autonomia privada dos contratantes.
Portanto, a compra e venda de safra futura adquire um caráter aleatório quando as partes contratantes, livremente, assim se manifestarem. Não se pode olvidar, contudo, tratarem-se, comumente, de contratos entre desiguais, em que o agricultor tem um déficit no que tange ao exercício da liberdade de dar conteúdo às cláusulas contratuais.
Da mesma forma, é equívoco afirmar a inviabilidade da resolução ou revisão judicial de contratos de compra e venda de safra futura firmados por produtores rurais sob o argumento de que houve onerosidade excessiva e quebra da base objetiva do contrato.
Não existe uma vedação geral à resolução desses contratos por onerosidade excessiva e quebra da base objetiva do negócio jurídico, mas sim, uma necessidade de que, judicialmente, o produtor rural demonstre que houve alteração nas bases fáticas sobre as quais o negócio foi firmado, bem assim que decline e justifique os motivos do seu inadimplemento ou flagrante prejuízo com o adimplemento.
A título exemplificativo, há precedente da Terceira Turma do STJ reconhecendo a possibilidade de resolução do contrato por onerosidade excessiva e por quebra da base objetiva do contrato quando comprovada situação anormal que ultrapassou os riscos normais e razoáveis assumidos pelo produtor rural.[2]
Antes mesmo da vigência do CC/2002, o STJ, ao julgar o caso da venda futura de laranja, quando houve baixa cotação do suco concentrado de laranja na Bolsa de Mercadorias de Nova York — e ficou evidente o desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação, com manifesto prejuízo aos agricultores —, aquele Tribunal Superior corrigiu o conteúdo do contrato, por via do princípio da boa-fé objetiva.[3]
Esses julgamentos demonstram a função corretiva da boa-fé objetiva em relação ao conteúdo contratual, afastando ou revisando aquelas cláusulas que desrespeitem um padrão mínimo de equilíbrio entre as posições contratuais.[4]
A questão do desequilíbrio contratual também pode afetar os contratos de compra e venta de safra futura quando os riscos se tornarem excessivos. Vale dizer, quando demonstrada a quebra da base objetiva do contrato.
A boa-fé objetiva — fundamento da teoria da quebra da base negocial —, impõe que, até nos contratos marcados pela aleatoriedade, respeite-se o “limite do sacrifício” do agricultor, impondo à outra parte contratante o dever de renegociar a estipulação contratual que passou a provocar flagrante desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação.[5]
A noção de contrato desequilibrado abarca a modificação superveniente das circunstâncias de modo a tornar excessivamente difícil o cumprimento da prestação pelo devedor ou frustre totalmente o fim útil visado com o contrato.[6]
Na síntese de Clóvis do Couto e Silva, para além da manifestação da vontade das partes contratantes, a estrutura contratual pressupõe, para que possa exercer com normalidade a sua função de troca, uma relação estreita com a realidade econômica subjacente.[7] De modo que, se a modificação dessa realidade objetiva exigir do contratante um sacrifício econômico não suportável (no sentido de que sua assunção pelo obrigado inviabilizaria a continuidade da atividade econômica afetada pelo contrato: exigisse sua ruína econômica), a revisão judicial da avença se impõe — e de forma geral —, a fim de, atendo aos limites impostos à vontade das partes pela função social do contrato, concretizar a cláusula geral de boa-fé e a vedação de comportamento contratual abusivo.[8]
Recorde-se, ademais, que o CC/2002, no seu art. 187, positivou no direito brasileiro a teoria do abuso de direito, explicitando a necessidade de uma divisão proporcional de sacrifícios ao exercício dos direitos subjetivos, sendo ilegítimo o exercício de direito quando excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Nesse contexto, incumbe ao produtor rural demonstrar as alterações nas bases fáticas que levaram ao inadimplemento ou ao adimplemento com flagrante prejuízo, exatamente porque a correção de cláusula contratual pelo judiciário exige a superveniência de circunstâncias que imponham um sacrifício inaceitável ao agricultor ou que frustrem o fim útil do contrato de compra e venda na atividade agrícola.
Há quebra da base negocial quando as circunstâncias existentes à época da contratação se modificam quando da execução do contrato, desequilibrando a avença de uma forma desarrazoada, para além daqueles riscos que eram aceitáveis e assumíveis à época da contratação.
