por Rebeca Youssef.
A relação entre o desmatamento e o mercado de commodities agrícolas, apesar dos acordos e ferramentas, ainda não alcançou um patamar juridicamente seguro quanto às análises e seus efeitos.
A conformidade das propriedades rurais com a legislação ambiental deixou de ser uma preocupação restrita à relação entre a Administração Pública e produtores, passando a integrar o teor das negociações de financiamento, compra e venda de produção agropecuária. Instituições bancárias, tradings, frigoríficos e empresas do varejo: todos os elos envolvidos desde o fomento da produção até a oferta ao mercado consumidor incluem algum tipo de análise socioambiental sobre a procedência de produtos do agro brasileiro. Na prática, propriedades rurais passam por filtros de critérios ambientais e, a partir dos resultados, são aceitas ou afastadas das negociações.
Os recentes anúncios da União Europeia e dos Estados Unidos quanto à recusa de compra de produtos brasileiros com origem em desmatamento, trouxe novo fôlego ao mercado já desperto de soluções em conformidade socioambiental de cadeias produtivas.
Longe de esgotar as discussões sobre o tema, este artigo pretende explorar de maneira didática os conceitos e critérios estabelecidos para que tais verificações sejam realizadas e o impacto que essa nova política comercial impõe sobre produtores rurais, especialmente quando comparada às restritivas regras legais já vigentes no país.
“A produção agrícola é obtida às custas de direitos sociais e ambientais?”
O novo paradigma estabelecido nas verificações de conformidade socioambiental corresponde à concepção de que a regularidade das propriedades rurais envolve, também, os impactos causados ao meio ambiente e à coletividade nas suas etapas de produção. Uma propriedade desejável, neste novo cenário, é aquela cuja produção agrícola não é obtida às custas de violações de direitos.
Os critérios são diversos: cometimento de crimes e infrações ambientais, irregularidades no licenciamento, sobreposição a territórios indígenas e unidades de conservação, conflitos fundiários com povos indígenas e condições degradantes de trabalho. A propriedade rural que apresente pendências em algum desses quesitos é considerada, de imediato, indesejável nas rodas de negociações.
A resposta à pergunta acima, longe de ser simplista, tem como fonte as informações fornecidas pelos órgãos ambientais e fundiários em atividade no país, ferramentas de sensoriamento remoto e ministérios. Uma ampla gama de agtechs consegue, satisfatoriamente, reunir as informações necessárias para apresentar às empresas os principais dados ambientais de seus fornecedores:
- Multas ambientais aplicadas pelos órgãos federais e estaduais (IBAMA, ICMBio e secretarias estaduais);
- Embargo de áreas;
- Sobreposições com territórios indígenas e unidades de conservação;
- Polígonos de desmatamento identificáveis pelo projeto PRODES Amazônia;
- Informações do Cadastro Ambiental Rural.
Tais achados de pesquisa norteiam as decisões das empresas signatárias. O efeito imediato no levantamento dessas informações, é o rompimento ou suspensão contratual com propriedades rurais fornecedoras que apresentem inconsistências. Embora pareça confiável atribuir aos dados públicos o peso de palavra final sobre a conformidade dos imóveis rurais, os resultados apontados nem sempre correspondem à realidade.
Dois fatos são notórios:
- Os conceitos de desmatamento e desmatamento ilegal aplicáveis nos diversos acordos públicos não são precisos, nem uniformes entre si ou com a legislação ambiental brasileira;
- A existência de pendências ambientais não é, por si só, sinônimo de sanções ambientais legalmente aplicáveis pelos órgãos, e frequentemente revelam situações de violações cometidas contra produtores e proprietários rurais.
Obter uma resposta fidedigna para a justa preocupação de que a produção agrícola brasileira não seja obtida às custas de direitos sociais e ambientais envolve, necessariamente, identificar o que se entende por desmatamento neste cenário de negociações, e em que medida o repúdio internacional é, de fato, uma métrica confiável.
O mito do desmatamento zero
A Moratória da Soja e o Compromisso Público da Pecuária, anúncios já bem conhecidos, podem ser considerados acordos públicos modelo de verificação de propriedades rurais no Brasil, e tem significativa importância à medida em que, ao longo dos anos, deixaram de constituir acordos puramente comerciais, passando a ser ratificados por ministérios e governos, atingindo status de perpetuidade e reportabilidade.
Os estudos Eating up the Amazon e A farra do boi na Amazônia, de autoria do Greenpeace iniciaram um movimento de chamada à responsabilidade comercial de grandes empresas atuantes no Brasil. A estratégia adotada de apontar para os grandes compradores pareceu um caminho mais eficaz na busca de uma cadeia produtiva livre de desmatamento. O raciocínio socioambiental aplicado ao mercado formal de vendas transmitiu um recado: não é socialmente aceito que propriedades e produtores rurais obtenham lucro com a venda de produtos obtidos às custas de danos ambientais.
A despeito do leque diverso que “danos socioambientais” pode significar, os estudos foram pautados em uma prática e localidade específicas: o desmatamento na Amazônia Legal brasileira. Nesse sentido, os mercados de grãos e carne, representados respectivamente por tradings e frigoríficos, se comprometeram publicamente a não adquirir produtos de áreas desmatadas. Dentre as empresas signatárias, destacam-se: ADM, Bunge e Cargill no mercado de grãos; JBS, Marfrig e Minerva Foods, no mercado da carne. Tais empresas encabeçam a lista dos signatários iniciais, servindo de inspiração para adesões posteriores de outros grupos e iniciativas.
