Direito Agrário

Comentários à Lei nº. 13.986, de 7 de abril de 2020

Direito Agrário - Foto: Daniel Jobim

por Ben Hur Carvalho Cabrera Mano Filho.

 

A Lei nº. 13.986, de 7 de abril de 2020 (a “Lei nº 13.986/2020”), resultado da sanção da Medida Provisória nº. 897, de 1 de outubro de 2019 (a “MP do Agro”), trouxe diversas inovações às leis aplicáveis ao financiamento do agronegócio.

Em nosso entendimento, a Lei nº. 13.986/2020 é uma grata surpresa, pois pode-se perceber que se trata de um texto bastante aprimorado em relação à versão original da MP do Agro. De um modo geral, as inovações legislativas nos parecem bastante favoráveis ao mercado, tanto sob o ponto de vista do credor quanto do tomador de crédito. Vale apenas a ressalva de que subsiste o nebuloso Capítulo I, que trata do “Fundo Garantidor Solidário”, cuja praticidade ainda nos parece incerta.

Ressalte-se a profunda inovação e fortalecimento da Cédula de Produto Rural (“CPR”), a inclusão de dispositivos que permitem a correção de créditos pela variação cambial, o aprimoramento dos títulos do Decreto-Lei nº. 167/1967 e extremamente bem vinda alteração às Leis que inexplicavelmente impunham restrições e insegurança à concessão de crédito por estrangeiro ou empresa nacional controlada por estrangeiro com lastro em imóvel rural.

Os tópicos abordados neste relatório são os seguintes:

                 Tema disposto nos artigos 7 ao 16, trata-se de uma nova modalidade de garantia sobre a totalidade ou parte de imóvel rural, cujas principais características distintivas listamos abaixo: 

a. A garantia abrange o bem imóvel, suas benfeitorias e acessões, excelo bens móveis, lavouras e semoventes (art. 7, p. único) e, uma vez constituído, presta-se como garantia a transação representada por CPR ou Cédula Imobiliária Rural (“CIR”);

b. Os bens afetados são impenhoráveis frente à generalidade dos terceiros credores (exceto créditos trabalhistas, previdenciários e fiscais do proprietário, art. 10º, §5º), na medida do crédito representado por CPR ou CIR garantido pelo patrimônio de afetação;

 c. Não se permite a transferência do patrimônio afetado, nem mesmo por doação (art. 10, §2º), tampouco a constituição de garantias subsequentes (art. 10, §1º); e

 d. O crédito garantido pelo patrimônio de afetação possuirá caráter extraconcursal, não se sujeitando aos efeitos de recuperação judicial, falência ou insolvência civil.

Portanto, entendemos que o crédito que vier a ser garantido por Patrimônio Rural de Afetação se configurará como o meio mais seguro, entre os disponíveis, para a concessão de crédito ao agronegócio, porquanto reúna elementos típicos da alienação fiduciária (e.g. extraconcursalidade) e disposições legais de inalienabilidade e impenhorabilidade dos ativos afetados.

Todavia, vale a crítica de que, à época da edição da MP do Agro, o intuito declarado do Patrimônio de Afetação Rural seria a possibilidade de contratação de créditos junto a credores diversos, com lastro em parcelas do bem afetado. Todavia, ao que tudo indica, a Lei nº. 13.968/20 não se prestará a este propósito, porquanto não exista previsão de tratamento da garantia entre credores diversos, constituindo-se portanto apenas em nova modalidade de garantia sobre o imóvel rural.

Trata-se de novo título de crédito, regulamentado pelos artigos 17 ao 29 da Lei nº. 13.968/2020, cujas principais características distintivas seriam as seguintes:

a. Representa promessa de pagamento em dinheiro e, em caso de inadimplemento, promessa de entrega do bem afetado (art. 17);

b. Admite emissão cartular ou escritural, mas em ambos os casos deverá ser levada a registro, em até 5 dias úteis a contar de sua emissão, junto a instituição autorizada pelo Banco Central para registro ou depósito de ativos financeiros;

c. Submete o crédito a hipóteses específicas de vencimento antecipado (art. 26) basicamente relacionadas à insolvência do devedor e conservação do ativo afetado; e

d. Na hipótese de inadimplemento, o credor terá a prerrogativa de promover a execução da garantia por meio do procedimento extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel (art. 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997), embora nos pareça que poderá o credor optar pela execução para pagamento de quantia certa, uma vez que a CIR se configura como título executivo (art. 21).

