quinta-feira , 18 setembro 2025
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Direito Agrário - Foto: Diego Rizzatto.

Ação particular de regularização fundiária

por Albenir Querubini.

Introdução

 

A regularização fundiária ainda é um dos maiores desafios estruturais do Brasil. A ausência de segurança jurídica na ocupação e uso da terra traz impactos profundos: compromete a moradia digna, limita o acesso a políticas públicas, desestimula investimentos, acirra conflitos fundiários e perpetua desigualdades sociais e regionais. Em contrapartida, a regularização fundiária é um instrumento capaz de promover inclusão social, estimular o desenvolvimento sustentável, atrair investimentos, viabilizar o crédito rural e o financiamento privado, combater o desmatamento ilegal e a grilagem, valorizar imóveis, melhorar a infraestrutura rural e urbana, e fortalecer a cidadania.

Apesar da sua importância estratégica, o Brasil adota, historicamente, um modelo de regularização fundiária centralizado no Estado, com foco em iniciativas administrativas ou ações judiciais de iniciativa do Poder Público, como é o caso da ação discriminatória de terras devolutas ou dos recentes programas legais de regularização fundiária. Embora essas ações tenham sua relevância, o modelo atual é excessivamente burocrático, sujeito à vontade política, à escassez de recursos e à lentidão administrativa. Na prática, não há qualquer instrumento judicial próprio que permita ao particular — especialmente o pequeno agricultor ou produtor de boa-fé — buscar, por conta própria, a regularização da sua ocupação.

O resultado é a perpetuação da insegurança jurídica e a demora na efetivação da regularização fundiária. Em muitos casos, possuidores com décadas de ocupação contínua, produtiva, pacífica e devidamente cadastrada são privados de acessar a titulação plena por falta de um mecanismo judicial adequado.

Diante desse vácuo normativo, propomos neste artigo a criação da ação particular de regularização fundiária, como medida de acesso efetivo à regularização por iniciativa dos particulares. Inclusive, ao final do artigo, apresentamos minuta de projeto de lei que visa materializar a proposta.

  1. Breve retrospectiva da história fundiária brasileira

A história fundiária do Brasil remonta à aplicação adaptada da Lei das Sesmarias de Dom Fernando I, de 1375, no território colonial, como solução jurídica do Reino de Portugal para regulamentar a ocupação das novas terras. Conforme registrado na obra O Regramento Jurídico das Sesmarias, “os dispositivos referentes às sesmarias foram incorporados pelas Ordenações do Reino de Portugal, correspondendo à base das normas escritas do regime normativo aplicado no Brasil, especificamente nas Ordenações Manuelinas e Filipinas”[1].

A cessão de terras pelo regime sesmarial, que perdurou do período do Descobrimento até a Resolução nº 76, de 17 de julho de 1822, favoreceu o surgimento dos grandes latifúndios — entendidos aqui como extensas propriedades privadas, frequentemente improdutivas. A distribuição de grandes porções de terra era prática usual, justificada pelas necessidades da época: baixa produtividade agrícola, tecnologias rudimentares e dependência da mão de obra escrava. A ocupação se deu, prioritariamente, a partir do litoral em direção ao interior, de forma gradual.

Com a suspensão das sesmarias, inicia-se o chamado período das posses ou período extralegal, marcado por ocupações desordenadas, ausência de regulamentação jurídica e o surgimento de conflitos agrários. Nesse período, surgem os chamados minifúndios, também denominados parvifúndios (termo do Direito Espanhol que remete à ideia de pobreza e à exploração agrícola de baixa viabilidade econômica). Esse cenário, mais tarde, justificaria medidas de reforma agrária voltadas tanto a minifúndios como a latifúndios improdutivos, previstas pelo Estatuto da Terra.

A tentativa de sistematizar e disciplinar a ocupação da terra deu origem à Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850, a primeira legislação nacional voltada à regularização fundiária. A Lei de Terras estabeleceu o marco da propriedade rural privada no Brasil, reconhecendo a posse mansa e pacífica como título legítimo de propriedade, desde que houvesse o efetivo cultivo. Foi nessa ocasião que surgiu, juridicamente, o conceito de terras devolutas, com o objetivo de distinguir o domínio público das áreas já ocupadas por particulares.

Apesar disso, até os dias atuais, a omissão estatal na discriminação e destinação das terras devolutas tem fomentado litígios e favorecido práticas como a grilagem, dificultando a segurança jurídica no campo.

No contexto republicano, com a promulgação do Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/1916), consolidou-se a concepção privatista da propriedade, inspirada no modelo francês. A propriedade privada passou a ser vista como um direito quase absoluto, com pouca ou nenhuma exigência quanto ao uso produtivo. O antigo dever de cultivo — presente nas cartas de sesmarias e na Lei de Terras — deixou de ser exigência legal, favorecendo a especulação fundiária.

Esse panorama mudou com a edição do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), marco fundador do Direito Agrário brasileiro. O novo diploma rompeu com a visão meramente privatista e introduziu o princípio da função social da propriedade rural, estabelecendo dois pilares centrais: a reforma agrária e a política agrícola.

As normas de Direito Agrário, previstas pelo Estatuto da Terra, assim como pela legislação agrária extravagante, foram fundamentais para que o Brasil começasse a transformação da realidade da estrutura fundiária, tendo regra a orientação jurídica pela destinação das terras para exploração da atividade agrária pelos privados, conforme disposição constante no artigo 10 do Estatuto da Terra.

Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma série de disposições de Direito Agrário ganharam o status de norma constitucional (arts. 184 a 190), merecendo destaque o chamado “dever de produção” contido na ratio legis do artigo 185[2]. Inclusive, o dever de produção agrária (ou dever de produção da terra) contido no artigo 185 da Constituição, que se aplica a todos os imóveis agrários do país (sejam eles pequenos, médios ou grandes propriedades rurais), é considerado o marco normativo do nascimento do 2º Ciclo do Agrarismo Brasileiro. Em que pese nessa nova fase de estudo do Direito Agrário as relações jurídicas da exploração da atividade agrária relacionadas ao desenvolvimento das cadeias produtivas e dos complexos agroindustriais do chamado Agronegócio (“fase dinâmica” do Direito Agrário brasileiro) tenham assumido maior destaque, não pode ser esquecido que ainda remanescem muitas questões fundiárias do 1º Ciclo do Agrarismo brasileiro a serem resolvidas.

A partir da classificação trazida na publicação Panorama dos Direitos de Propriedade no Brasil Rural, observamos hoje no Brasil as seguintes categorias fundiárias no Brasil: assentamentos de programas de reforma agrária (de domínio público federal, estadual ou municipal, em caráter “transitório”), terras tradicionais indígenas (terras públicas de domínio da União, onde os indígenas possuem o usufruto vitalício e podem desenvolver a exploração da atividade agrária), terras devolutas (terras públicas – federais ou estaduais – ainda pendentes de discriminação e destinação), posses (em áreas públicas ou privadas), unidades de conservação (públicas ou privadas), propriedades privadas (em sua grande maioria compostas de imóveis agrários com destinação agrária nos termos do artigo 10 do Estatuto da Terra, sob as quais recai o dever de produção) e áreas tradicionais quilombolas (propriedades coletivas privadas, onde também se desenvolve atividade agrária)[3]. Nessa evolução do estudo do Direito Agrário no Brasil e no atual ciclo do agrarismo brasileiro, a preocupação em “fazer reforma agrária” presente de forma marcante na mentalidade do agrarista do primeiro ciclo dá lugar à necessidade de “promover a regularização fundiária”.

Atualmente, o Brasil apresenta uma realidade fundiária complexa e regionalmente assimétrica. Em regiões como o Norte, Centro-Oeste e Matopiba, ainda persistem graves problemas, como grilagem de terras devolutas, conflitos com comunidades tradicionais e ausência de discriminação fundiária. No Sul e Sudeste, os problemas são mais pontuais, voltados à titulação de assentamentos, unidades de conservação e áreas indígenas e quilombolas. Em síntese, ainda temos problemas fundiários remanescentes do 1º Ciclo do Agrarismo e a necessidade de regularizar posses e ocupações, conferindo título de propriedade.

Vale lembrar que a atividade agrária exige observância da legalidade e, por conta disso, é essencial o trabalho dos agraristas na resolução dos problemas fundiários, inclusive atuando como garantidores da segurança jurídica dos novos empreendimentos agrários, nascendo inclusive a demanda por procedimentos de “due diligence” agrário (termo que empregamos para definir o procedimento de estudo, análise e avaliação das informações referentes a regularidade das posses e propriedades de imóveis rurais a fim de evitar problemas fundiários ou a prática de ilícitos na sua aquisição, a exemplo da grilagem de terras).

Por conta disso, é fundamental que os particulares possam ter mecanismos jurídicos que lhe permitam regularizar seus imóveis rurais, independentemente das ações estatais nesse sentido.

  1. A omissão estatal e o vácuo normativo em matéria de regularização fundiária

Apesar da importância estratégica da regularização fundiária para o desenvolvimento nacional, o Brasil ainda convive com uma estrutura normativa e institucional incapaz de atender, de forma eficiente, as múltiplas demandas por segurança jurídica da posse e da propriedade da terra. A lógica predominante ainda é centralizadora, burocrática e excessivamente dependente da iniciativa do Estado. Com isso, milhões de possuidores e ocupantes legítimos de terras, especialmente no meio rural, permanecem à margem da formalidade registral, enfrentando um cenário de incertezas, limitações e insegurança jurídica.

A legislação brasileira avançou em alguns aspectos ao longo do tempo. No âmbito da legislação federal, além dos principais marcos históricos anteriormente mencionados, houve a edição de uma série de leis com o objetivo de enfrentar os problemas fundiários em nível nacional, a exemplo da edição das seguintes leis e atos normativos que merecem destaque: Lei n.º 10.267, de 28 de agosto de 2001 (“Lei do Georreferenciamento”), Lei n.º 11.952, de 25 de junho de 2009 (dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal), Lei n.º 13.178, de 22 de outubro de 2015 (dispõe sobre a ratificação dos registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira), Lei n.º 13.465, de 11 de julho de 2017  (“Lei da Reurb”, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; e institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União), Medida Provisória nº 910, de 10 de dezembro de 2019 (“Medida Provisória da Regularização Fundiária”, alterava a Lei nº 11.952, de 25 de julho de 2009, com o objeto de regularizar das ocupações incidentes em terras da União; mas, infelizmente, por questões políticas, perdeu eficácia por decurso de prazo, em razão da ausência  de votação no Congresso Nacional); Portaria Conjunta nº 1, de 2 de dezembro de 2020, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA (institui o Programa Titula Brasil) e a Lei n.º 14.177, de 22.6.2021 (Alterou a Lei n.º 13.178, de 22 de outubro de 2015, para ampliar o prazo para ratificação dos registros imobiliários referentes aos imóveis rurais com origem em títulos de alienação ou de concessão de terras devolutas expedidos pelos Estados em faixa de fronteira). Porém, em que pese as diversas normas de regularização fundiária terem sido pensadas para trazer soluções nacionais, desde nosso passado mais remoto do período das sesmarias, passando pela Lei de Terras e pelo Estatuto da Terra, é importante observar que muitos dos problemas fundiários apresentam aspectos regionais, inclusive com a existência de normas e programas estaduais[4].

