por Rogério Reis Devisate.
INTRODUÇÃO
A natureza da pretensão jurídica deduzida em Juízo definirá a natureza da Sentença Judicial.
Exemplificaremos: (1) diante da nulidade de negócio jurídico, a pretensão autoral não será para se o anular, mas para se o declarar nulo, já que o ato jurídico nulo não produz efeitos jurídicos válidos (quod nullum est, nullum producit effectum), como, aliás, expressa o artigo 169[1] do Código Civil, que diz que o ato nulo não se convalesce; (2) no Mandado de Segurança, o pedido será para a concessão de uma Ordem e não a constituição ou desconstituição de ato.
E na Ação Discriminatória de Terras Devolutas, a pretensão jurídica alvitra o cancelamento do registro imobiliário de terras em nome de um particular? A sua natureza então é constitutiva-negativa ou desconsitutiva, para se declarar a terra pública? Ou seria declaratória? É o que vamos analisar.
A ORIGEM DAS TERRAS, NO BRASIL.
Como já dissemos[2], “os problemas com as chamadas terras devolutas começaram ao tempo da Constituição Federal de 1.891 que, pelo seu artigo 64, transferiu para os Estados federados o seu domínio sobre as terras devolutas da União, alvitrando desfazer a “supercentralização do Império”[3] e fortalecer o universo eleitoreiro dos afinados politicamente com o poder dominante, sem planejamento, sem visão de futuro, bem ao modo do jeitinho brasileiro.”
Ibraim Rocha[4] diz que as “terras que hoje compõem o Brasil já pertenciam por direito à Portugal” e que “toda propriedade privada no Brasil tem origem no patrimônio público”. Antonio Moura Borges[5] se manifesta no mesmo sentido, dizendo que ”por principio todas as terras não tituladas […] são consideradas como devolutas ou terras públicas”, de forma que ”a definição de terras devolutas deve ser feito por EXCLUSÃO”.
Nas origens, era sob a modalidade de Capitais Hereditárias[6] que a ocupação ganhou forma, com os seus donatários podendo distribuir sesmarias e fiscalizar o uso da terra. Contudo, Vito José Guglielmi[7] ensina que “a terra era dada para o donatário administrá-la como província e não como propriedade privada. Aos donatários era ainda vedado partir a capitania”.
Ora, o donatário não podia partir ou vender a capitania porque não era o seu dono, apenas revelando uma aparência de proprietário diante do exercício do uso e fruição, embora pudesse exercitar potestades políticas não só inerentes à concessão e gestão das sesmarias.
Posteriormente, a ocupação se deu por concessões de terras por Sesmaria[8]`[9]`[10] e esse modelo agrário adotado pela Coroa Portuguesa até hoje tem concretos reflexos no campo.
Albenir Querunibi[11], em ímpar obra, avança nas considerações clássicas sobre a Sesmaria – pela qual teria a intenção política de servir aos dominantes latifundiários – ao registrar, com precisão e pleno domínio do conhecimento, que
...”a análise histórica revela que jamais houve, pelo menos não na forma comumente defendida, a intenção de utilizar o regime como instrumento de dominação e manutenção de classes sociais. No tocante a este aspecto metodológico, deve-se buscar tecer teorizações tomando a prática (ou a base factual) como princípio, a fim de não se recair em idealismos estéreis e divorciados da realidade percebida a partir das fontes históricas”
Raymundo Faoro[12] que diz que ”a feição mais importante do instituto – a reversão da terra não cultivada à Coroa – conservou-se graças à revolução de Avis, com o perfil de predomínio da coisa pública – dos fins e objetivos públicos – sobre a ordem particular”.
Esse sistema pouco contribuiu para a agricultura e tanto que José Bonifácio de Andrade e Silva conseguiu de Dom Pedro I a edição da Resolução de 17 de julho de 1822, que deu fim a esse regime (um pouco antes, portanto, da Declaração da Independência do Brasil, ocorrida em 07 de setembro de 1822).
