quinta-feira , 30 outubro 2025
Início / Notícias / A Cédula de Produto Rural como crédito rural: fundamentos normativos, teleológicos e jurisprudenciais para a incidência do MCR 2-6-4 e para o controle dos encargos pelo CMN
Tobias Marini de Salles Luz Advogado da banca Luz, Castro & Bornelli Advogados, em Maringá (PR). Pós-graduado em Direito do Agronegócio pela Unicesumar. Fundador do site www.direitorural.com.br. Coordenador de pós-graduação em Direito do Agronegócio e Política Agrícola na Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE/PR). Membro da União Brasileira de Agraristas Universitários (UBAU). Membro do Comitê Europeu de Direito Rural (CEDR).

A Cédula de Produto Rural como crédito rural: fundamentos normativos, teleológicos e jurisprudenciais para a incidência do MCR 2-6-4 e para o controle dos encargos pelo CMN

por Tobias Marini de Salles Luz.

 

Resumo
O artigo sustenta que a CPR-F, quando emitida por instituições integrantes do SNCR e destinada ao custeio/investimento da atividade agropecuária, integra materialmente o regime do crédito rural. A demonstração decorre da integração normativa (Plano Safra, funding por LCA e enquadramento no MCR), do teste material-teleológico e da coerência sistêmica. Disso resultam dois efeitos principais: (i) possibilidade de prorrogação/alongamento conforme o MCR 2-6-4, mediante prova de pedido administrativo tempestivo, laudo técnico e perspectiva de adimplemento; e (ii) submissão dos encargos à disciplina do CMN, com aplicação supletiva dos limites jurisprudenciais das cédulas de crédito rural, ressalvada a controvérsia específica sobre CPR-F nos tribunais superiores. O trabalho também afasta a tentativa de burla por forma cambial, à luz da boa-fé objetiva e do controle do abuso de direito.

Palavras-chave
CPR-F; crédito rural; MCR 2-6-4; alongamento; Plano Safra; LCA; SNCR; CMN

Abstract
This paper argues that the Financial Rural Product Note (CPR-F), when issued by institutions within Brazil’s National Rural Credit System (SNCR) and used to fund farm working capital or investment, is materially subject to the rural credit regime. The conclusion follows from regulatory integration (Harvest Plan, LCA funding and MCR framing), a material-teleological test and systemic coherence. Two main consequences ensue: (i) eligibility for debt rescheduling under MCR 2-6-4 upon proof of a timely administrative request, technical report and future repayment capacity; and (ii) submission of charges to CMN regulation, with supplemental application of rural credit case-law caps, while acknowledging higher-court debate specific to CPR-F. The paper also rejects attempts to evade the regime through formal labeling, grounded in good faith and abuse-of-right controls.

Keywords
CPR-F; rural credit; MCR 2-6-4; rescheduling; Harvest Plan; LCA funding; SNCR; CMN regulation;

 

  1. Introdução

A discussão sobre a natureza jurídica da Cédula de Produto Rural (CPR) — em especial na sua modalidade financeira (CPR-F) — tem grande e notável relevância, não apenas teórica, mas também prática para o contencioso do agronegócio.

Isto porque os produtores que financiaram o custeio de suas safras por meio de CPR-f’s emitidas junto a instituições financeiras, ao enfrentar frustração de safra ou desequilíbrio de caixa e requisitar a prorrogação (alongamento) das obrigações com base no MCR 2-6-4, regime clássico e bastante conhecido do crédito rural, tiveram seu pedido negado.

A resistência costuma ancorar-se na premissa de que a CPR-F seria título cambial “mercantil”, alheio ao sistema do crédito rural, e, portanto, estranho às balizas de reembolso e aos limites de juros fixados pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Este artigo sustenta a tese oposta: a CPR-F emitida para financiar a atividade agropecuária, especialmente quando adquirida por bancos e cooperativas integrantes do SNCR, deve ser reconhecida como operação de crédito rural em sentido material, razão pela qual se submete ao regime de prorrogação do MCR 2-6-4 e ao controle de taxas de juros pelo CMN, com a consequente aplicação, na omissão regulatória, da limitação a 12% a.a. firmada pela jurisprudência para as cédulas de crédito rural.