Parece-nos caber uma observação ao artigo 28, §3º, que estabelece o tratamento conferido ao crédito na hipótese em que o valor obtido em segundo leilão não seja igual ou superior ao valor da dívida (incluídas as despesas e encargos), caso em que o credor terá a prerrogativa de executar o saldo frente ao devedor. Se por um lado o dispositivo afasta o risco da quitação da dívida em vista da adjudicação do imóvel, por outro lado não se estabelece qual seria o critério de avaliação do imóvel para fins de apuração do saldo. Ao que nos parece, caberá ao credor e ao devedor estabelecerem expressamente e de comum acordo tal critério, por ocasião da emissão da CIR.

O artigo 42 altera diversos dispositivos da Lei nº. 8.929/94, impondo em resumo as seguintes principais inovações ao arcabouço legal da CPR:

a. Amplia-se o lastro de emissão de CPR, incluindo-se a previsão de emissão de CPR com lastro em florestas plantada e produtos submetidos ao “beneficiamento ou a primeira industrialização” (art. 1, §2º). Cabe ao Executivo a prerrogativa de regulamentação dos produtos que poderão servir de lastro à CPR (art. 1, §3º), o que se espera que seja feito dada a redação ampla do dispositivo. A alteração merece elogios, visto que vem a suprir uma lacuna de título de crédito apropriado à captação com lastro em produtos agroindustriais;

b. Amplia-se a legitimação ativa para emissão da CPR, incluindo-se a agroindústria e as entidades que explorem floresta nativa ou plantada (art. 2, §1º), embora em tais casos não se aplique a regra de não incidência do IOF “outras isenções” (art. 2, §2º). Confere-se ainda ao Executivo a prerrogativa de definição do rol de emitentes de CPR (art. 2, §3º);

c. Cria-se a previsão legal de emissão escritural de CPR, bem como de sua assinatura eletrônica (art. 3, VIII e §4º, art. 3-A).

d. Confere-se ao Poder Executivo a prerrogativa de regulamentar as disposições acerca da qualidade dos produtos sob CPR física (art. 3, §7º);

e. Autoriza-se a emissão de CPR (física ou financeira) com pagamento único ou parcelado (art. 4, p. único), bem como a convenção de juros e correção monetária (art. 4-1, I);

f. Autoriza-se a cláusula de correção por variação cambial, na CPR de liquidação financeira. O Conselho Monetário Nacional terá a prerrogativa de regulamentar o tema (art. 4-A, §3º);

g. Quanto às garantias cedulares, o novo art. 5 da Lei nº. 8.929/1994 estabelece que poderão ser constituídas quaisquer garantias previstas em lei, fórmula ao nosso ver mais adequada do que o antigo rol de garantias;

h. Permite-se a constituição cedular de alienação fiduciária de bens fungíveis e infungíveis (art. 8, §1º), afastando-se a discussão em torno da legalidade da alienação fiduciária de bens fungíveis aos credores em geral, fora do âmbito do artigo 66-B da Lei nº. 4.728/1965. Ademais, autoriza-se o uso do procedimento de busca e apreensão dos bens, no termos do Decreto-Lei nº 911/1969 (art. 8, §3º);

i. Assemelha-se a alienação fiduciária cedular de bens fungíveis à figura do penhor agrícola, inclusive com a previsão de transferência do vínculo real aos produtos resultantes do beneficiamento (art. 8, §2º);

j. A CPR, mesmo a cartular, deverá ser registrada em até 10 dias úteis junto a instituição autorizada a tanto pelo Banco Central (art. 12), sem prejuízo do dever de registro das garantias junto ao registro público competente (§1º e §4º), impondo-se aos registros públicos o prazo de 3 dias úteis para o registro (§2º). Acerca das entidades a efetuarem o registro eletrônico da CPR, sujeitam-se às disposições do artigo 3-B, que confere ao Bacen a competência pra sua regulamentação; e

k. A busca e apreensão ou leilão o bem conferido em garantia à CPR, não eximem o devedor do adimplemento do eventual saldo (art. 16).