Note-se que desde a edição da Lei de Terras, Estatuto da Terra e outras leis pensadas para resolver a regularização de imóveis rurais, apenas se previu procedimentos administrativos e ações para o poder público. No modelo atual, o reconhecimento da titularidade sobre terras públicas ocupadas por particulares está condicionado à atuação estatal, seja por meio da via administrativa (como nos programas de regularização do INCRA ou dos Estados), seja por meio de ações judiciais de iniciativa do poder público, como a ação discriminatória de terras devolutas. Essa dependência da iniciativa estatal resulta, na prática, em morosidade, ineficiência e desigualdade no acesso ao direito de propriedade.

Até hoje não tinha sido pensada a proposta da criação de uma ação própria a ser manejada pelos cidadãos (particulares) para que eles possam obter em juízo tutela própria e específica que lhe garanta regularizar posses e propriedades de imóveis rurais que são utilizados para fins produtivos.

Essa lacuna normativa se revela ainda mais grave quando se observa que muitos ocupantes mantêm há décadas a posse de áreas rurais ou urbanas, com cultura do solo, benfeitorias, pagamento de tributos, e até com cadastro ativo em órgãos oficiais – como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) –, sem que isso lhes garanta qualquer presunção de domínio.

Na ausência de ação específica, muitos particulares têm se utilizado de forma imprópria da ação de usucapião contra o Poder Público, o que pode agravar a situação jurídica de sua posse ou ocupação, pois mesmo que o ocupante apresente documentos que evidenciem a boa-fé, o Poder Público costuma alegar que a terra é presumidamente pública, invocando a Súmula 340 do STF (“Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”), mesmo que a posse tenha sido exercida de forma prolongada e com os demais requisitos legais.

Nesse contexto, o ordenamento jurídico nega a esses possuidores um caminho judicial efetivo para alcançar a titulação plena, ainda que cumpram requisitos objetivos de legitimidade e função social da posse. Surge aí um impasse jurídico entre a boa-fé dos particulares e a presunção de domínio público que é arguida sempre que o particular busca meios de regularizar sua propriedade, ignorando-se que a posse constitui um direito autônomo e tutelável, como previsão expressa no Código Civil, no Estatuto da Terra e na Constituição Federal.

Um exemplo paradigmático da necessidade de rever essa lógica pode ser encontrado na Tese 7 da Jurisprudência em Teses nº 133 do Superior Tribunal de Justiça, que afirma com clareza: “A inexistência de registro imobiliário de imóvel objeto de ação de usucapião não induz presunção de que o bem seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva.”

Esse entendimento do STJ reforça a ideia de que o domínio público não pode ser presumido com base apenas na ausência de matrícula no registro imobiliário. Cabe ao Poder Público comprovar a titularidade das áreas que pretende defender como patrimônio estatal. A jurisprudência, portanto, abre uma importante brecha hermenêutica para o reconhecimento de direitos possessórios legítimos mesmo quando não há registro anterior ou clareza dominial.

Entretanto, apesar de avanços pontuais, o sistema jurídico brasileiro carece de um instrumento judicial autônomo que permita a um particular ajuizar, por sua conta e risco, uma ação específica de regularização fundiária, voltada à conversão da posse em propriedade, desde que atendidos requisitos objetivos e garantidos os direitos do contraditório e da ampla defesa.

A regularização fundiária precisa ser pensada como medida que garanta tutela a quem utiliza os bens imóveis para os fins existenciais, econômicos e sociais, em conformidade com os preceitos e fundamentos constitucionais da cidadania (art. 1º, inc. II), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), na garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II), na erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inc. III), a garantia à propriedade (art. 5º, caput e inc. XXII), atendimento da função social (art. 5º, inc. XXXIII), o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, inc. XXXIV, “a”), o direito de obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal (art. 5º, inc. XXXIV, “b”).

Além disso, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura como direitos e garantia fundamental que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, inc. XXXV) e que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, inc. XXXVI).

A presunção de que a terra é pública (quando não há título formal registrado) não pode ser tratada como absoluta, sobretudo quando há elementos concretos que demonstram: a existência de posse prolongada e pacífica; o exercício de função social da terra; o pagamento de tributos (ITR, CCIR, etc.); a existência de cadeia possessória documentada (contratos de compra e venda, cessões, leis estaduais, etc.); reconhecimento público da ocupação.

Ademais, a invocação da vedação à usucapião de bens públicos não impede a criação de mecanismos alternativos que reconheçam situações consolidadas, com base na função social e boa-fé. A posse não pode ser ignorada ou tratada como infração à ordem pública quando está consolidada por décadas e cumpre função social e econômica.

A ausência de uma ação judicial própria para a regularização fundiária por iniciativa do particular reflete uma das mais graves omissões estruturais do Poder Público brasileiro. Historicamente, a União e os entes federativos adotaram uma postura passiva, apoiando-se no formalismo jurídico e na presunção de domínio público para evitar o enfrentamento de demandas legítimas de regularização de posses produtivas.

Essa postura coloca o Estado em uma zona de conforto institucional, onde se exime de seu dever de ordenar o território, promover justiça social e garantir o pleno exercício da cidadania. Enquanto isso, o particular — frequentemente agricultor, posseiro de boa-fé, contribuinte regular e produtor — vê-se impedido de exercer plenamente seus direitos, por falta de instrumento legal adequado que reconheça sua situação consolidada.

Ao invés de buscar a solução desses conflitos fundiários com base em critérios objetivos de boa-fé, produtividade, tempo de posse e cumprimento de função social, o Estado silencia. Este silêncio, no entanto, tem consequências: impede a titulação, afasta investimentos, fragiliza a segurança jurídica e perpetua a exclusão fundiária.