  1. Conceito de crédito rural e da CPR

Comecemos pelo arcabouço normativo que institucionalizou o crédito rural como política pública.

A Lei 4.829/1965 criou o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), definiu finalidades econômicas e sociais e conferiu ao CMN a competência para normatizar a matéria, enquanto a Lei 8.171/1991 (Lei da Política Agrícola) reafirmou o crédito rural como instrumento de financiamento da atividade rural, integrado ao planejamento estatal do setor.

É nesse sistema normativo que se insere o Manual de Crédito Rural (MCR), compilado das normas aprovadas pelo CMN e divulgadas pelo Banco Central do Brasil, cuja observância vincula beneficiários e instituições financeiras que operam no SNCR.

Aqui vale fazer uma rápida digressão a respeito do que se caracteriza como crédito rural.

A Lei n° 4.829/65, que institucionalizou o crédito rural no país, é claríssima ao dispor que o crédito rural é um mútuo de destinação:

 

Art. 2°Considera-se crédito rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.

No mesmo sentido, o artigo 2º do Decreto nº 58.380/66, que regulamentou a Lei nº 4.829/65, considera crédito rural o financiamento que tem como finalidade o suprimento de recursos aos produtores rurais. Não menciona tipo de cédula ou instrumento que deve ser formalizado.

Por esta disposição, resta evidente que o que determina a natureza do crédito (se rural ou não) é a sua destinação. Sempre que o crédito for destinado a suprir recursos a produtores rurais, será crédito rural.

Sobre a questão da destinação, com maestria ensina Pontes de Miranda:

 

“Mútuo com destinação – O mútuo com destinação, mútuo de escopo, ou mútuo para fim preciso, pode ser oriundo de lei, ou de negócio jurídico. A destinação atende a interesse público, ou a interesse privado… A destinação decorrente de lei é de interesse público, ou interesse privado digno de tutela (…).”[1]

O Manual de Crédito Rural, segue a mesma linha, ao dispor que o crédito rural pode ser formalizado por diversos títulos, conforme itens 3.1.1 e 3.1.2[2], assim como o Decreto‑Lei nº 167/1967 em seu art. 1º[3] que, ao utilizar a palavra “poderá”, abre espaço para a formalização de crédito rural por outros instrumentos que não apenas as cédulas rurais.

Assim, a utilização da cédula de crédito rural como instrumento para um financiamento rural é uma faculdadee não uma obrigação, de modo que o crédito rural poderá ser materializado documentalmente por outros meios, até mesmo por um contrato, escritura pública ou outros títulos de crédito.

 Neste sentido, a doutrina agrária clássica de Lutero Pereira[4], ao dispor que:

“Dispondo que o referido Conselho deve estabelecer os juros nas operações de crédito rural, independentemente da origem dos recursos que lastreiam o mútuo, da destinação do financiamento ou mesmo do instrumento utilizado para contratar o financiamento, é de se entender que a Autoridade precisa fixar a taxa, indicando com precisão o seu índice, sob pena de não estar desempenhando adequadamente sua função disciplinadora, e com isso impedindo a contratação válida da remuneração do credor.” (g.n.)

O título, portanto, é acessório. O que determina a natureza do mútuo rural não é o título no qual a operação está formalizada, mas sim a sua destinação.

A CPR, por sua vez, nasce a partir da Lei 8.929/1994 como um título que materializa uma promessa de entrega de produto rural, a então popular “soja verde”. Com a Lei 10.200/2001, a CPR ganha a modalidade de “liquidação financeira” (a CPR financeira ou CPR-F), tornando-se título líquido e certo com pagamento em dinheiro.

A evolução normativa revela o propósito inequívoco do legislador em tornar a CPR um instrumento de financiamento do agro, apto a atrair capital para custeio, comercialização.

