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Direito Agrário

Ação de usucapião: possuidor não pode somar o tempo de seu antecessor que não tinha a intenção de obter o domínio do imóvel (animus domini)

“Em ação de usucapião, o atual possuidor não pode somar o tempo de seu antecessor que não tinha a intenção de obter o domínio do imóvel (animus domini), conforme o que dispõe o artigo 552 do Código Civil de 1916. Esse é o entendimento adotado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O artigo 552 dispõe que o atual possuidor de imóvel pode, para o fim de contar o tempo exigido de 20 anos para ajuizar uma ação de usucapião, acrescentar à sua posse a do seu antecessor, ‘contanto que ambas sejam contínuas e pacíficas’.

Caso concreto

A decisão unânime da Terceira Turma, em processo cujo relator foi o ministro João Otávio de Noronha, foi tomada após análise de caso envolvendo a disputa pela titularidade de uma área no Estado de São Paulo.

Em 1982, uma cidadã adquiriu uma propriedade. Ao lado havia uma área abandonada. Diante dessa situação, a cidadã tomou posse de parte dessa área, passando então a pagar todos os impostos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negou o pedido de usucapião, alegando que o posseiro da área, antecessor da autora da ação, nunca havia pagado os impostos e que foi autorizado pelos proprietários legais a cultivar uma horta no local.

O tribunal concluiu que a posse do antecessor não objetivava a aquisição da propriedade, ‘não sendo possível unir a posse anterior à atual’ para contar o tempo mínimo necessário de 20 anos para apresentação do pedido de usucapião.

Inconformada, a cidadã recorreu ao STJ. O ministro João Otávio de Noronha manteve a decisão do TJSP argumentando que, para a aquisição via usucapião, além do tempo, é preciso comprovar a posse mansa, pacífica e com animus domini, entendido este como sendo a intenção de ter a coisa como se dono fosse.

‘Assim, se não tem o antecessor o animus domini configurador da posse que legitima a usucapião, é inviável acrescentar seu tempo ao do atual possuidor, na forma como dispõe o art. 552 do CC de 1916′, salientou o ministro”.

Fonte: STJ, 08/03/2016.


RECURSO ESPECIAL Nº 1.315.603 – SP (2012/0059155-1)

RELATOR : MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA

RECORRENTE : EVANI DE FÁTIMA CERQUEIRA

ADVOGADO : CARLOS ANTÔNIO STRAMANDINOLI MAZANTE

RECORRIDO : ANTÔNIO PEREIRA TAVARES E CÔNJUGE

ADVOGADO : FERNANDO BRANDINI BARDAGALO E OUTRO(S)

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. REVISÃO DE PROVAS. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. POSSE DO ANTECESSOR. AUSÊNCIA DO ANIMUS DOMINI . IMPOSSIBILIDADE DE ACRÉSCIMO. ART. 552 DO CÓDIGO CIVIL DE 1.916. 1. Incidem as Súmulas n. 211/STJ e 282/STF quando a questão suscitada no recurso especial não tenha sido apreciada pela Corte de origem. 2. Aplica-se a Súmula n. 7 do STJ se a tese versada no recurso especial reclamar a análise dos elementos probatórios produzidos ao longo da demanda. 3. Incide o óbice previsto na Súmula n. 284/STF na hipótese em que a deficiência da fundamentação do recurso não permitir a exata compreensão da controvérsia. 4. Para a configuração da usucapião extraordinária (art. 550 do CC de 1916), necessária, além de objeto hábil e do decurso do tempo, a presença de posse mansa, pacífica e com animus domini. 5. Se não tem o antecessor o animus domini configurador da posse que legitima a usucapião, é inviável acrescentar seu tempo ao do atual possuidor, na forma como dispõe o art. 552 do CC de 1916. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e negar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 03 de março de 2016(Data do Julgamento)

MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:

Trata-se de ação reivindicatória cumulada com demolição de construção em área invadida proposta por ANTÔNIO PEREIRA TAVARES e OUTRO contra IVANI DE FÁTIMA CERQUEIRA NOGUEIRA e julgada improcedente.