Não se desconhece que para o reconhecimento da quebra da base negocial não é prescindível o requisito da imprevisibilidade. Todavia, em que pese a variação da cotação da soja seja um fato provável no mercado do agronegócio, na safra 2020 houve uma imprevisibilidade do seu grau. Não era previsível uma cotação recorde e tampouco que essa elevação do preço do grão repercutisse também nos custos da próxima safra. Se o produtor tivesse antevisto esse aumento anormal no valor da oleaginosa não teria aceitado o preço pré-estabelecido pela compradora.
Na autorizada lição da Professora Karina Nunes Fritz, “a previsibilidade do evento e suas consequências precisa ser apurada concretamente e não de forma meramente abstrata”.[9]
O aumento recorde do preço da soja na safra 2020 — que, de conseguinte, já aponta também para um relevante aumento dos insumos agrícolas para o plantio da safra 2021 — põe em xeque a base negocial (e, a depender, a continuidade da própria atividade agrícola individual) e, por via de consequência, poderá, casuisticamente, ensejar a correção judicial da cláusula do preço pré-fixado quando da celebração do contrato de compra e venda de safra futura, a fim de reequilibrar prejuízos e lucros entre o produtor de soja e a compradora.
Não se está aqui dizendo que o produtor rural não deve entregar a soja como contratado.
Induvidoso que os contratos de compra e venda de safra futura, além de serem um mecanismo de fomento ao agronegócio, fazem parte de uma cadeia negocial muito maior, relevantíssima para a economia brasileira e mundial: o produtor rural firma o contrato de venda futura da safra por preço pré-estabelecido, geralmente com tradings, que, por sua vez, já negociaram o insumo em bolsas que, por sua vez, influenciarão no preço do produto final industrializado que chegará às mesas das pessoas mundo afora.
Nesse aspecto, a não entrega do grão pelo produtor rural gera um impacto em cadeia, extremamente danoso, além de ter o potencial de obrigar-lhe a arcar com responsabilizações como a prevista na denominada cláusula washout.[10]
De outro lado, nada impede que o produtor rural postule a revisão judicial da cláusula de preço, e também entregue a soja no tempo e forma contratados. Vale dizer, cumpre a obrigação contratual, mas reserva-se o direito de discutir judicialmente o preço pré-estabelecido no contrato e seus efeitos.
Em verdade, propõe-se uma posição intermédia, em que o produtor rural considera a relevância do cumprimento de sua obrigação contratual para a complexa cadeia negocial do agronegócio, mas também leva à apreciação do judiciário sua necessidade de plantar nova safra, cujos prejuízos ficarão evidentes quando da aquisição de insumos que sofreram elevado aumento, puxados pela valorização recorde da saca de soja na safra 2020/2021.
Imperioso que se demonstre ao judiciário a existência de uma correlação entre o aumento recorde do preço da soja na safra 2020/2021 e a elevação dos custos de produção para a safra vindoura, que serão suportados exclusivamente pelo agricultor — momento em que ficará flagrante o prejuízo sofrido com a entrega do grão à compradora por um preço tão abaixo do de mercado.
Também não se está dizendo que todo produtor rural poderá postular essa revisão judicial do preço. Nem que o judiciário deve substituir o preço estipulado pelas partes pelo preço de mercado à época da execução. É preciso uma demonstração de prejuízo e, de conseguinte, de não atingimento do fim útil do contrato de compra venda futura, com uma readequação do preço a fim de afastar um desequilíbrio contratual irrazoável.
Há 3 (três) perguntas a serem feitas para aferir a viabilidade jurídica de uma de revisão desses negócios jurídicos: 1ª) Em que medida essa alteração nas bases fáticas do contrato de compra e venda de safra futura relaciona-se com a impossibilidade de adimplemento parcial ou total do negócio jurídico? 2ª) O cumprimento do contrato causará prejuízo ao produtor rural, afetando, de conseguinte, o fim útil do contrato para ele? e 3ª) Qual é a dimensão do impacto econômico que o aumento recorde do preço da soja causará nos custos de plantio da próxima safra?
A depender das respostas, além de um desequilíbrio contratual no plano fático, haverá um cenário específico para requerer ao judiciário o reconhecimento do desequilíbrio contratual no plano jurídicoe, de conseguinte, a readequação da cláusula de preço pré-estabelecido
—
Notas:
[1] Dentre muitos: AgInt nos EDcl no AREsp 784.056-SP, Terceira Turma do STJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 22.09.2016).