A criação de uma ação particular de regularização fundiária não representa uma concessão indevida ao particular, mas sim o cumprimento de um dever constitucional do Estado em garantir instrumentos legais aptos à proteção de direitos legítimos. O Poder Judiciário não pode continuar sendo inacessível a quem não dispõe de ação específica para sua realidade fundiária.

Por essa razão, a construção de um novo paradigma, mais acessível, democrático e eficaz, exige o reconhecimento da legitimidade da iniciativa privada para buscar judicialmente a regularização fundiária de áreas ocupadas de boa-fé, mediante critérios técnicos e jurídicos claros, e com garantias suficientes ao contraditório e à segurança jurídica. É neste cenário que se propõe a criação da ação particular de regularização fundiária, cuja proposta será desenvolvida no próximo tópico.

  1. A proposta de criação da ação particular de regularização fundiária

Diante da omissão estatal e do vácuo normativo identificado, propõe-se a criação de um novo instrumento jurídico: a ação particular de regularização fundiária. Trata-se de uma ação judicial autônoma, de natureza constitutiva, voltada à obtenção do reconhecimento judicial da propriedade de imóveis rurais, ocupados por particulares de boa-fé, que cumpram critérios objetivos de legitimidade possessória e de função social da terra, com vistas à titulação plena.

A proposta se baseia na necessidade de garantir acesso à justiça e efetivação do direito fundamental à propriedade (art. 5º, XXII, da CF/88), em conformidade com os princípios da dignidade da pessoa humana, da função social da terra, da segurança jurídica e do devido processo legal. A finalidade da ação é permitir que o particular, por iniciativa própria, sem depender da iniciativa ou da discricionariedade do Poder Público, possa obter, por via judicial, a regularização fundiária de sua ocupação legítima.

3.1. Natureza e fundamentos da ação particular de regularização fundiária

A ação particular de regularização fundiária não se confunde com a ação de usucapião, tampouco com a ação discriminatória ou com os procedimentos administrativos de regularização fundiária promovidos por entes federativos. Ao contrário, apresenta-se como um novo tipo de tutela jurisdicional, específico e adequado às peculiaridades da ocupação de terras públicas ou presumidamente públicas por particulares que não preenchem, necessariamente, os requisitos da usucapião, mas que já exercem posse prolongada, pacífica, produtiva e de boa-fé, conforme os critérios objetivos previstos no Estatuto da Terra e na jurisprudência agrária consolidada.

Diferentemente da usucapião, que exige o decurso de tempo legal e a posse com animus domini, a ação de regularização fundiária particular teria como foco a comprovação da legitimidade da posse, a inexistência de oposição do Poder Público ou de terceiros, a utilização agrária do imóvel conforme sua função social e a inércia injustificada do Estado em promover a regularização.

Essa proposta se alinha com os princípios constitucionais da administração pública (art. 37 da CF), os objetivos da política agrária nacional (art. 184 a 191 da CF) e com o espírito do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), sobretudo em seu art. 2º, que estabelece a destinação da terra conforme os critérios de justiça social e aumento da produtividade.

A ação também se justifica diante da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, conforme já citado anteriormente, segundo a qual a ausência de matrícula no registro imobiliário não permite presumir que o imóvel seja público, incumbindo ao Estado o ônus de demonstrar sua titularidade, caso alegue se tratar de terra devoluta ou bem público. Isso reforça o dever do Estado de demonstrar a existência de domínio público, sob pena de prevalecer o interesse jurídico do possuidor de boa-fé.

Desta forma, a ação particular de regularização teria como finalidade  permitir que o possuidor ou ocupante de boa-fé de imóvel rural não regularizado possa requerer judicialmente: o reconhecimento da posse qualificada, quando exercida com função social; o reconhecimento da propriedade, com base na consolidação da posse e/ou na existência de títulos formais ou informais, ainda que remotos ou não registrados; e, a validação de títulos ou documentos emitidos por entes públicos que comprovem a origem legítima da ocupação

3.2. Estrutura processual e requisitos da ação

A Ação Particular de Regularização Fundiária teria natureza contenciosa, tramitando sob o rito comum do Código de Processo Civil, com ampla garantia do contraditório e da participação do ente federativo competente (União, Estado ou Município) como litisconsorte necessário. Para seu cabimento, alguns pressupostos mínimos devem ser observados, tais como: (a) a comprovação da posse mansa, pacífica e contínua há pelo menos cinco anos; (b) o  exercício de função social da terra, com uso produtivo e sustentável do imóvel; e (c) apresentação de documentação de origem da posse.

Como exemplo de documentos probatórios, válidos para a  formação da presunção de legitimidade da posse ou propriedade em favor do particular, ainda que não registrados ou sem valor de título dominial, destacamos: I – os títulos emitidos por órgãos da administração pública direta ou indireta; II – os contratos de compra e venda firmados com colonizadoras reconhecidas ou programas públicos de ocupação e reforma agrária; III – as certidões, declarações ou autorizações expedidas por órgãos fundiários estaduais ou federais; IV – os documentos cartorários, tais como escrituras públicas, registros antigos ou cancelados, transcrições em livros do Registro Geral de Imóveis, certidões de matrícula, certidões de inteiro teor, contratos com firmas reconhecidas ou qualquer outro documento notarial que demonstre a origem da ocupação ou da posse; V – os demais documentos que revelem a origem privada, formal ou reconhecida da ocupação, ainda que datados de décadas anteriores; VI – documentos que comprovem que a posse atendeu critérios de programas de regularização promovidos pelo poder público, assegurando a validade do reconhecimento de domínio pelo ente estadual ou federal pelos critérios estabelecidos por tais atos normativos, mesmo que não estejam mais vigentes; VII – documentos que comprovem que a posse preencheu critérios estabelecidos por programas públicos de regularização fundiária, promovidos por entes federativos, assegurando-se a validade do reconhecimento de domínio pelo ente estadual ou federal com base nos critérios definidos por tais atos normativos, mesmo que revogados ou sem vigência atual; e, VIII – ata notarial de posse.