Com o fim da concessão novas de Cartas de Sesmaria, por cerca de vinte e oito anos o sistema de aquisição da propriedade privada deu-se pela simples ocupação ou apossamento das terras[13]`[14] com efetivo uso por moradia ou cultura, até que em 18 de setembro de 1850 fosse editada a Lei 601/1850, conhecida como Lei de Terras[15]. Nesse tempo, como ensina Raymundo Faoro[16]:
“Criou-se, também, uma classe de posseiros sem títulos, legitimados, em 1822, com a qualidade de proprietários, com medida (Resolução de 17 de julho de 1822) que anulou o regime das sesmarias. A evolução do instituto chegou ao fim: de concessão administrativa ao domínio, do domínio à posse, até o estatuto promulgado em 1850, que consagrou o sistema da compra das terras devolutas” (nossos os grifos).
Novamente, Albenir Querubini[17] avança ao didaticamente esclarecer que:
…”é importante observar que não houve uma revogação do regime sesmarial, mas apenas a proibição da concessão de novas sesmarias. Logo, seria um equívoco considerar a Resolução de 17 de julho de 1822 como marco final da aplicação do regime sesmarial, o qual permaneceu vigente até a edição da Lei de Terras de 1.850”.
Ocorre que esse uso da terra acabou por se chocar com a titularidade e os direitos do concessionário das sesmarias, gerando “conflitos, instabilidade e insegurança”, sendo “verdadeiramente caótico o estado em que se encontrava a propriedade territorial no Brasil, nos meados do século XIX.”[18]
Então, do regime das sesmarias surge a idéia de terras devolutas, espécie de terra pública, apenas não registrada em nome de um ente federativo, embora integrante do patrimônio fundiário, como claramente depois prevê o art. 5º, do Decreto-lei 9.760/46.
TERRAS DEVOLUTAS, NA CARTA POLÍTICA DE 1988
A Constituição Federal de 1988 inclui as devolutas terras como patrimônio público (art. 225, P 5º c/c 20, II). Estas, ao serem discriminadas, passam a ser parte do patrimônio público disponível, como bem dominical ou dominial. Portanto, enquanto não discriminadas são indisponíveis!
Isso é importante para ajudar a definir a natureza da sentença da ação discriminatória (o que estudaremos adiante), pois sendo declaratória, só confirma a natureza pública e o fato de ser vedada a sua aquisição por usucapião.
A respeito, já disemos[19]:
“É importante contextualizar os anos que antecederam à edição da Lei de Terras de 1850. Os debates sobre o fim do tráfico negreiro e a necessidade de edição de uma lei sobre as terras aumentaram na década de 1.840, notadamente com o Bill Aberdeen, o decreto inglês de 1.845. Venceu a tese que alvitrava controlar e dificultar o acesso do imigrante à terra e ao mesmo tempo gerar recursos para custear a imigração, a medição e o registro das terras, instituindo tributo territorial.
Temos que inserir no mesmo contexto histórico a edição do Código Comercial[20] – para o qual foi importante o trabalho do Barão de Mauá[21] – e a instituição da Tarifa Alves Branco[22]. Este conjunto de medidas foi fundamental passarmos do trabalho escravo para o livre, com as profundas reformas políticas, jurídicas e econômicas do período.”
[…]
Duas curiosidades: (1) a revelada preocupação com direitos dos índios em obter gratuitamente terras para instalação de colônias (art. 1º, II) e (2) o interesse na indústria naval (art. 20), fato curioso, se considerarmos que a primeira indústria naval brasileira surgiu apenas em 1.846, com a inauguração do estaleiro em Ponta da Areia, Niterói – RJ, construído pelo Barão de Mauá.”
Inegável que a Lei de Terras de 1850 nos deu o critério da exclusão para compreensão do fenômeno. Nas palavras de Messias Junqueira[23]: “devolutas são aquelas terras que não verteram para o domínio privado, deste excluído, evidentemente, o que estiver incorporado ao patrimônio público, como propriedade do Poder Público e aquilo que estiver aplicado a qualquer uso público.”
