Direito Agrário

A Recuperação Judicial Situacionista e a demanda por Homogeneidade Jurisprudencial

Direito Agrário - Foto: Bernardo Poletto

por Thiago Polisel.

 

Os resultados da economia brasileira ao término de 2020 dependerão, novamente, do agronegócio.

Com previsão de recorde para a safra 2020, a soja, segundo dados do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola, do IBGE, tende a crescer 6,7% quando em comparação com 2019. Um número estimado de 121 milhões de toneladas do grão. Outras commodities seguem o mesmo fado, ainda que diante das dificuldades postas pela pandemia.

Diante de tal cenário, é recorrente o discurso de que “o agro anda bem”.

Ledo engano.

De fato, a história apresenta dois Brasis. Aquele da década de 70, cuja produção agrícola era pífia a ponto de o país exportar alimento, ao Brasil de hoje, tido como abastecedor do mundo e que muito avançou desde o fomento ao crédito agrícola trazido, em especial, pela Lei 8929/94, que instituiu a cédula de produto rural.

No entanto, o agronegócio é, neste momento, o setor da economia mais ameaçado pelos riscos de uma desaceleração sistêmica na concessão de crédito privado. E nada tem a ver com a pandemia de coronavírus que assola o mundo, mas sim com outra patologia de letalidade econômica irremediável: a recuperação judicial situacionista utilizada por produtores rurais que pagam o preço de teses jurídicas adversas e, sobretudo, insipientes.

Situacionista porque o produtor rural que busca financiamento privado junto a empresas de fornecimento de insumos agrícolas, como sementes, adubos e químicos, firma contrato em que assume o dever de aplicar os recursos no plantio sob o compromisso de futuramente entregar o produto ou subproduto agrícola ao credor, o qual finalmente exporta a commodity ou realiza sua circulação no mercado interno mediante contratos firmados ao mesmo tempo em que financiou o produtor.

É a forma clássica e rudimentar do “barter”, praticado majoritariamente pelas revendas do interior, pela agroindústria, por tradings e também por cooperativas, e cujo instrumento de garantia é a já citada cédula de produto rural (CPR), título de crédito cuja função social é de tamanho respeito jurídico, que o próprio STJ, por ocasião do julgamento do REsp nº 1.327.643/RS, afastou a CPR, inclusive, de penhoras trabalhistas, reconhecendo a posição de privilégio dos credores que financiam o agronegócio brasileiro e detêm o direito absoluto sobre o produto ou moeda quando do vencimento da obrigação.

Ao firmar o contrato, dois princípios essenciais da teoria contratual são assumidos pelas partes: a autonomia de vontade, que torna o produtor rural confortável para estabelecer uma relação jurídica com quem determinar, e o princípio da obrigatoriedade do contrato, que obriga os contratantes à força vinculante daquela convenção.

Se uma determinada empresa deseja firmar contrato barter (ou seja, se deseja fornecer insumos agrícolas para futuro recebimento em) com agricultor que dispõe de demonstrações financeiras, tais como o balanço patrimonial, Demonstração de Resultado do Exercício (DRE) ou Demonstração do Fluxo de Caixa, referida empresa (financiadora) é capaz de aferir com acurácia, ou, ao menos, com alguma segurança, o risco de crédito oferecido pelo produtor.

Assim, de acordo com a qualidade do pacote de informações trazido pelo financiado, o indivíduo tanto pode estar enquadrado na nota “AA”, que significa o ápice da idoneidade comercial e financeira, com acesso maciço a crédito, quanto na “C”, por exemplo, que o obrigará a fornecer maiores garantias para a real quitação da sua contrapartida. Notas inferiores a “C” costumam excluir o produtor da carteira de interesse do financiador, justamente em razão do risco presente na análise.

Trata-se, portanto, de um critério objetivo para a apuração do risco. É como se, com exceção dos riscos climáticos, que são mais ou menos previsíveis, a empresa buscasse, através de metodologias específicas, afastar a possibilidade de inadimplência por parte do agricultor, tal como realizado historicamente pelo mercado de crédito mundial, não fosse o fato de que, no Brasil, passou-se a defender a tese de que o credor perderá completamente o direito de recebimento na forma e prazo contratados, apenas porque financiou uma pessoa física nunca antes elegível para requerer a recuperação judicial, mas que, hoje, está autorizada a incluir, no processo, não somente as dívidas do financiamento agrícola, como todas as outras assumidas antes do protocolo do pedido, independentemente da sua natureza.