É importante que a apresentação de documentos idôneos, tais como os listados anteriormente, possam gerar presunção relativa de boa-fé e de legitimidade da posse ou ocupação em favor do particular autor da ação particular de regularização fundiária, competindo ao Poder Público o ônus de impugná-los com prova idônea em sentido contrário. Além disso, também é importante assegurar que a existência de registros incompletos, antigos, cancelados ou inconsistentes não impeçam o reconhecimento judicial da posse ou da propriedade, desde que comprovada a continuidade da ocupação com base na boa-fé, na função social e nos demais requisitos para a propositura da ação particular de regularização fundiária.

Ainda, cabe observar que a regularização por meio desta ação não dispensa o cumprimento de exigências ambientais e urbanísticas eventualmente aplicáveis, nem exime o beneficiário das obrigações fiscais e contributivas incidentes. Igualmente, o procedimento previsto para a ação particular de regularização fundiária não se aplicaria aos imóveis situados em terras indígenas ou quilombolas, localizados em áreas de unidades de conservação de proteção integral ou integrantes de áreas militares ou de uso estratégico da União.

4.3. Efeitos jurídicos e garantias

A sentença proferida na Ação Particular de Regularização Fundiária produziria efeitos erga omnes, conferindo ao particular o domínio pleno do imóvel e permitindo sua regular inscrição no registro imobiliário. Ao Estado seria assegurada a possibilidade de impugnar a ação, mediante produção de prova de que o imóvel é de seu domínio ou está destinado ao uso público, hipóteses em que a ação deverá ser julgada improcedente.

Além disso, a sentença que julgar procedente a ação teria natureza declaratória e constitutiva, servindo como título hábil para a matrícula no registro de imóveis, na forma do art. 221, II, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), com menção expressa à sua origem em ação judicial de regularização fundiária.

A proposta preserva, portanto, todas as garantias do devido processo legal, não afronta o princípio da indisponibilidade do patrimônio público e respeita a competência da Justiça para dirimir conflitos de natureza fundiária. Ao mesmo tempo, contribui para a pacificação de conflitos, a inclusão social, o fomento à produção rural e o combate à informalidade fundiária que ainda predomina em grandes regiões do país.

4.4. Justificativa legislativa

A criação da ação particular de regularização fundiária depende de aprovação por meio de lei federal.  Nesse sentido, para viabilizar a proposta, redigimos uma minuta que se encontra anexada ao presente artigo como proposta legislativa a ser apresentada por Deputado Federal ou Senador.

A medida visa suprir o vácuo normativo hoje existente, oferecendo uma via processual clara, legítima e eficaz ao particular que deseja regularizar sua posse sem que para isso dependa da vontade política ou da atuação discricionária da administração pública, reconhecendo situações consolidadas, legítimas e socialmente relevantes, em que a terra já cumpre sua função social e onde o Estado, por omissão, contribui para a perpetuação da informalidade.

Considerações Finais

A realidade fundiária brasileira exige medidas inovadoras, eficazes e céleres para enfrentar a histórica informalidade na ocupação de terras, especialmente nas regiões onde a atuação estatal é limitada ou ineficiente. Apesar da existência de programas públicos e de marcos normativos importantes, como o Estatuto da Terra, a Lei de Terras e os instrumentos recentes de regularização fundiária, o atual modelo ainda se mostra insuficiente para atender, com a urgência necessária, as demandas de milhões de brasileiros que ocupam imóveis de forma legítima, produtiva e pacífica, mas que permanecem excluídos do sistema formal de propriedade.

A proposta da ação particular de regularização fundiária busca preencher esse vácuo normativo ao oferecer um mecanismo judicial próprio, com garantias processuais e critérios objetivos, que permita ao particular acessar diretamente o Judiciário para buscar a regularização da sua posse. Ao permitir que o cidadão possa provocar o sistema de justiça, sem depender da atuação prévia do Estado, cria-se uma via legítima, transparente e tecnicamente estruturada para a titulação da terra, com ganhos diretos em termos de segurança jurídica, inclusão social, desenvolvimento agrário e proteção ambiental.

Importante destacar que a proposta não desestrutura o regime jurídico da dominialidade pública, nem se sobrepõe ao poder de planejamento territorial do Estado. Ao contrário, ela se ancora no princípio da função social da propriedade, no dever de efetividade dos direitos fundamentais e na valorização da posse legítima como base da cidadania agrária. Ademais, garante ao ente público o contraditório e a possibilidade de contestação sempre que houver interesse público relevante ou demonstração de domínio legítimo.

Em suma, a criação da ação particular de regularização fundiária representa um avanço no campo do Direito Agrário e da política fundiária nacional. Não se trata de mera inovação legislativa, mas de uma resposta necessária à realidade vivenciada no campo e nas áreas rurais brasileiras, onde o direito à terra, muitas vezes, ainda é um privilégio de poucos. Ao reconhecer juridicamente a legitimidade da ocupação produtiva e de boa-fé, o ordenamento fortalece não apenas o direito à propriedade, mas também a dignidade humana, a sustentabilidade ambiental e a soberania alimentar do país.