Ibraim Rocha[24], aliás, ensina que
“O Supremo Tribunal Federal, em pelo menos quatro oportunidades ímpares, já apontou claramente no sentido de que esta origem histórica do patrimônio público e o desenlace deste é que legitima a propriedade privada. Aliás, esta origem histórica da formação territorial do Brasil é a justificativa primeira para a Constituinte de 1988 prescrever claramente a impossibilidade de usucapião de terras públicas, no art. 191, parágrafo único. E disso decorre a nulidade absoluta de registro perante o Cartório de Registro de Imóveis de documentos que não são aptos a transferir a propriedade […]O Estado de Goiás não precisa provar nada. A presunção é de que a terra é dele. O particular é que tem de provar, por uma cadeia sucessória, que as terras foram desmembradas do Após expor a justificativa do processo discriminatório, destacou o Ministro Evandro Lins e Silva a respeito do registro de imóveis sobre as terras públicas: “a transcrição não expurga de vícios o domínio nem a posse pode se objetivar sobre coisas fora de comércio”. Portanto, deixa o Ministro evidente a impossibilidade de o registro constituir meio legítimo e suficiente para a excluir presunção de domínio do Estado sobre as terras do seu território […]Aliás, segundo este lógica, o Ministro Moreira Alves no seu voto, no julgamento da citada representação de inconstitucionalidade, asseverou que: “Em nosso sistema jurídico, ao contrário do que ocorre no direito alemão, o registro do título de imóveis é causal e gera, apenas, a presunção júris tantum de propriedade. O que importa dizer qe, inválido o título, inválido será o registro, desfeita, assim, a aparência de transferência de propriedade […] o particular não pode serquer caracterizar a sua ocupação da área como posse, e sim mera detenção […] 2–Quando as terras, objeto do litígio, pertencem ao poder público, não há que se falar em posse, e sim em mera detenção, situação fática que ocorre quando a pessoa ocupa a coisa alheia por mera permissão ou tolerância do possuidor. 3 – A posse de natureza precária não gera direito à proteção possessória. […] Destarte a matrícula de título inexistente é ato jurídico nulo e como tal não pode jamais ser convalidado” (nossos os grifos)
Assim como a liberdade, cujo sentido talvez só se compreenda quando se a perde, é por exclusão que também entenderemos o que sejam terras devolutas, ou seja, são aquelas que não sejam privadas e não tenham específico fim público (apesar de ser pública em essência, a tipificação que remonta à Lei 601/1850 foi reforçada pelo art. 188 da CF/88, pelo qual o constituinte referiu-se às terras públicas e às terras devolutas, não como diferenciação e sim para enfatizar que estas são espécie daquelas, ou seja, patrimônio público, embora não discriminadas, cadastradas, individualizadas, tituladas e afetas a específica efetiva utilização pública).
DISCRIMINAÇÃO DE TERRAS DEVOLUTAS
Já tivemos oportunidade de dizer que “Discriminação é o processo pelo qual se categorizam as terras devolutas.”[25]
Assim, Discriminar terras é distinguir as públicas das particulares, já que muitas das vezes as terras devolutas “passaram e continuam passando, ilegalmente, ao domínio particular”, como explica Edson Ferreira de Carvalho[26].
Arruda Alvin[27] ensina que “o critério discriminador das terras particulares das públicas é, exatamente, o da exclusão, isto é, serão devolutas as terras que não forem do domínio particular, analisados, para tanto, os títulos de propriedade dos particulares. Discrimina-se, assim, o domínio, pelos títulos apresentados pelos particulares e não as terras possuídas, que podem ser declaradas tanto particulares quanto devolutas, estas últimas, como se frisou, sempre por exclusão”. Explica, também, que o que se discrimina é o “domínio”.[28]
Não cuidaremos aqui dos procedimentos ou processos discriminatórios, sendo importante lembrar que foi a Lei 601/1850 extremamente sensível, já que valorizou a ocupação qualificada, com moradia habitual e efetiva cultura. A “ocupação seria respeitada, sua posse seria legitimada”[29], explica Messias Junqueira, se mesmo sem título o ocupante ou possuidor tivesse na terra realizado cultura e moradia habitual. Apesar disso, a mesma estabeleceu que as terras devolutas somente por compra seriam adquiridas por particulares.