Já o produtor rural que não dispõe de demonstrações financeiras também tem o seu pedido de crédito analisado, ainda que sob outra premissa, a qual flerta muito mais com o subjetivismo, uma vez que privilegia exclusivamente fatores como o tempo de desempenho da atividade rural, o nível de endividamento do produtor, o histórico de relacionamento com a empresa, assim como a qualidade das garantias reais ou fidejussórias que oferecerá ao negócio. Ou seja: não bastassem os riscos de mercado (oriundos da flutuação do preço) e de liquidez (que é o desafio de prevenir  perda de preço do grão), o risco de crédito demanda avaliação penosa por parte das empresas financiadoras, especialmente quando se trata de operações barter cujo grão já foi negociado em mercados futuros.

E foi justamente neste cenário que um novo conceito surgiu para ferir de morte conceitos civis históricos, desvirtuando por completo o instituto da recuperação judicial.

Criou-se a “recuperação judicial do produtor rural”, também denominada “RJ Pessoa Física”, baseada na premissa de que o indivíduo produtor rural sem nenhuma organização contábil ou registro formal também estaria apto a beneficiar-se da proteção regida pela lei 11.101/05. Uma teoria explicitamente condenada pela própria lei, mas que gerou simpatia de parte do Poder Judiciário, especialmente durante os últimos dois anos. O mesmo Judiciário que ainda não sabe responder como, na hipótese de descumprimento do plano recuperacional, seria possível a decretação de falência em desfavor de mero CPF.

Hoje, valendo-se da tese acima, produtores recebem insumos agrícolas dos financiadores, plantam, colhem o grão, desviam o produto do alcance do credor e, ato contínuo, ajuízam a medida de recuperação buscando a “proteção” dos seus ativos através da prodigiosa tese de que prevalece a “preservação da empresa” em detrimento do sistema regularmente obedecido pelo credor. Fazem, inclusive, mais: pedem a desconstituição de garantias, assim como cometem o despautério de requerer a devolução de grãos árdua e custosamente apreendidos pelos credores, buscando, assim, nada mais que um duplo reforço do caixa, já que protegem o estoque e, no bojo da recuperação, sob as asas do Judiciário, vendem o produto por uma segunda vez, auferindo, com isso, um segundo lucro. Tudo sob o argumento de garantir a pretensa “subsistência” da “empresa”, mas descortinando o fato de que, dentro da recuperação judicial, estão também inseridos todos os compromissos da pessoa física, inclusive as tomadas extraordinárias de recursos alheios à produção e que, com o deferimento da medida, estarão conjuntamente sujeitos à força do tempo e do deságio.

Inquestionável o direito do produtor rural em socorrer-se da recuperação judicial em circunstâncias legítimas de quebra de safra, contanto que cuide, o Poder Judiciário, de realizar criteriosa e eficiente análise sobre as demonstrações contábeis as quais alude o artigo 51, II, da Lei 11101/05. O que se parece não admitir é a busca exclusiva do devedor pela venda dúplice do produto e sempre sob a cortina da “atividade rural” desempenhada sem qualquer controle contábil da operação.

A recuperação judicial situacionista difere da recuperação comum porque usa do fator surpresa para frustrar o mercado logo após intensa alavancagem, fazendo com que a falta de registros contábeis beneficie o devedor, forçando o Judiciário a conceder a proteção muito mais pelo fator principiológico (de preservação da empresa) que pelo fator legal (de provar a vulnerabilidade econômica).

Com a RJ, tem-se a  quebra da cadeia produtiva, formada por etapas interligadas que conectam o grão da propriedade ao destinatário final, assim como interrompe todos os planejamentos do processo de distribuição da commodity, sejam eles financeiros, de armazenagem, logísticos, aduaneiros e/ou financeiros.

Por intermédio de bancas especializadas no discurso de que a recuperação judicial é verdadeiro benefício a ser aproveitado por todo e qualquer indivíduo que deseje pagar dez por cento das suas dívidas em vinte anos, poucos são os produtores conscientes de que a decisão pela RJ é um caminho do qual não se pode regressar.

O raciocínio parece pleonástico, mas o produtor rural que ajuíza o pedido de recuperação judicial não tem outra obrigação senão a de realmente recuperar-se. Não o fazendo, deixará de plantar. Até o momento, não se conhece um caso do agronegócio em que o pequeno ou médio produtor rural foram beneficiados com a decisão de prosseguir com a medida. O que se conhece, com imensa segurança, são os impactos da sua decisão.