Interposta apelação pelos autores, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, reformando a sentença, deu provimento à apelação para julgar procedente a ação conforme a seguinte ementa:

“AÇÃO REIVINDICATÓRIA – DESCABIDA A ‘ACESSIO TEMPORIS’ PARA FINS DE USUCAPIÃO SE O ANTECESSOR NÃO EXERCIA A POSSE COM ‘ANIMUS DOMINI’. RECURSO ACOLHIDO.”

Foram opostos embargos de declaração pela parte ré, ao final, rejeitados.

Inconformada, a parte interpôs recurso especial fundado no art. 105, III, “a”, da Constituição Federal, no qual se aponta violação dos seguintes dispositivos:

a) arts. 269, IV, do Código de Processo Civil, 177 e 520 do Código Civil de 1916, defendendo que deve ser reconhecida e declarada a prescrição da ação, pois já ultrapassado o prazo de 10 (dez) anos para a defesa dos interesses da parte autora;

b) art. 267, VI, do CPC, sustentando ilegitimidade ativa, visto que os autores não são os proprietários do bem, razão para a extinção do feito sem resolução do mérito;

c) art. 295, I e VI, do CPC, pois cabível a extinção do feito ante a ausência de documentos indispensáveis à propositura da ação, qual seja, o mapa e o competente memorial descritivo da área, demonstrado com exatidão o objeto da discussão da lide;

d) art. 490 do CC de 1916, ao argumento de que a boa-fé reivindicada ficou plenamente evidenciada, sendo ignorado vício ou obstáculo impeditivo da aquisição do terreno; e

e) arts. 551 e 552 do CC de 1916, visto que, com a regularização da área e por possuir justo título, cabe a redução do prazo para a aquisição do domínio pelo usucapião; mesmo que assim não fosse, para a “acessio temporis só era exigida que ambas as posses fossem contínuas e pacíficas, silenciando acerca do animus domini do antecessor” (fl. 247).

As contrarrazões não foram apresentadas.

O Tribunal de origem admitiu o processamento do recurso especial.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (Relator):

O recurso não merece prosperar. De início, no tocante à apontada violação dos arts. 269, IV, 295, I e VI, do CPC, 177 e 520 do CC, relacionados às alegações de prescrição da ação e de ausência de documentos indispensáveis à sua propositura, observa-se que referidas matérias não foram objeto de debate no acórdão recorrido, nem mesmo foram alegadas nos embargos de declaração opostos com o fim de provocar o colegiado a manifestar-se a respeito do tema. Caso, pois, de aplicação da Súmula n. 282/STF.

No que se refere à alegada ausência de legitimidade da parte autora, objeto de indicada ofensa ao art. 267, VI, do CPC, concluiu-se, na origem, em julgamento de embargos de declaração, que:

“Não há na contestação de fls. 30-43 preliminar de ilegitimidade ativa. Aliás, ainda que houvesse tal preliminar, seria ela rejeitada porque a propriedade do imóvel está provada pela matrícula (fls. 10-14).”

A inversão do julgado, nos moldes pretendidos pela parte recorrente, demandaria o reexame do conteúdo probatório dos autos, o que é vedado a esta Corte em sede de recurso especial, nos termos da Súmula n. 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.

No tocante à sustentada boa-fé da parte, cumpre asseverar que, conforme será demonstrado, não foi ela ou sua falta o óbice eleito para afastar a declaração de propriedade pela via da usucapião extraordinária.

Dessa forma, aplica-se ao caso a Súmula n. 284 do STF, tendo em vista a apresentação de argumento que não guarda correlação com o decidido nos autos.

Relativamente à pretendida aquisição pela usucapião extraordinária, concluiu-se, na origem, que:

“A Apelada adquiriu a propriedade vizinha do imóvel usucapiendo em novembro de 1982. Tomou posse de parte do terreno vizinho (da área usucapienda) e de lá para cá tem exercido tal posse, até pagando os tributos relativos a ela.

Porque sua antecessora também exercia a posse da área objeto do litígio, a r. sentença concluiu ser possível a acessio temporis.