Num salto no tempo, para tal fim estabeleceu a CF/88 o limite de 2.500 hectares para tal fim, sem prévia autorização do Congresso Nacional, importando dizer que a partir daí é necessário que se autorize a compra – repetimos, pelo Congresso Nacional e não pelo Senado Federal, como antes.
Importante a observação de que qualquer pessoa até poderá ocupar e usar terra devoluta, mas não poderá pretender ser dono via usucapião.[30]
Além disso, enquanto não discriminada, não terá o poder público título formal registrado em seu nome e comprobatório do seu domínio, de sorte que não terá legitimidade para emissão de título[31] a terceiro, particular. Importante lembrar que, pelo art. 16, da Lei 6.383/76, sobre a área total ou parcialmente discriminanda, fica o oficial do registro proibido de praticar atos (como averbações, matrículas, registros etc) devendo comunicar eventual pretensão ao presidente da comissão processante, estando implícito que este não poderá com aquela anuir.
É fundamental o detalhe de que é mera ocupação/detenção e não posse o contato de alguém com as terras públicas, o que já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 51.290-GO, ocorrido em 24.9.1968, do qual foi Relator o Ministro Evandro Lins e Silva (quando se decidiu que “o particular não pode sequer caracterizar a sua ocupação da área como posse, e sim mera detenção” – nossos os grifos).[32]
Na essência, as terras públicas não são usucapíveis, como expressa o art. 183, da Carta Política de 1988 – aqui prevalecendo construção da Lei de Terras de 1850, como já visto – e o Código Civil de 1916 (art. 67), situação aclarada e reforçada pelo enunciado 340[33], da Súmula do E. Supremo Tribunal Federal. Apesar disso, no mesmo sentido editou-se o Decreto-lei 22.785, de 30.5.1933 e o Decreto-lei 9.760, de 05.10.1946 – a respeito do qual o Tribunal Pleno do E. Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ACO 132/MT[34], sob relatoria do Min. Aliomar Baleeiro, decidido que os bens públicos imóveis não podem ser objeto de usucapião “ressalvados os casos de praescriptio longis simi temporis, a de 40 anos consumada antes de 1917 e os do art. 5º, e, do Dec.-lei 9.760/46”.
A propósito, Ibraim José das Mercês Rocha[35] expressa respeito pela opção do constituinte em afastar a usucapião sobre as terras públicas “para evitar que, por meios fraudulentos e escusos pudesse o patrimônio público ser usurpado por particulares que, aproveitando-se da posse civil, a qual se transfere inclusive por meio de interposta pessoa (art. 550 CC), e por uma supervalorização de títulos […] sem origem em desmembramento do patrimônio público”.
NATUREZA DA SENTENÇA DA AÇÃO DISCRIMINATÓRIA
Qual a natureza da sentença da Ação Discriminatória? Para o mestre Pontes de Miranda[36] a Ação Discriminatória tem “caráter declaratório e demarcatório”.
A partir das altaneiras e doutas considerações do grande Mestre, trazemos à consideração de que esta ação é dúplice, o que será fundamental para a conclusão que adiante sustentaremos.
Ora, se a ação é dúplice, exatamente quanto ao “caráter declaratório” do Direito sobre a terra, cremos que o propósito demarcatório é um posterius em face da pretensão própria deduzida pelo autor (Estado).
Explicamos: o autor (Estado) da discriminatória não pede demarcação e também não pede que o seu “título” prevaleça, até pelo fato de que a terra devoluta não estaria titulada. Também não pede anulação ou nulidade da posse ou de efeitos seus como o usucapião, pois sobre terra pública não ocorre a posse civil e os seus efeitos, sendo mera “ocupação”.
O que o autor (Estado) da Ação Discriminatória pede é de natureza declaratória e, portanto, dessa categoria é a pretensão deduzida em Juízo que, naturalmente, gerará uma Sentença de natureza declaratória.