Em resumo, entendemos que as alterações legais representam uma forte evolução da CPR, que passa a contar com ferramentas até então de aplicação insegura, tal qual a assinatura eletrônica, a constituição cedular de garantia fiduciária sobre lavoura, além da convenção de cláusulas de juros e correção cambial. O texto merece elogios, especialmente em vista do aprimoramento em relação à versão original da MP do Agro.

Nada obstante, parece merecer ressalva a exigência de registro eletrônico da CPR, nas hipóteses em que também existam garantias cedulares a serem formalizadas perante registros públicos (de imóveis ou títulos e documentos, conforme o caso). Com efeito, parece-nos excessivamente burocrático que se tenha que deslocar a via física da cédula aos registros públicos e ao registro eletrônico, sendo o caso de se esperar que o registro eletrônico possa ser efetuado mediante cópia da cédula, dispensando-se seu depósito em custódia (o novo artigo 12 da Lei nº. 8.929/1994 determina que a CPR será “registrada ou depositada”).

O artigo 43 altera diversos dispositivos da Lei nº. 11.076/2004, impondo alterações aos denominados Títulos do Agronegócio, dentre as quais destacamos as seguintes.

a. O novo artigo 3º da Lei nº. 11.076/2004 prevê a hipótese de emissão cartular ou escritural do CDA/WA. Entretanto, resta mantida a exigência de registro eletrônico do CDA/WA (em termos semelhantes ao já existente), no prazo de 30 dias a contar de sua emissão, além de se manter a exigência de entrega do CDA/WA cartular à entidade custodiante, mediante endosso-mandato (novo artigo 15, §1º);

b. Confere-se ao endossatário de CDA/WA a proteção frente à eventual falência ou recuperação judicial do depositante, garantindo-se portanto o caráter extraconcursal ao crédito representado por CDA/WA (novo p. único do artigo 12);

c. Quanto ao CDCA e ao CRA, os novos artigos 23, §3º e 4º, 25, §4º, e 37, §3º, da Lei nº. 11.076/2004 aprimoram a possibilidade de emissão dos títulos com cláusula de correção pela variação cambial, desde que seu lastro também o seja e estes sejam emitidos em favor de investidor não residente, havendo prerrogativa conferida ao Conselho Monetário Nacional para regulamentar sua emissão em favor de investidor residente (25, §5º, e 37, §4º), conforme o caso e de acordo com as regras que venham a ser oportunamente editadas pelo Conselho Monetário Nacional.

 Quanto às alterações da legislação aplicável aos Tiíulos do Agronegócio, vale o elogio à ampliação das hipótese de emissão com cláusula de variação cambial. Entretanto, vale a crítica à manutenção da exigência de entrega do CDA/WA à custódia, pois melhor seria que se tratasse de uma faculdade do endossatário ou do depositante e não de um dever, porquanto acrescente burocracia desnecessária em transações nas quais não se verifique a necessidade de circulação sucessiva dos títulos. Aliás, ao que parece, esta é a sistemática que se aplicará à CPR, cuja entrega à custódia será alternativa e não obrigação (conforme novo artigo 12 da Lei nº. 8.929/1994.

A Lei nº. 13.986/2020 aprimorou o texto da MP do Agro no que diz respeito aos títulos que são geralmente utilizados nas operações de concessão de crédito rural com recursos obrigatórios. Em resumo, podemos apontar as seguintes alterações relevantes:

a. A nova legislação “modernizou” os títulos do Decreto-Lei 167/1967, ao prever as regras aplicáveis à emissão escritural e assinatura eletrônica;