Todavia, existe óbice intransponível para a Apelada ver declarada sua propriedade pela via da usucapião extraordinária. É que o antecessor foi autorizado pelos proprietários a utilizar a área para nela fazer uma horta (isso foi corroborado pela prova testemunhal).

Além disso, os antecessores nunca pagaram os impostos sobre a área objeto do litígio, o que é um indicio de que nunca exerceram a posse com animus domini.

Não se nega a possibilidade da sorna das posses, desde que ambas sejam aptas à aquisição da propriedade. Neste caso, contudo, a natureza das posses é diferente. Os antecessores exerciam a posse sem o intuito de ser proprietários.

(…)

Conclui-se que a posse dos antecessores não objetivava a aquisição da propriedade, não sendo possível à Apelada unir a posse anterior à atual para ver preenchido o lapso temporal necessário ao usucapião extraordinário, pois exercem posse aquisitiva sobre o imóvel há apenas dezessete anos.

Deste modo, não completou o Apelado o prazo de 20 (vinte) anos para a prescrição aquisitiva, sendo indevida o pedido de declaração de usucapião.” (fls. 213/214).

Insurgindo contra tal entendimento, a parte recorrente sustenta que, a teor do art. 552 do CC de 1916, “para a acessio temporis só era exigida que ambas as posses fossem contínuas e pacíficas, silenciando acerca do animus domini do antecessor” (fl. 247)

Tal alegação, porém, não se afigura correta.

Com efeito, usucapião é modo autônomo de aquisição de propriedade mediante a posse qualificada da coisa pelo prazo legal.

Assim, para a aquisição do domínio do imóvel via usucapião extraordinária (art. 550 do CC de 1.916), como é o caso dos autos, é necessária, além de objeto hábil e do decurso do tempo, a presença de posse mansa, pacífica e com animus domini, entendido este como sendo a intenção de ter a coisa como se dono fosse, conforme se extrai da expressão “possuir como seu”.

Especificamente sobre a necessidade dessa última exigência, segue o que dispõe a doutrina.

J. E. de Carvalho Pacheco expõe, inicialmente, que:

“A posse e o simples decurso do tempo não implicam, automaticamente, na aquisição da propriedade através do usucapião, pois a lei exige, ainda, que determinados requisitos sejam observados, sob pena deste não se consumar. Assim, além do lapso de tempo, são requisitos para usucapião: capacidade do adquirente, coisa hábil, posse ‘ad usucapionem ‘, justo título e boa fé” (Prática, Processo e Jurisprudência. Usucapião. 7ª ed. Juruá. Paraná, 1980, p. 36).

Para, em seguida, complementar que:

“Chama-se posse ‘ad usucapionem’ aquela que pode autorizar usucapião, por conter certas características, a saber: ser pública, justa, contínua, incontestada e com ânimo de dono” (Idem, p. 38).

Armando Roberto Holanda Leite, por sua vez, esclarece que:

“Essa espécie de posse, com características peculiares, denomina-se posse ad usucapionem , assim chamada porque viabiliza a usucapião.

Para levar à usucapião, a posse precisa ser: a título de proprietário (animo domini); contínua; ininterrupta; pública; inequívoca e atual.

Em síntese, só há posse ‘ad usucapionem quando os atos através dos quais ela se manifesta não só não permaneçam ocultos (pois que a publicidade é outro de seus requisitos fundamentais), mas igualmente aparentem, a vista de todo o mundo, atos diuturnos (continuados) de fruição ou utilização econômica da coisa sobre que recaem'” (Usucapião ordinária e usucapião especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 47).

Também para José Carlos de Moraes Salles, que, após enumerar os requisitos para a configuração da usucapião, tece as seguintes considerações:

“O terceiro requisito para que se concretize o usucapião é o animus domini por parte do possuidor. Deve ele ‘possuir como seu um imóvel (art. 550 do Código Civil), ou seja, com ânimo de dono (quantum possessum, tantum praescriptum )” (Usucapião de bens imóveis e móveis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 48).

A jurisprudência deste Tribunal também corrobora tal entendimento:

“Faltando um dos requisitos indispensáveis – o animus domini – e demonstrada, ainda, a ocorrência de atos dando causa a interrupção do prazo, impossível o reconhecimento do usucapião” (Segunda Turma, REsp n. 21.222/BA, relator Ministro Hélio Mosimann, DJ de 11.4.1994).