Nesse sentido tem sido a jurisprudência[37] e também devemos aqui explorar mais o tema, na medida em que, por ser de natureza declaratória, a pretensão do autor (Estado) é imprescritível, o que intimamente se relaciona com a impossibilidade de serem usucapidas as áreas discriminandas, já que a qualquer momento o Estado pode deduzir em juízo aquela pretensão para que o Poder Judiciário se a declare sua!
Assim, não discriminada é indisponível e sobre ela não corre prescrição.
Acrescenta Vito José Guglielmi[38], citando obra de Jacy de Assis[39]: “a sentença não atribuía domínio algum ao autor da discriminatória, este preexistia à propositura da ação e era dela pressuposto; era a eficácia dela meramente declaratória do domínio estatal” (nossos os grifos). E, citando Altir de Souza Maia[40], diz que “em realidade tratava-se de ação tipicamente declaratória, positiva ou negativa; se o juiz reconhece e declara o domínio estatal, obviamente afasta a pretensão do particular […] se a decisão conclui ser devoluta a área, destrói – de pronto – titulo particular […] Daí decorrer o cancelamento de simples determinação do juízo discriminatório” (nossos os grifos).
Tomaz Pará Filho[41] também diz que o domínio estatal apenas se declara, explicando que “o domínio eminente é emanação da soberania. O domínio eminente é, exatamente, o domínio cuja virtude o Estado, o Poder Público, além de exercitar a jurisdição, a legislação ou a administração, dispõe, relativamente a todo o território, ao assento físico da nação” (nossos os grifos).
Marcos Afonso Borges[42] se posiciona dizendo que “a ação é condenatória, com boa carga de constitutividade […] e conseqüentemente, reconhece o domínio estatal sobre o trato de terras, além de conter uma declaração, modifica a situação jurídica dos litigantes. Os contentores passam a ter nova situação jurídica, agora insusceptível de dúvida e, desta forma, a ação é constitutiva”.
Além disso, tem razão Marcos Afonso Borges[43] quando diz que “é ação tipicamente brasileira”.
Sobre essa conclusão, devemos refletir: essa peculiaridade já se revela no seu propósito, ao atribuir a lei ao Poder Judiciário o papel de dizer se aquela terra é pública ou particular, o que só reforça o histórico descontrole do Poder Executivo sobre o patrimônio devoluto.
Aqui não podemos de refletir profundamente sobre esse “descontrole do Executivo” que cria um histórico paradoxo, sobre o qual antes já falamos[44]:
“Que paradoxo: o Estado-administração formulará pedido por um pronunciamento judicial que “declare” se a terra é pública ou particular, no primeiro caso com uma conseqüência que é a desconstituição da aparente propriedade privada, mas sem que isso corresponda a uma eficácia desconstitutiva daquela Sentença. O interessante é que esse reflexo desconstitutivo para uma parte não equivale à natural carga constitutiva em favor da outra, como seria natural nas ações tipicamente constitutivas.”
Por fim, sobre a discriminação administrativa, explica Vito José Guglielmi[45], citando fala do “Des. Euler Bueno, no voto proferido e transcrito no AC 254.716, da Comarca de Itanhaém, em 15.9.1977: […] não se excluiu a possibilidade, por exemplo, de questionar judicialmente a conclusão administrativa“ (nossos os grifos).
Assim, em nosso pensar, a natureza do pedido (da pretensão deduzida em juízo) e, portanto, da Sentença, será declaratório a favor do Estado.
O Juiz declarará que a terra é pública, reconhecendo um estado de direito e de fato. Declarará um “não ser” relativo à aparente situação anterior, de suposta propriedade do particular.