O chamado desmatamento zero, neste contexto de negociações entre empresas e propriedades rurais, é um slogan frequente. O aprimoramento da tecnologia no campo e uma maior sensibilidade no enfrentamento de temas ambientais são utilizados para fincar a premissa de que o agronegócio não precisa de novas aberturas de áreas para aumento de sua produtividade.
Por um lado, celebra-se os resultados obtidos pela agropecuária brasileira. De outro, lamenta-se o desmatamento, mesmo que para fins produtivos, a despeito de sua importância no grande marco civilizatório de domínio da agricultura. O mito do desmatamento zero é este: a impossibilidade do alcance produtivo e civilizacional sem a ação antrópica condenada.
Tanto o é, que os compromissos exigidos e firmados no cenário internacional não fazem distinções precisas entre o desmatamento ilegal e as conversões de áreas autorizadas pelos órgãos licenciadores. De mesmo modo, quanto ao desmatamento ilegal, as verificações não se desdobram em identificar com precisão se as supressões foram ocorridas antes do marco temporal instituído pelo Código Florestal de 2012, especialmente na matéria ainda nebulosa de áreas consolidadas – aquelas antropizadas antes de 22 de julho de 2008.
Desmatamento nem tão ilegal
É preciso reformular a narrativa de que o desmatamento é, per si, um mal indesejado. Para tanto, o raciocínio é mais lógico que jurídico: se há previsão legal para a prática, não há proibição absoluta. A conversão de áreas de floresta e vegetação nativa em áreas produtivas submete-se ao licenciamento próprio do órgão estadual integrante do Sisnama, condicionada à inserção no Cadastro Ambiental Rural. Desmatamento é prática permitida quando a autonomia produtiva está alinhada às condicionantes legais.
A intenção de que as supressões legalizadas também sejam afastadas do mercado formal de vendas agro, caracteriza, em certa medida, disposições comerciais mais restritivas que a legislação pátria. Adiciona-se à equação o fato de que tais acordos constituem Termo de Ajustamento de Conduta junto ao Ministério Público Federal, cuja competência em relação a ilícitos no campo é afeta à apuração de obrigações de reparação de dano ambiental.
Considerando que o acordo tem impacto sobre cadeias produtivas relevantes no bioma amazônico, os parâmetros comerciais mais restritivos do que o Código Florestal criam um mecanismo de licenciamento paralelo das atividades agropecuárias.
Em tempo, mesmo os achados de desmatamento ilegal não são satisfatoriamente analisados nos processos de verificação: se estes correspondem a fiscalizações ainda em curso, pendentes de decisões administrativas e trânsito em julgado, ou se as infrações já foram regularmente processadas e são irrecorríveis. Em resumo: basta que a propriedade tenha sido autuada pela prática de desmatamento ambiental, para que assim seja considerada, mesmo que sequer tenha exercido direito à ampla defesa e contraditório.
A aplicação de embargos ambientais em decorrência das autuações torna a propriedade ainda mais vulnerável nos processos de venda da produção, bastando a aplicação da medida para que a propriedade seja afastada do fornecimento, não importando tratar-se de área consolidada ou sobreposta em polígono embargado por erros na vetorização ou mesmo sanção abusiva.
Vulnerabilidades do setor produtivo
A relação já deficitária entre produtores rurais e órgãos de fiscalização e controle contamina as relações comerciais à medida em que pendências ambientais geram rompimentos nas negociações mesmo quando as sanções detectadas não correspondem à realidade socioambiental das propriedades.
A recusa dos acordos públicos em admitir o desmatamento como prática legalizada pelo Código Florestal brasileiro é um entrave relevante, agravado pelas distorções na interpretação de sanções ambientais.
A prática comercial não se justifica do ponto de vista da preservação ambiental, vez que a análise dos dados do CAR demonstra que o mundo rural brasileiro utiliza, em média, apenas a metade da superfície de seus imóveis para fins produtivos, destinando à preservação da vegetação nativa cerca de um quarto do território nacional, como atestado pelo conhecido estudo da Embrapa Territorial.
Do ponto de vista ambiental, portanto, o repúdio internacional à prática do desmatamento não é uma métrica confiável, vez que os dados de preservação no interior dos imóveis rurais brasileiros atestam altos índices.
Na prática, as confusões na análise e interpretação de passivos ambientais das propriedades colocam produtores em risco em momentos decisivos da sua atividade econômica, como na tomada de crédito e financiamento, e vendas da produção.
Soluções precedem narrativas
A delimitação de conceitos é importante, mas não substitui a urgência na criação de soluções justas e razoáveis para o setor agropecuário, tanto para que as propriedades rurais não sejam alvo de obstáculos políticos, como para que os dados ambientais brasileiros sejam externados de maneira coerente em discussões internacionais.
Nesta premissa, os artigos que integrarão em sequência as discussões aqui iniciadas, trarão os casos mais comuns identificados na aplicação dos acordos públicos mencionados, em especial o embargo de áreas e os polígonos identificados pelo PRODES Amazônia, e quais soluções já se mostram seguramente aplicáveis em cada situação.
* O artigo foi originalmente publicado em JusFazenda.com.