Bibliografia

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VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

ANEXO – Minuta de Projeto de Lei

PROJETO DE LEI Nº _____, DE 2025

Cria a Ação Particular de Regularização Fundiária para fins de reconhecimento judicial da posse e da propriedade de imóveis rurais utilizados para fins produtivos por particulares de boa-fé, reconhecendo a validade de títulos remotos e expedidos por entes públicos, e dá outras providências.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Fica instituída, no ordenamento jurídico brasileiro, a Ação Particular de Regularização Fundiária, com a finalidade de permitir que o possuidor ou ocupante de boa-fé de imóvel rural não regularizado possa requerer judicialmente:
I – o reconhecimento da posse qualificada, quando exercida com função social;
II – o reconhecimento da propriedade, com base na consolidação da posse e/ou na existência de títulos formais ou informais, ainda que remotos ou não registrados;
III – a validação de títulos ou documentos emitidos por entes públicos que comprovem a origem legítima da ocupação.

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se válidos, para fins probatórios e de formação da presunção de legitimidade da posse ou propriedade, os seguintes documentos, ainda que não registrados ou sem valor de título dominial:
I – títulos emitidos por órgãos da administração pública direta ou indireta;

II – contratos de compra e venda firmados com colonizadoras reconhecidas ou programas públicos de ocupação e reforma agrária;

III – certidões, declarações ou autorizações expedidas por órgãos fundiários estaduais ou federais;

IV – documentos cartorários, tais como escrituras públicas, registros antigos ou cancelados, transcrições em livros do Registro Geral de Imóveis, certidões de matrícula, certidões de inteiro teor, contratos com firmas reconhecidas ou qualquer outro documento notarial que demonstre a origem da ocupação ou da posse;
V – demais documentos que revelem a origem privada, formal ou reconhecida da ocupação, ainda que datados de décadas anteriores.

VI – documentos que comprovem que a posse atendeu critérios de programas de regularização promovidos pelo poder público, assegurando a validade do reconhecimento de domínio pelo ente estadual ou federal pelos critérios estabelecidos por tais atos normativos, mesmo que não estejam mais vigentes.

VII – documentos que comprovem que a posse preencheu critérios estabelecidos por programas públicos de regularização fundiária, promovidos por entes federativos, assegurando-se a validade do reconhecimento de domínio pelo ente estadual ou federal com base nos critérios definidos por tais atos normativos, mesmo que revogados ou sem vigência atual.

VIII – ata notarial de posse.

§ 1º A apresentação dos documentos listados neste artigo gera presunção relativa de boa-fé e de legitimidade da posse ou ocupação, competindo ao Poder Público o ônus de impugná-los com prova idônea em sentido contrário.

§ 2º A existência de registros incompletos, antigos, cancelados ou inconsistentes não impede o reconhecimento judicial da posse ou da propriedade, desde que comprovada a continuidade da ocupação com base na boa-fé, na função social e nos demais requisitos previstos nesta Lei.

Art. 3º São requisitos para o ajuizamento da Ação Particular de Regularização Fundiária:
I – comprovação da posse mansa, pacífica e contínua há pelo menos 5 (cinco) anos da promulgação da presente lei;

II – exercício de função social da terra, com uso produtivo e sustentável do imóvel;
III – apresentação de qualquer documentação de origem da posse, nos termos do art. 2º, ou outro meio idôneo de prova.

Art. 4º É parte legítima para propor a ação o possuidor direto do imóvel, pessoa natural ou jurídica, que comprove o preenchimento dos requisitos do art. 3º.

Art. 5º Será citado como réu o ente federativo a quem se presume a titularidade originária do bem (União, Estado ou Município), conforme a localização do imóvel.
Parágrafo único. Poderão ser chamados a intervir no feito autarquias, fundações ou demais entes que eventualmente detenham interesse ou gestão sobre o bem.

Art. 6º O juiz, verificando o preenchimento dos requisitos legais e a ausência de oposição válida do Poder Público ou de terceiros, declarará por sentença o direito do autor à posse qualificada ou à propriedade do imóvel, determinando, conforme o caso, a expedição de título de propriedade para registro no cartório de registro de imóveis competente.

Art. 7º A sentença que reconhecer o domínio do particular sobre o imóvel regularizado constitui título hábil para registro imobiliário.

Parágrafo único. A regularização por meio desta ação não dispensa o cumprimento de exigências ambientais e urbanísticas eventualmente aplicáveis, nem exime o beneficiário das obrigações fiscais e contributivas incidentes.

Art. 8º A propositura da ação suspende automaticamente quaisquer processos administrativos fundiários em curso sobre o imóvel objeto da demanda, até decisão final.

Art. 9º Esta Lei não se aplica aos imóveis:

I – situados em terras indígenas ou quilombolas;

II – localizados em áreas de unidades de conservação de proteção integral;

III – integrantes de áreas militares ou de uso estratégico da União.

Art. 10. No curso da Ação Particular de Regularização Fundiária, o juiz poderá determinar, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de medição, demarcação ou vistoria do imóvel objeto da demanda, podendo designar audiência específica para a realização desses atos, com a participação dos interessados, visando garantir a adequada delimitação da posse ou propriedade, assegurando celeridade, economia processual e efetividade da prestação jurisdicional.

Art. 11. Compete ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ):

I – criar e estabelecer a classe processual específica para a Ação Particular de Regularização Fundiária nos sistemas judiciais;

II – promover a revisão e a adaptação das resoluções relativas aos serviços notariais e de registro, visando garantir a observância dos dispositivos desta Lei;

III – orientar e fiscalizar os cartórios de registro de imóveis quanto ao registro e averbação dos títulos decorrentes das sentenças proferidas na forma desta Lei;

IV – dispor sobre a aplicação desta Lei aos processos judiciais em curso que versem sobre conflitos fundiários e pedidos de regularização fundiária, garantindo sua integração e uniformização.

Art. 12. O Ministério Público poderá ser intimado a intervir como fiscal da ordem jurídica em todas as ações propostas com fundamento nesta Lei.