No ano de 2020, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão a respeito, do qual transcrevemos breves trechos, da Ementa do julgamento do Agravo Interno no RECURSO ESPECIAL Nº 1.308.652 – MG (2011/0084258-4), sob relatoria do Min. Herman Benjamin:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DISCRIMINATÓRIA. TERRAS DEVOLUTAS. ARTIGOS 4º E 5º DO ESTATUTO DA TERRA (Lei 601/1850). ÔNUS DA PROVA. CABE AO PARTICULAR A PROVA DA DOMINIALIDADE E DA PRESENÇA DE CADEIA REGISTRAL VÁLIDA E REGULAR. ART. 4º C/C O ART. 20, § 2º, DA LEI 6.383/1976. 1. Os presentes autos tratam de Ação discriminatória ajuizada pelo Estado de Minas Gerais para que fosse reconhecido o domínio de bem imóvel consistente nas fazendas Campo do Melo e Água Branca, no Município de Buritizeiro, por tratar de terra devoluta. 2. O Tribunal estadual consignou: “o Poder Público não precisa provar a existência da terra devoluta, pois sua propriedade é originária e decorre da sua própria soberania. Assim, a prova do dominialidade apura-se por exclusão, ou seja, são de domínio público todas as terras, exceto aquelas que o particular comprovar serem providas de uma cadeia registral válida e regular.” (fl. 895, e-STJ). 3. Inicialmente, destaque-se que, se particulares de uma determinada cadeia dominial realmente possuem títulos legítimos de propriedade, mas jamais os levaram a registro ou não regularizaram suas posses nos termos dos arts. 4º e 5º do Estatuto da Terra (Lei 601/1850), não há como o Estado saber de sua existência. Dito de outra forma, o Poder Público não tem como comprovar que existem, escondidos em alguma gaveta particular, títulos válidos relativos a imóvel discriminado. É missão impossível. 4. Evidente que o ônus imposto ao Estado é aquele previsto no art. 4º c/c o art. 20, § 2º, da Lei 6.383/1976 (que incide nas discriminatórias estaduais, conforme seu art. 27), ou seja, promover a Ação Discriminatória e a citação dos ocupantes do imóvel para que tenham a oportunidade de apresentar seus títulos de domínio, além dos documentos que entenderem de seu interesse. 5. Sendo assim, cabe ao particular o ônus de provar o domínio em ação discriminatória de terras devolutas, uma vez que a demonstração de dominialidade realiza-se por exclusão: são de domínio público todas as terras, exceto aquelas relativamente às quais o particular cabalmente comprove a presença de cadeia registral válida e regular. 6. Agravo Interno provido.” (trechos destacados; nossos os grifos e destaques – fonte, site do STJ, consulta em 23.1.2021, às 15:32h)
Não se pode desconstituir o que nunca existiu juridicamente, por isso não tem eficácia desconstitutiva!
Noutras palavras, a desconstitutividade da propriedade particular não corresponde a efeito desconstitutivo da Sentença e não equivale a constituir a propriedade do Estado, uma vez que esta é anterior, latente, apenas aí sendo revelada. Teria então natureza declaratória com uma conseqüência posterior – um posterius – de desconstituição, portanto, da aparente propriedade privada.
O contexto aumenta a exigência de bom aconselhamento jurídico na aquisição dos imóveis rurais, com realização de qualificado duo dilligence agrário, para que o adquirente não sofra tais graves consequências, perdendo a terra adquirida por defeito nos remotos títulos e registros de origem…
Niterói – RJ, 24 de janeiro de 2021.
—
Notas:
[1] Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.
[2] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e das Soberania. Rio de Janeiro. Ed Imagem, 2017, p. 101.
[3] SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), tradução Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 68.
[4] ROCHA, Ibraim. Cancelamento do Registro de Imóveis decorrente de nulidades, independente de ação judicial. Possibilidade. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Pará, Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, n.s 14/15, jan/jun-jul/dez, 2006, p. 38/39.
[5] BORGES, Antonio Moura. Divisão e Demarcação de Terras, 2ª ed., Campo Grande, Contemplar, 2012, p. 536 e 539.