De fato, a CPR, em ambas as modalidades, rapidamente se mostrou como um dos principais títulos do mercado de capitais para o que já foi chamado de financiamento privado do agronegócio, como exemplifica Buranello[5]:

“A CPR é um divisor de águas na evolução do financiamento privado. […] Um novo regime jurídico de incentivos através de políticas públicas específicas, instrumentos de crédito e de garantias com formas particulares de emissão, circulação e nova infraestrutura de mercado (registro eletrônico centralizado), constituem o que chamamos de Sistema Privado de Financiamento do agronegócio.”

Cumpre, neste momento, estabelecer uma necessária distinção. Não tratamos aqui das CPRs utilizadas no denominado financiamento privado do agronegócio — aquelas adquiridas por revendas, fabricantes e demais players de mercado, em operações de barter ou de hedge. O foco recai especificamente sobre as CPR-F’s emitidas perante bancos e demais instituições financeiras integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural, destinadas ao custeio ou investimento da atividade agropecuária, com liberação imediata de recursos ao produtor e liquidação física (entrega de produto) ou financeira (pagamento em dinheiro) na data avençada, acrescida dos encargos pactuados.

Essa distinção é crucial porque a CPR-F, quando empregada como instrumento de financiamento produtivo no âmbito do SNCR, encontra-se organicamente alinhada às políticas agrícolas anuais, com as consequências jurídicas daí decorrentes.

  1. CPR-F como instrumento de crédito rural

3.1 Integração normativa e institucional (Plano Safra, LCA, MCR)

Nos últimos anos, o Governo Federal tem incorporado expressamente a CPR à arquitetura das políticas públicas de financiamento da produção. A título ilustrativo, no Plano Safra 2024/2025, além dos volumes destinados às linhas tradicionais, anunciou-se a previsão de aproximadamente R$ 108 bilhões em captações por Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) direcionadas ao lastro de emissões de CPR, reconhecendo a CPR como mecanismo de financiamento do agronegócio no âmbito da estratégia oficial de crédito. Tal diretriz, divulgada em comunicação do Ministério da Agricultuar (MAPA), afasta a leitura de que a CPR seria um “corpo estranho” ao sistema de crédito rural[6].

Em convergência, o Banco Central inclui a LCA entre as fontes de financiamento do crédito rural[7]. Se a LCA compõe o funding do sistema e lastreia emissões de CPR, segue-se, por coerência normativa e funcional, que a CPR empregada para custeio ou investimento integra materialmente a arquitetura do crédito rural e se submete às suas balizas regulatórias.

Essa integração também é visível no Manual de Crédito Rural (Capítulo 6 – Recursos): admite-se a aplicação via aquisição de CPR para cumprimento de direcionalidades de LCA, sendo que o Documento 6 – Anexo IV codifica a aquisição de CPR como aplicação apta a compor exigibilidades.

Em outras palavras, ao captar recursos através de LCA e emprestá-las ao produtor rural através de aquisição de CPR-F, a instituição financeira está cumprindo suas exigibilidades de aplicação de recurso no crédito rural.

Assim, verifica-se que o CMN contabilizou a CPR no próprio núcleo do sistema nacional de crédito rural, como veículo de alocação de recursos ao crédito rural.

É nesse contexto sistêmico que se deve enfrentar a questão do alongamento da dívida rural.

3.2 Alongamento (MCR 2-6-4): requisitos, finalidade e prova

Caracterizada a função de financiamento produtivo no âmbito do SNCR, incide o regime especial de prorrogação previsto no MCR 2-6-4, voltado a mitigar riscos típicos do setor (frustração de safra, dificuldades de comercialização, eventos climáticos adversos), preservando a continuidade da atividade econômica, sempre que o mutuário demonstre dificuldade temporária de pagamento, preservando a capacidade produtiva e a função social do crédito.