“Para configuração da prescrição aquisitiva é indispensável a segura comprovação da posse com ‘animus domini'” (Quarta Turma, AgRg no Ag n. 15.083/SP, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 3.2.1992).

Para a contagem do tempo legal exigido para a usucapião extraordinária – 20 (vinte) anos -, pode o possuidor atual acrescentar à sua posse a do seu antecessor. É o que dispôs o art. 552 do CC de 1.916, in verbis:

“Art. 552. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a do seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas e pacíficas.”

Não obstante inexista expressa previsão no referido dispositivo do “possuir como seu”, trata-se unicamente da posse ad usucapionem , que é uma só e que tem como elemento essencial o animus domini, conforme já se demonstrou, razão pela qual não se pode admitir características diversas de modo a distinguir a posse do atual e do antecessor.

Ademais, cabe a interpretação sistemática do mencionado dispositivo de modo a levar em consideração o mesmo entendimento presente na norma jurídica caracterizadora da posse e constante dos artigos que lhe são precedentes, visto ser a capaz de autorizar a prescrição aquisitiva.

Para melhor delimitação da controvérsia, importante ressaltar a lição de Caio Mário da Silva Pereira, nestes termos:

“A posse ad usucapionem é aquela que se exerce com intenção de dono – cum animo domini. Este requisito psíquico de tal maneira se integra na posse, que adquire tônus de essencialidade. De início, afasta-se a mera detenção, pois, conforme visto acima (nº 285, supra) não se confunde ela com a posse, uma vez que lhe falta a vontade de tê-la. E exclui, igualmente, toda posse que não se faça acompanhar da intenção de ter a coisa para si – animus rem sibi havendi , como por exemplo a posse direta do locatário, do usufrutuário, do credor pignoratício, que, tendo embora o ius possidendi , que os habilita a invocar os interditos para defesa de sua situação de possuidores contra terceiros e até contra o possuidor indireto (proprietário) não têm nem podem ter a faculdade de usucapir. E é óbvio, pois aquele que possui com base num título que o obriga a restituir desfruta de uma situação incompatível com a aquisição da coisa para si mesmo. Completando-se a qualificação é que se impõe o requisito anímico, que reside na intenção de dono: possuir cum animo domini ” (Instituições de Direito Civil. Direitos Reais. 22ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 119/120).

Do mesmo modo, a lição de Armando Roberto Holanda Leite, para quem:

“Com referência à junção de posses, os arts. 496 e 552 do Código Civil tratam da sucessio possessionis e da acessio possessionis, respectivamente quando a nova posse tenha sido adquirida a título universal ou a título singular.

O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor.

Ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais. Assim, o possuidor pode, para fim de contar o tempo exigido na usucapião ordinária e na usucapião extraordinária, acrescentar à sua posse a do seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas e pacíficas.

O herdeiro – na sucessio possessionis – continua a posse do de cujus, transmitida com os mesmos caracteres, ex vi do art. 495 do Código Civil.

Na accessio possessionis , a posse advém imaculada, sem vícios pretéritos, somente podendo ocorre em virtude de contrato translativo, como, por exemplo, a compra e venda, a permuta, a doação, etc.” (Usucapião ordinária e usucapião especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 55/56).

Assim, se não tem o antecessor o animus domini configurador da posse que legitima a usucapião, é inviável acrescentar seu tempo ao do atual possuidor, na forma como dispõe o art. 552 do CC de 1916.

Finalmente, quanto à pretensão de ver reconhecida hipótese de usucapião ordinária, objeto do art. 551 do CC de 1916, é impossível, neste Tribunal, a apreciação da questão visto não ter sido objeto de debate no acórdão recorrido, tampouco no aresto que julgou os embargos de declaração. Caso de aplicação das Súmulas n. 211 do STJ e 282 do STF. Nessa hipótese, para viabilizar o conhecimento do recurso especial, caberia à recorrente alegar ofensa ao art. 535 do CPC.

Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial e nego-lhe provimento.

É o voto.

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