[6] Sabemos que apenas as Capitanias Hereditárias de Pernambuco e de São Vicente prosperaram, mas convém lembrar que “a primeira doação foi em 14 de março de 1534. Dos capitães escolhidos, militaram alguns na Índia e eram bravos soldados: Duarte Coelho (Pernambuco), Francisco Pereira Coutinho (Bahia), Aires da Cunha (o Norte), Vasco Fernandes Coutinho (Espírito Santo), Martin Afonso e seu irmão Pero Lopes ficaram com São Vicente e Santo Amaro. Porto Seguro coube ao rico vianês Pero do Campo Tourinho; Ilhéus ao escrivão da fazenda da Corte Jorge de Figueiredo Correia; a costa leste-oeste a Fernando Álvares de Andrade, tesoureiro-mor do reino, a João de Barros, o historiador, e à aquele Aires da Cunha e Antônio de Barros Cardoso; e Paraíba do Sul a Pero de Góes, companheiro de Martin Afonso.” (fonte: CALMON, Pedro. História da civilização brasileira. 2ª ed., São Paulo; Ed. Cia Editora Nacional Brasiliana. 1935. Páginas 18/19)
[7] GUGLIELMI, Vito José. As terras devolutas e seu registro. Revista de Direito Imobiliário. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, Janeiro/Junho de 1992, p. 90.
[8] Obra cit., p. 30: …“os latífúndios abrigavam casa-grande, senzala, capela e toda a área destinada á transformação da cana em açúcar, ou seja, o engenho, palavra que passou a denominar todas as propriedades latifundiárias plantadoras de cana-de-açúcar. Foi assim que o Brasil se ruralizou”…
[9] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 51ª. Ed; 6ª reimpressão, 2011, Ed Global Editora e Distribuidora Ltda, p. 51: …“Aliás a monocultura latifundiária, mesmo depois de abolida a escravidão, achou jeito de subsistir em alguns pontos do país […] fato de haver terras no Brasil, nas mãos de um só homem, maiores que Portugal inteiro”…
[10] REIS, Aarão. Direito AdministrativoBrazileiro. Rio de Janeiro, Editora Officinas Graphicas Vilas Boas & co, Rua Sete de Setembro, 219 e 225, edição de 1923, n. 430, p. 326: …“largas doações de extensas sesmarias a indivíduos, aventureiros e ousados, capazes de tentar e levar a bom êxito empreendimento de tamanho vulto e de tão sérias dificuldades práticas. […] tão remota e longínqua era a fabulosa região – tão desmesuradas suas colossais proporções – e tão difíceis e penosas as comunicações por terra e por água!.”…
[11] GONÇALVES, Albenir Itaboraí Querubini, O Regramento Jurídico das Sesmarias: o cultivo como fundamento normativo do regime sesmarial. São Paulo. 1ª edição. Leud, 2014, p. 119.
[12] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo, 5ª. ed., Ed. Globo, 2012, p. 146 e 147, 151, 465 e 466, 473, 484 e 596/597.
[13] RIBEIRO, Benedito Silvério, obra cit, p. 599, citando Paulo Garcia: …“avalanche de ocupação de terras, sendo a fase áurea do posseiro”…
[14] (Com reflexos na distribuição de terras) “do final do século XVIII ate hoje” (PAULA, João Antônio de. O Processo Econômico. Obra cit, p. 196)
[15] FAORO, Raymundo, Os Donos do Poder, obra cit., p. 484: …“os sistemas legais – a sesmaria (até 1822), a posse (até 1850), a venda ou concessão (depois de 1850) – traduzem conflitos e tensões, tentativas e objetivos harmônicos com o curso geral da economia”…
[16] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo, 5ª Ed, Editora Globo, 2012, p. 151 e 465.
[17] GONÇALVES, Albenir Itaboraí Querubini. Obra citada, p. 113.
[18] Obra cit, p. 600.
[19] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Obra citada, p. 125 e 130.
[20] Lei 556 (Código Comercial), de 25.6.1850, em parte revogado pela Lei 10.406/2002.
[21] CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. São Paulo, Companhia das Letras, 21ª. reimpressão, 1995, p. 200: …”O Código Comercial redigido na casa de Irineu virou lei depois de apenas duas sessões”…
[22] Decreto n. 376, de 12.8.1844.