A objeção costumeira, de que “CPR não é crédito rural”, não se sustenta diante do critério material-teleológico. Afinal, se (i) a CPR financia diretamente a produção, (ii) o emissor é produtor rural e o adquirente é banco ou cooperativa integrantes do SNCR, e (iii) a própria política agrícola (Plano Safra) e o MCR contabilizam a CPR como aplicação de crédito rural, não há razão jurídica para negar à operação o regime protetivo de reembolso típico do crédito rural — sob pena de contradição normativa e desvio de finalidade da política pública de crédito.

Inclusive, recente decisão do TJMT no Agravo de Instrumento 1021137-67.2025.8.11.0000, admitiu a extensão das balizas do crédito rural a CPR-F quando comprovada sua função de financiamento da atividade agropecuária, especialmente para fins de tutela de urgência (suspensão de exigibilidade, impedimento de negativação) e de prorrogação nos termos do MCR 2-6-4, conforme se extrai da ementa abaixo:

(…). A jurisprudência admite a extensão dos efeitos do regime de crédito rural à CPR-F, quando utilizada como instrumento de financiamento da atividade produtiva, em razão de sua função e finalidade econômica, conforme precedentes do STJ e dos tribunais estaduais. (…) (…). DISPOSITIVO E TESE: (…) A Cédula de Produto Rural com Liquidação Financeira está sujeita ao regime jurídico do crédito rural quando utilizada para financiamento da atividade agropecuária, sendo possível sua prorrogação em caso de eventos climáticos adversos. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor à relação contratual entre produtor rural e instituição financeira quando o crédito é destinado à atividade econômica produtiva. (TJ-MT – AGRAVO DE INSTRUMENTO: 10211376720258110000, Relator.: SERLY MARCONDES ALVES, Data de Julgamento: 23/08/2025, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/08/2025)

Até porque, como já visto, a forma cambial do título não pode prevalecer sobre a causa concreta e a finalidade normativa do SNCR: a boa-fé objetiva (arts. 113 e 422 do CC) e a vedação ao abuso de direito (art. 187 do CC) impõem requalificação funcional quando a CPR-F instrumenta, de fato, financiamento rural, atraindo as balizas do crédito rural — inclusive o alongamento do MCR 2-6-4.

 

3.3 Encargos: competência do CMN e limites supletivos

O mesmo raciocínio vale também para o controle de juros. No crédito rural, a competência para fixação de taxas é do CMN; havendo omissão, a jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de que os juros remuneratórios se limitam a 12% a.a. e os moratórios a 1% a.a. (art. 5º, parágrafo único, do DL 167/1967), vedada a comissão de permanência. Neste sentido, precedentes do STJ:

(…)4. Conforme a jurisprudência pacífica desta Corte, as cédulas de crédito rural, industrial e comercial se submetem a regramento próprio, que confere ao Conselho Monetário Nacional o dever de fixar os juros a serem praticados. Não havendo atuação do referido órgão, adota-se a limitação de 12% ao ano prevista no Decreto nº 22.626/1933. Precedentes. 5. O art. 5º do Decreto-Lei nº 167/1967, ao determinar que as taxas de juros remuneratórios devem obedecer ao limite fixado pelo CMN, sem ressalvas quanto à possibilidade de livre pactuação, tem por objetivo evitar a fixação de taxas abusivas por parte das instituições financeiras e, simultaneamente, permitir certa flexibilidade, uma vez que o limite pode ser constantemente alterado pelo CMN. 6. O CMN, por meio do item 1 do MCR 6-3, autorizou que as partes, em cédulas de crédito rural com recursos não controlados, pactuem livremente as taxas de juros, mas permaneceu omisso quanto à fixação de um limite, como determina o art. 5º do Decreto-Lei nº 167/1967, de modo que, não havendo limite estabelecido pelo CMN, as taxas acordadas entre as partes não podem ultrapassar o limite de 12% ao ano previsto no Decreto nº 22.626/1933. 7. Recurso especial conhecido e não provido. (REsp n. 1.940.292/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/5/2022, DJe de 27/5/2022.)