O primeiro e mais imediato é o revés reputacional. Por mais que se amadureça o debate jurídico no Brasil, o mercado não distingue recuperação judicial de falência. Tanto é que poucas, senão nenhuma das empresas de auditoria contábil do grupo denominado big four admitem provisionamento no resultado menor que 100% do valor da perda da RJ. Com a insegurança jurídica provocada pelas recuperações judiciais situacionistas, é nula a expectativa de que este cenário seja alterado.

Além disso, seja nos círculos rurais frequentados pelo recuperando, seja perante o mercado, aquele que recorre à recuperação judicial é desde sempre enxergado como ineficiente na gestão do negócio, seja porque decidiu majorar sua área patrimonial sem o regular planejamento operacional e financeiro, seja porque efetivamente buscou intensa alavancagem financeira de modo a ignorar as sazonalidades e, em especial, os riscos do negócio ao qual está envolvido.

Para a imensa maioria dos credores, o produtor não recebe outro estigma senão o de “perdido, perdido e meio”.  Com a sua reputação altamente marginalizada, o produtor passa a sofrer com a falta de financiamento das revendas, não acessa bancos, é excluído da carteira de grandes fornecedores e acaba por perceber que o seu futuro como produtor rural, ou seja, o seu CPF, tornou-se refém justamente das instituições credoras que assumiram o calote do passado em seus respectivos resultados.

Diz-se “calote” porque as empresas financiaram o produtor, negociaram a venda do grão a terceiros, não receberam o produto e tiveram de readquirir a commodity a preços diversos daquele inicialmente contratado para não responderem às sanções contratuais. É dizer: no mesmo país, para os mesmos contratos, valores protecionistas distintos são empregados pela jurisprudência.

Mesmo que os credores, durante o processo de recuperação, sejam indulgentes com o recuperando, aprovando um plano de recuperação censurável, dado que seu conteúdo propõe a aplicação de deságios constrangedores e parcelamentos que superam o ano de 2040, outro não será o resultado senão o arrasamento durante anos da atividade do produtor, já que nenhum financiador, salvo raríssimas exceções, reconsiderará a decisão de interromper a concessão de crédito no curto prazo.

Estes são os cenários sonegados pela indústria das RJs, assim como danosos são os reflexos ao fomento privado rural.

Longe de ser matéria resolvida, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 1.800.032, sinalizou quanto à possibilidade de submissão do produtor rural à recuperação judicial, bem como da inclusão das dívidas existentes antes do registro na junta comercial. Um julgamento cujo voto vencedor ostentou alguma plausubilidade em relação exclusivamente à tese jurídica envolvida e os diferentes regimes aos quais está submetido o produtor rural antes e depois de eventual inscrição, mas que se mostra míope e passa ao largo de todas as nuances econômicas que diversos setores econômicos insistem por claramente justificar e que, seguramente, foram o real intuito de entrega do legislador primitivo.

Sustentamos quanto à necessidade de a matéria ser revisitada pelo Tribunal, a exemplo do combatente Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, o qual, com total habilidade, tem tratado a recuperação judicial como um fenômeno casuístico, reconhecendo a importância de suporte ao produtor rural, mas também denunciando explicitamente as ocorrências de fraude na tentativa de um número relevante de indivíduos que buscam frustrar todo um sistema de crédito que, até o momento, ainda padece de proteção do legislador e, sobretudo, da jurisprudência superior.

A julgar pelo atual cenário, o horizonte é de aumento exponencial dos juros e endurecimento dos requisitos e condições para a aprovação de novos negócios, com a consequente redução do acesso a recursos e insumos para os produtores. Com a máxima segurança, pode-se refletir que os bons produtores já estão pagando pelos maus.

Se é coerente, aos olhos da jurisprudência, que o produtor rural – avesso aos requisitos legais – tenha o direito de acessar o instituto da recuperação judicial, que o Estado, então, enrijeça o exame do instituto mediante análise minuciosa do alegado estado de vulnerabilidade financeira sustentada pelo devedor, sobretudo antes do deferimento da medida, sob pena de a norma recuperacional servir de salvaguarda para operações falaciosas que desafiam a boa-fé e resultam no enriquecimento sem causa do devedor.

Thiago Polisel é head jurídico da Fiagril (Dakang China). Compõe a Comissão Jurídica da Abiove. Especialista em direito empresarial pela FGV SP e pós-graduado em direito ambiental e gestão estratégica da sustentabilidade pela PUC São Paulo.

 

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