[23] SILVA, Ângela. Obra cit,. P. 50, nota 18 (citando Messias Junqueira, obra citada, p. 107).
[24] ROCHA, Ibraim. Obra cit., p. 39/41, 43/44 e 46.
[25] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania, obra cit., p. 144.
[26] CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual Didático de Direito Agrário. Curitiba. Juruá Editora. 2010, p. 237.
[27] ALVIN, Arruda. Mandado de Segurança e Direito Público. Estudos e Pareceres. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1995, p. 202.
[28] ALVIN, Arruda. Obra cit., p. 201.
[29] JUNQUEIRA, Messias, obra citada, p. 68.
[30] A Constituição Federal veda a usucapião de terra pública (CF, art. 183, P. 3º e 191) e, como conseqüência, assim o faz o Código Civil de 2002, em seu art. 102, algo que o antigo também já previa (CC/1916, art. 67). A vedação também consta do Decreto-lei 22.785/1933 e no Decreto-lei 9.760/1946. No mesmo sentido a jurisprudência, como exemplifica precedente do STF – Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, no julgamento da ACO 132/MT, do qual foi relator o MIn. Aliomar Baleeiro, julgado em 04.4.1973: …“os bens públicos imóveis da União não podem ser adquiridas por usucapião […] ressalvados os casos de praescriptio longis simi temporis” a de 40 anos consumada antes de 1.917 e os do art. 5º, e, do Dec-lei 9.760/46”.
[31] Vicente Gonçalves de Araújo Junior. Direito Agrário: Doutrina, Jurisprudências e Modelos. Belo Horizonte. Ed. Inédita, 2002, p. 88.
[32] STF, 1ª Turma, RE 79.828-GO, Rel. Min. Neri da Silveira, j. 03.6.1989: “ação discriminatória. Registro paroquial não induz propriedade. É meio probante do fato da posse. Hipótese em que há obstáculo a accessio possessiones”.
[33] STF, Súmula 340: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais como os demais bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião”.
[34] STF, Tribunal Pleno, ACO n. 132/MT; Rel. Ministro Aliomar Baleeiro. J. 04.4.1973.
[35] ROCHA, Ibraim José das Mercês. Teoria da Posse Agrária e Usucapião de Terras Públicas. Breve Reflexão Frente à Constituição do Estado do Pará. Pará. Revista da PGE, n. 5, jul/dez-2001, p. 174 e 175.
[36] PONTES DE MIRANDA, Direito das coisas: propriedade. Aquisição da propriedade imobiliária. Parte Especial. Tomo XI. Atualizado pro Luiz Edson Fachin. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 350.
[37] TRF-1, 4ª Turma – Ac 19.207-DF 95.01.19207-5, Rel. Juíza Eliana Calmon, j. 19.4.2007, p 26.5.1997, DJ p. 37652: “natureza eminentemente declaratória”…
[38] GUGLIELMI, Vito José. As terras devolutas e seu registro. Revista de Direito Imobiliário. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, Janeiro/junho de 1992, p. 106 e 107.
[39] ASSIS, Jacy de. Ação Discriminatória, Forense, Rio de Janeiro, 1978, P. 32.
[40] MAIA, Altir de Souza. Da ação discriminatória, in Revista de Direito Agrário, Incra, n. 4, p. 17 e seguintes.
[41] PARÁ FILHO, Tomaz. Ação Discriminatória e Discriminação Administrativa (Conferência proferida no Curso sobre O Patrimônio Imobiliário do Estado, promovido pelo Centro de Estudos da PGE, SP, 1978), in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 12, p. 446, junho 1978; p. 448.
[42] BORGES, Marcos Afonso. Ação Discriminatória. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil, 1971, p. 195/211 (p. 208).
[43] BORGES, Marcos Afonso. Obra cit., p. 199.
[44] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Obra citada, p. 151.
[45] GUGLIELMI, Vito José. As terras devolutas e seu registro. Revista de Direito Imobiliário. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, Janeiro/junho de 1992, p. 100/101.