Embora os precedentes usualmente versem sobre cédulas de crédito rural, regidas pelo DL 167/67, ou, no máximo cédulas de crédito bancário com finalidade rural, as razões de decidir, a saber, a competência regulatória do CMN aliada à proteção do produtor rural, são plenamente transponíveis às CPRs quando estas funcionarem, de fato, como crédito rural destinado ao financiamento da atividade.

Já a jurisprudência do STJ quanto a aplicabilidade de juros moratórios limitados em 1% a.a. nas cédulas rurais, evoca textualmente o parágrafo único do art. 5ºdo DL 167/67, o que também deve ser aplicado ao caso de CPR quando utilizada para financiamento rural.

3.4. CPR-F como crédito rural: simetria regulatória e efeitos práticos

Observe-se: a Lei da CPR não criou um microssistema autônomo de juros. A lei apenas tipifica um título apto a financiar a cadeia produtiva, sem derrogar a arquitetura pública do crédito rural.

Embora a CPR tenha fonte legal diversa (lei 8.929/94), quando ela substitui funcionalmente a cédula rural na mesma finalidade de custeio, a simetria regulatória (juros do CMN e, na omissão, 12% a.a. e juros moratórios limitados em 1% ao ano) é a solução mais coerente com a política agrícola e com a isonomia entre financiamentos equivalentes.

O STJ também possui precedentes sobre o tema, no sentido de que a CPR pode ser submetida ao mesmo regramento das cédulas rurais:

2. A jurisprudência desta Corte Superior, firmou orientação de que a cédula de produto rural tem a mesma natureza jurídica da cédula de crédito rural, e, portanto, está submetida ao mesmo regramento imposto à cédula de crédito (RMS 10.272/RS, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2001, DJ de 15/10/2001, p. 264).

3. É aplicável à cédula de produto rural o mesmo tratamento conferido à cédula de crédito rural, quanto aos juros de mora, limitados em 1% (um por cento) ao ano, nos termos do art. 5º do Decreto-Lei nº 167/1967. 4. Agravo interno a que se nega provimento” (AgInt no AREsp 906.114/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 21/10/2016).

Embora a jurisprudência sobre CPR-F não seja inteiramente uniforme nos tribunais superiores, a simetria regulatória justifica a aplicação analógica das balizas do crédito rural quando comprovada a função de financiamento no âmbito do SNCR.

Negar esse paralelismo entre cédula rural e a CPR-F utilizada para financiamento da atividade agrícola permitiria ao sistema financeiro o deslocamento artificial dos recursos, migrando das clássicas cédulas rurais para a concessão de financiamentos via CPR ou outros títulos – como de fato já tem acontecido – com a finalidade de escapar das normas do MCR e do CMN, frustrando a arquitetura do SNCR e onerando o setor produtivo do agronegócio.

O argumento ganha força a partir do fato de que o próprio regulador já tratou a CPR como destino elegível de recursos direcionados do crédito rural e, em informes, descreve que as normas do crédito rural são aprovadas pelo CMN e que as instituições financeiras seguem essas normas e as colocam em prática no dia a dia com seus clientes[8].

Assim, se uma instituição financeira cumpre exigibilidades do crédito rural ao oferecer a aquisição de CPR’s de produtores, reconhece-se, por ato estatal, que aquela CPR faz as vezes de crédito rural. Não seria lógico, portanto, negar ao emitente da CPR os direitos (como a prorrogação do 2-6-4 e limitação da taxa de juros) correspondentes às obrigações (cumprimento de exigibilidade) assumidas pelo credor.

Sob a perspectiva fática dos últimos planos safra, notadamente as edições de 2022/2023, 2023/2024 e 2024/2025, a ênfase pública no uso de CPR para financiar o agronegócio reforça o enquadramento material: se o Estado estimula CPR para custear safra, as operações resultantes devem ter a mesma tutela de preservação da atividade que o MCR confere às operações de custeio rural — entre elas, a prorrogação quando sobrevém incapacidade de pagamento por fatores adversos.