Parágrafo único. A omissão do Ministério Público não impede o regular prosseguimento da ação, salvo quando sua intervenção for legalmente obrigatória, conforme o disposto no Código de Processo Civil.

Art. 14. A Ação Particular de Regularização Fundiária deverá ser julgada no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias contados do saneamento do processo.

§ 1º Decorrido o prazo sem sentença, e verificado o preenchimento dos requisitos previstos nesta Lei, poderá o autor requerer tutela de evidência para fins de imissão na posse qualificada ou registro provisório da propriedade, conforme o caso.

§ 2º O disposto no caput não impede a continuidade do processo, tampouco impede que o juízo realize diligências ou pratique atos instrutórios, quando essenciais à segurança jurídica da decisão.

Art. 15. A apresentação, pelo autor, de documentos previstos no art. 2º desta Lei gera presunção relativa de veracidade quanto à origem da posse e à sua boa-fé.

§ 1º Caberá ao ente público ou a terceiros que impugnarem a pretensão o ônus da prova quanto à inexistência dos requisitos legais ou à má-fé do possuidor.

§ 2º Sempre que houver comprovação da exploração produtiva do imóvel e da continuidade da posse, nos termos desta Lei, a dúvida quanto à origem do domínio deverá ser interpretada em favor da regularização fundiária e da função social da terra.

Art. 16. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICATIVA

O presente Projeto de Lei tem por objetivo a criação da Ação Particular de Regularização Fundiária, instrumento judicial específico destinado ao reconhecimento da posse qualificada e da propriedade de imóveis rurais utilizados para fins produtivos por particulares de boa-fé, com vistas à superação do impasse jurídico existente entre a presunção de domínio público e a consolidação da posse legítima.

A problemática da regularização fundiária no Brasil é histórica e complexa, resultando, em larga medida, da omissão estatal e da insuficiência de mecanismos adequados para assegurar a efetividade dos direitos de posse e propriedade. Embora o ordenamento jurídico contemple ações administrativas e judiciais, como a ação discriminatória de terras devolutas, estas são, em geral, de iniciativa exclusiva do Poder Público, deixando os particulares em situação de vulnerabilidade jurídica. Isso gera insegurança jurídica, exclusão social e entraves ao desenvolvimento rural.

Tal cenário força os particulares a recorrerem, muitas vezes de forma inadequada, à ação de usucapião contra o Poder Público, enfrentando a presunção legal de domínio público amparada na Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Contudo, tal entendimento não pode ser absoluto quando confrontado com a boa-fé objetiva, a função social da posse e o exercício prolongado e pacífico da posse com respaldo documental, ainda que remoto.

Em resposta a esse cenário, o presente projeto propõe a criação de uma ação judicial específica, de iniciativa privada, que permite ao possuidor de boa-fé requerer o reconhecimento da posse qualificada ou da propriedade do imóvel, com base em documentos formais ou informais, inclusive títulos públicos remotos, desde que demonstrado o uso produtivo e o cumprimento da função social da propriedade rural.

A proposta é harmônica com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que consagra diversos preceitos que fundamentam a necessidade e a legitimidade desta iniciativa legislativa:

a) O art. 1º, incisos II e III, estabelece como fundamentos da República a cidadania e a dignidade da pessoa humana;

b) O art. 3º, incisos II e III, determina como objetivos fundamentais o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais;

c) O art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à propriedade, e nos incisos XXII e XXXIII garante o direito de propriedade atendendo à sua função social;

d) Os incisos XXXIV “a” e “b” do art. 5º asseguram o direito de petição aos poderes públicos e o direito à obtenção de certidões para defesa de direitos;

e) O inciso XXXV do art. 5º consagra que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”;

f) O inciso XXXVI do art. 5º protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

g) O art. 37, caput, estabelece o princípio da eficiência na administração pública;

h) O inciso LXXVIII do art. 5º assegura a duração razoável do processo.

Além disso, a previsão legal do reconhecimento judicial da posse e da propriedade por meio da nova ação atende à necessidade de conferir segurança jurídica e efetividade à função social da terra, coibindo o uso abusivo do formalismo jurídico que impede a regularização de posses consolidadas em prol do interesse público, mas sem excluir a proteção de direitos legítimos.

A proposição legislativa observa os parâmetros constitucionais de repartição de competências, não havendo vícios formais ou materiais de inconstitucionalidade. Trata-se de matéria que se insere no âmbito da competência privativa da União para legislar sobre:

a) Direito Civil, conforme o art. 22, inciso I, da Constituição Federal, uma vez que o projeto trata da estruturação de um novo tipo de ação judicial, com efeitos sobre posse e propriedade, que são institutos de direito civil;

b) Direito Agrário, também abrangido pelo art. 22, inciso I, considerando que a norma busca regular imóveis rurais e a função social da terra, temas ligados à política fundiária;

c) Direito Processual Civil, igualmente previsto no art. 22, inciso I, ao dispor sobre a criação de procedimento específico e sobre competências do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A criação da Ação Particular de Regularização Fundiária, nos moldes propostos, respeita os princípios constitucionais do devido processo legal, da segurança jurídica e da função social da propriedade, promovendo o acesso à justiça (art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII) e reafirmando o papel do Judiciário na pacificação social e no reconhecimento de situações consolidadas de fato e de direito.

Adicionalmente, o projeto guarda consonância com as diretrizes do sistema federativo brasileiro, sem invadir competências legislativas dos entes subnacionais, limitando-se a estabelecer normas gerais e procedimentais, cuja aplicação concreta seguirá a legislação local no que couber, em consonância com os princípios da simetria e da subsidiariedade federativa.