b. Interessante notarmos que a nova legislação, em complemento ao texto original da MP do Agro, acrescentou os §§ 3º ao 6º ao artigo 14 do Decreto-Lei 167/1967, que basicamente buscam desburocratizar e facilitar o registro dos títulos normatizados por este decreto-lei e vinculados a financiamento rural. De agora em diante, (i) proíbe-se que o registrador exija documentos além daqueles listados no artigo 14, (ii) dispensa-se a apresentação da certidão negativa de débitos fiscais, e (iii) proíbe-se a negativa de registro na hipótese que o valor das garantias seja inferior ao crédito conferido;

c. No sentido do item acima, a nova legislação impôs a revogação dos artigos 30 ao 40 do Decreto-Lei nº. 167/67, além do item 13 do inciso I do artigo 167 da Lei de Registros Públicos, que continham dispositivos acerca do registro da cédula de crédito rural. Trata-se de avanço em favor da desburocratização; e

d. Foi alterada a redação do artigo 71 do Decreto-Lei nº. 167/67, reduzindo-se para 2% a multa devida pelo emitente em caso de inadimplemento, que antes correspondia a 10%. Ao que parece, o legislador procurou igualar a disposição à previsão aplicável aos consumidores.

Neste ponto, lamentamos apenas que o legislador tenha perdido a oportunidade de suprimir os artigos 59 e 69 do Decreto-Lei nº. 167/1967, que em resumo impedem que sejam constituídas garantias subsequentes em favor de terceiros credores e com lastro nos bens conferidos em garantia. Tais dispositivos representam relevante entrave ao acesso do produtor rural ao crédito, bem como ao acesso de terceiros credores ao patrimônio do devedor. Aliás, são dispositivos relativizados de forma recorrente e uníssona pela jurisprudência, dada a sua patente inadequação.

Estas são as Leis que impõem limites à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros (e, por tabela, às entidades nacionais controladas por estrangeiro) e determinadas restrições à constituição de garantias sobre imóveis localizados em faixa de fronteira. A nova legislação retira entraves injustificáveis ao financiamento pelo capital estrangeiro, que listamos abaixo.

a. Amplia-se o rol de exceções definidas no artigo 1, §2º, da Lei nº. 5.709/1971, de tal modo que já não se proíbe (i) a constituição de alienação fiduciária de imóvel rural em favor de estrangeiro ou de entidade nacional de capital estrangeiro e (ii) a entrega de imóvel rural para liquidação de obrigação, seja por dação em pagamento, adjudicação ou de “qualquer outra forma”;

b. Acrescenta-se o §4º ao artigo 2 da Lei nº. 6.634/1979, de tal modo que os imóveis localizados em faixa de fronteira poderão ser conferidos (i) em garantia fiduciária ou hipotecária ao credor estrangeiro ou nacional controlado por estrangeiro; e (ii) em liquidação de transação junto a tais credores, seja por adjudicação, dação em pagamento ou de “qualquer outra forma”.

Tais alterações afastam grave insegurança jurídica que pendia sobre as transações de financiamento ao agronegócio. Com efeito, o capital estrangeiro (e mesmo as entidades nacionais controladas por estrangeiros) se via afastado de meios confiáveis de concessão de crédito garantido por imóvel rural, porquanto restassem alijados da alternativa da alienação fiduciária e da possibilidade de quitação do débito mediante adjudicação ou dação em pagamento de imóvel rural.

 

Ben Hur Carvalho Cabrera Mano Filho | cabrera@pcpm.com.br | Graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), com formação parcial pela Universidade Lyon II (França). Foi bolsista do CNPq/PBIC. Foi professor convidado no curso de especialização em Direito Bancário da FGV. Especialista (LL.M) em Direito Tributário pelo INSPER, curso concluído com o 1º lugar em desempenho acadêmico. Autor do livro “Tributação da Atividade Rural”, publicado pela Editora Almedina. Listado em 2017, 2018 e 2019 entre os advogados mais admirados do país, de acordo com publicação Análise Advocacia 500.

Veja também:

– Governo sanciona MP do Agro mas alguns pontos da lei ainda dependem de regulamentação

– Medida Provisória do Agro é sancionada – Lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020

– Principais Avanços do Projeto de Lei de Conversão da “MP do AGRO”

– Análise crítica da MP do Agro

– MP do Agro e o recado do Congresso

O Fundo Garantidor Solidário do Agro – Lei 13.986/2020