Nessa moldura, a qualificação material da CPR-F como crédito rural não é exceção, mas decorrência lógica do desenho normativo e da política pública que a incorporou como mecanismo de financiamento.

  1. CONCLUSÃO

Do ponto de vista sistêmico, portanto, a prova da destinação dos recursos é o gatilho para atrair o MCR 2-6-4 e a disciplina de encargos às Cédulas de Produto Rural.

Em conclusão, três proposições se firmam: (i) a CPR-F destinada ao custeio da atividade (financiamento da atividade produtiva) — especialmente quando adquirida por instituições integrantes do SNCR — é crédito rural em sentido material, como reconhecem o Plano Safra e o MCR ao incorporá-la na alocação de recursos; (ii) por consequência, incide o regime de prorrogação do MCR 2-6-4, desde que demonstrada a dificuldade temporária de pagamento em razão de ao menos uma das hipóteses previstas nas alíneas do item 4 e o cumprimento dos demais requisitos da norma; (iii) as taxas sujeitam-se à disciplina do CMN e, na sua omissão, à limitação de 12% a.a. para juros remuneratórios e 1% a.a. para moratórios, tal como ocorre com as cédulas de crédito rural, em homenagem à coerência regulatória e à finalidade pública do crédito rural.

É uma leitura sistêmica, teleológica e conforme políticas públicas, capaz de corrigir o reducionismo formal que tem levado parte da jurisprudência a apartar a CPR do MCR.

Notas:

[1] Tratado de Direito Privado, RT, 1984 – Tomo XLII, páginas 15-16.

[2] TÍTULO: CRÉDITO RURAL

CAPÍTULO: Operações – 3

SEÇÃO: Formalização – 1

1 – O crédito rural pode ser formalizado nos títulos abaixo, observadas as disposições do Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967, e da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004:

a) Cédula Rural Pignoratícia (CRP);

b) Cédula Rural Hipotecária (CRH);

c) Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária (CRPH);

d) Nota de Crédito Rural (NCR);

e) Cédula de Crédito Bancário (CCB).

2 – Faculta-se a formalização do crédito rural mediante contrato no caso de peculiaridades insuscetíveis de adequação aos títulos descritos no item 1.

[3] Art. 1° O financiamento rural concedido pelos órgãos integrantes do sistema nacional de crédito rural a pessoa física ou jurídica poderá efetuar-se por meio das cédulas de crédito rural previstas neste decreto-lei.

[4] PEREIRA, Lutero de Paiva. Financiamento Rural. 3ªEdição. Curitiba: Juruá, 2014. P.

[5] BURANELLO, Renato. Mercado, instituições e direitos dos sistemas agroindustriais. São Paulo: Quartier Lantin, 2024. P. 134

[6] Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/governo-federal-lanca-plano-safra-24-25-com-r-400-59-bilhoes-para-agricultura-empresarial . Acesso em 28.08.2025

[7] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/creditorural. Acesso em 28.08.2025

[8] Disponível em https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/creditorural. Acesso em 29.08.2025

 

Tobias Marini de Salles Luz
Advogado da banca Luz, Castro & Bornelli Advogados, em Maringá (PR). Pós-graduado em Direito do Agronegócio pela Unicesumar. Fundador do site www.direitorural.com.br. Coordenador de pós-graduação em Direito do Agronegócio e Política Agrícola na Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE/PR). Membro da União Brasileira de Agraristas Universitários (UBAU). Membro do Comitê Europeu de Direito Rural (CEDR).

Leia também:

Sentença extingue ação monitória de CPR física que pretendia cobrança de quantia certa em dinheiro

–  Cédula de Produto Rural – CPR é impenhorável por lei e não pode ser usada para satisfazer crédito trabalhista

CPR e possíveis ajustes no crédito rural

Leia também

Aumento de aproximadamente 45% nos pedidos de recuperação judicial no agronegócio: efeitos práticos e interpretação do STJ sobre contratos de arrendamento rural

Maria Eduarda Trevisan Kroeff De acordo com dados recentes fornecidos pelo Serasa Experian, no primeiro …