A regularização fundiária representa uma importante vantagem para o Poder Público e para a sociedade, pois:

  1. Garante segurança jurídica, fundamental para a estabilidade das relações sociais e econômicas, assegurando o direito à propriedade e à posse legítima;
  2. Viabiliza investimentos produtivos e sustentáveis, incentivando a modernização e o aumento da produtividade nas áreas rurais;
  3. Facilita o controle estatal e a fiscalização ambiental e fundiária, tornando mais eficazes as políticas públicas de ordenamento territorial e proteção ambiental;
  4. Amplia a base para a arrecadação tributária, em especial do Imposto Territorial Rural (ITR), fortalecendo as finanças públicas;
  5. Promove a dignidade e a inclusão social, reconhecendo direitos legítimos e reduzindo desigualdades e a pobreza rural;
  6. Contribui para a paz social, diminuindo conflitos fundiários e litigiosidade;
  7. Combate a grilagem de terras e fraudes, por meio do reconhecimento formal e judicial da posse legítima e dos títulos públicos remotos;
  8. Facilita o cumprimento das normas ambientais e urbanísticas, contribuindo para o desenvolvimento sustentável;
  9. Reduz conflitos fundiários e fraudes (como a grilagem);
  10. Promove justiça social e desenvolvimento sustentável.

O Projeto prevê a aceitação de documentos emitidos por órgãos públicos, inclusive títulos remotos e documentos cartorários, como elementos probatórios aptos a gerar presunção relativa de legitimidade, invertendo o ônus da prova para o Poder Público, que deverá impugná-los com provas robustas, conforme o princípio do contraditório e ampla defesa.

Outrossim, prevê-se a possibilidade de o juiz determinar, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de medição, demarcação ou vistoria do imóvel, com a participação dos interessados, objetivando assegurar celeridade, economia processual e a efetividade da prestação jurisdicional, em consonância com os princípios constitucionais da eficiência (art. 37, caput) e da duração razoável do processo (art. 5º, inciso LXXVIII).

Igualmente, o projeto prevê a participação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica nos casos em que houver relevante interesse público ou conflito fundiário latente, garantindo maior proteção institucional e transparência processual, bem como a previsão de prazo razoável para julgamento (180 dias após o saneamento), com possibilidade de concessão de tutela de evidência caso haja mora do Judiciário, reforçando a efetividade da jurisdição fundiária.

Por fim, atribui-se ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a competência para criar classe processual específica e adequar as normas relativas aos serviços notariais e de registro, garantindo a uniformidade e a observância das disposições da presente Lei, o que reforça a segurança jurídica e a efetividade da tutela.

Por isso, a criação de uma ação particular de regularização fundiária não representa uma concessão ao particular, mas sim o cumprimento de um dever constitucional do Estado: o de garantir instrumentos legais capazes de reconhecer e proteger direitos legítimos, proporcionando acesso efetivo ao Judiciário a quem hoje está excluído por lacuna normativa.

A consolidação de posses produtivas — ainda que com origem documental imperfeita — promove inclusão social, segurança jurídica, arrecadação fiscal e ordenamento territorial.

O projeto não representa concessão arbitrária de terras, mas sim o cumprimento do dever constitucional de assegurar instrumentos jurídicos eficazes à proteção de situações consolidadas de fato e de direito, sempre com respeito ao contraditório, à ampla defesa e à legalidade.

Importante destacar que estão excluídas da aplicação da lei as áreas de especial interesse público, como terras indígenas, quilombolas, unidades de conservação de proteção integral e áreas militares, respeitando os marcos legais e constitucionais já existentes.

Por fim, esta proposição visa preencher uma lacuna normativa real, dando aos particulares uma via legítima para buscar no Judiciário a regularização de suas situações fundiárias, diante da inércia ou da complexidade dos mecanismos atualmente disponíveis.

Diante disso, o projeto ora apresentado alinha-se aos valores da Constituição de 1988 e contribui para um ordenamento jurídico mais inclusivo, moderno e eficaz, promovendo segurança jurídica, justiça social e o desenvolvimento sustentável do meio rural brasileiro.

Assim, o Projeto de Lei ora apresentado atende aos princípios constitucionais da justiça social, da proteção à posse e propriedade, da dignidade da pessoa humana, da eficiência administrativa e da garantia do acesso à Justiça, preenchendo importante lacuna legislativa e contribuindo para a construção de um ordenamento jurídico mais justo, moderno e eficaz.

Notas:

[1] Sobre o assunto: Albenir I. Querubini Gonçalves. O regramento jurídico das sesmarias. São Paulo: LEUD, 2014. Também as obras jurídicas fundamentais para compreender o sistema sesmarial e a formação do território brasileiro: RAU, Virgínia. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa: Editorial Presença, 1982; CIRNE LIMA, Ruy. Origens e aspétos do regime de terras no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1933; COSTA PORTO, José da. O Sistema Sesmarial no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980; e, VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

[2] Sobre o assunto confira: “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 4: O dever de produção agrária, disponível em: https://direitoagrario.com/direito-agrario-levado-a-serio-episodio-4-o-dever-de-producao-agraria/. Acesso em: 20 maio 2025.

[3]Sobre a obra: CHIAVARI, Joana; LOPES, Cristina Leme; ARAÚJO. Panorama dos direitos de propriedade no Brasil Rural. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021.

[4] O Estado do Piauí é um bom exemplo de experiência na regularização fundiária através da edição de normas e programas regionais. Sobre o assunto, confira a seguinte obra: FURTADO, Gabriel Rocha; VELOSO, Francisco Lucas Costa (orgs.). Propriedade territorial no Piauí. Teresina: EDUFPI, 2023.

Albenir Querubini – Advogado . Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional e Mestre em Direito pela UFRGS. Professor de Direito Agrário. Presidente da UBAU.

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