[2] AgInt no AREsp 698.136-SP, Terceira Turma do STJ, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 24.02.2017), ressalta-se: (…) Por certo, que o contrato de venda de safra futura, trata-se de contrato oneroso aleatório, porém os riscos não podem ser de tal magnitude que venha a comprometer a função social do contrato e, em sendo constatada a desconformidade do contrato com a sua função social e com a boa-fé objetiva, ela deve ser corrigida.
[3] REsp 256.456-SP, Quarta Turma do STJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 07.05.2001, assim ementado:
COMPRA E VENDA. Laranja. Preço. Modificação substancial do mercado. O contrato de compra e venda celebrado para o fornecimento futuro de frutas cítricas [laranja] não pode lançar as despesas à conta de uma das partes, o produtor, deixando a critério da compradora a fixação do preço. Modificação substancial do mercado que deveria ser suportada pelas duas partes, de acordo com a boa-fé objetiva (art. 131 do CComercial). Recurso conhecido e provido.
[4] Sobre o papel da boa-fé frente a situações de desequilíbrio decorrente de circunstâncias supervenientes à formação do contrato, ver: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 646-664.
[5] Sobre o conceito de “limite do sacrifício” (Opfergrenze) do direito alemão, previsto no §242 do BGB, ver SILVA, op. cit., p. 130: (…) o conceito objetivo da base do negócio jurídico se vincula com a finalidade real do contrato e procura responder à questão de saber se a intenção geral dos contraentes pode ainda efetivar-se, em face das modificações econômicas sobrevindas. (…) Em verdade, cuidar-se-ia de uma impossibilidade econômica, porquanto ultrapassados os limites de que se poderia exigir de uma das partes no contrato, o denominado “limite de sacrifício” (Opfergrenze), a espécie se qualificaria como de impossibilidade posterior, ainda quando ela não estivesse prevista nas codificações do início do século, de que é exemplo o nosso Código Civil, embora nos Códigos mais recentes, como no italiano, ela apareça com a denominação de “onerosidade excessiva”.
[6] FRITZ, Karina Nunes. Revisão contratual e quebra da base do negócio, Migalhas de Peso, Portal Migalhas, 17.12.2020: “… a frustração do fim do contrato ocorre quando o fim relevante do negócio torna-se inalcançável para uma das partes, sem que a prestação se torne impossível. Com efeito, a frustração do fim do contrato distingue-se dos casos em que a prestação se torna definitivamente impossível, pois naquela o que se torna inalcançável não é a realização da prestação em si, mas o fim útil do negócio” (p. 19).
[7] SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva; org. Vera Maria Jacob de Fradera. 2. ed. rev. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014 (A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro – Extrato de parecer, publicado na Revista dos Tribunais nº 655, 1990).
[8] O STJ, ao acolher a tese da exceção da ruína econômica, já decidiu que o vínculo contratual original pode sofrer ação liberatória e adaptadora às novas circunstâncias da realidade, com finalidade de manter a relação jurídica contratual sem a quebra do sistema, sendo imprescindível a cooperação mútua para modificar o contrato do modo menos danoso às partes (REsp 1.479.420-SP, Terceira Turma do STJ, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 11.09.2015).
[9] FRITZ explica “que a revisão contratual pressupõe uma profunda e anormal alteração das circunstâncias do negócio, não reconduzível à esfera do risco das partes, que torne irrazoável — à luz da boa-fé objetiva — a execução do contrato, tal como inicialmente pactuado ou frustre o fim último do negócio. Geralmente, costuma-se dizer que o cumprimento se torna irrazoável quando se pode concluir, à partir da análise de todas as circunstâncias do caso, inclusive da repartição dos riscos, que uma das partes não teria celebrado o contrato ou teria feito sob outros termos e condições se tivesse antevisto as profundas alterações na base do negócio” (op. cit., p. 16).
[10] A cláusula washout, comum nos contratos de compra e venda de safra futura, prevê que o agricultor, acaso não entregue o produto vendido ao comprador, arcará com os custos da recompra do mesmo com base no preço de mercado.
Veja também:
– Revisão dos contratos futuros: a bola da vez?