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Direito Agrário - foto: Cláudio Grande Jr.

Estados Unidos criam novas restrições para a venda de terras a estrangeiros

por Rogério Reis Devisate.

 

A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros é regulada pela Lei 5.709/71, em contundente resposta ao grave cenário revelado pela CPI da venda de terras a estrangeiros (Congresso Nacional, 1967)[1], que estudamos profundamente, quando tivemos acesso aos seus vários volumes e apensos, ora destacando breves trechos do que a respeito já escrevemos[2]:

“No Volume II há peculiar documento, intitulado “Audiências perante a Subcomissão da Comissão de Bancos e Moeda, do Senado dos Estados Unidos das América”, onde consta importante depoimento lá prestado (fls. 235 e seguintes), no qual lemos:

[…] O Sr. Senador […] – Quantos acres calcula V. Sa. Que possua? […] – Bem, ao todo, possuo entre dois e meio e três milhões de acres lá […] Não há experts na América Latina: há tão-somente graus de ignorância”.

Mais um pequeno trecho merece lembrança:

Graves referências são feitas sobre “implicações quanto à segurança nacional” (item e – fls. 1507 c/c 1509, item 2.2 – n.g.) e acerca da ideia de possível linha em torno do Paralelo 15 […] se mantemos ou não a soberania brasileira em vastas áreas do nosso território […] são citadas áreas imensas […] e sobre fazenda […] com cerca de trinta quilômetros de largura por cento e trinta de extensão”… [3]

Antes de avançar, convém registrar que essas aquisições já foram declaradas nulas pelo Judiciário, nos muitos processos que pudemos consultar.

Aquela norma estabelece limites, como quer a Constituição Federal, no seu art. 190[4].

Noutro foco, a Lei 13.986/20 flexibilizou restrições ao ingresso do capital estrangeiro em imóveis rurais, o que não significa novel regra especial, regulamentadora e substitutiva daquela antes mencionada, já que tramita no Congresso Nacional projeto de lei específico (PL 2963/2019)[5] e tendente a modificar paradigmas, ao não fixar, para particulares, limite para o tamanho de cada imóvel além dos parâmetros em razão da área dos municípios. Além disso, admite a aquisição de posses, algo difícil de ser controlado pelo Estado e pela sociedade, já que não registráveis nos cartórios do RGI.

Sobre o tema, em fevereiro de 2021, a Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU) endereçou Parecer ao Congresso Nacional, sugerindo a ampliação dos debates, com a realização de audiências públicas, ao apontar sombras na legalidade e constitucionalidade daquela proposta normativa. Mais recentemente, a Procuradoria Geral da República[6] emitiu Nota Técnica[7] em semelhante sentido e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil também já se pronunciou.[8]

Nada há de errado ou questionável na necessidade expansionista ou no interesse de qualquer país. Não há nuance de qualquer sorte de preconceito ou resistência a povos ou nações. A grande questão é: por qual motivo não somos, também, protecionistas, expansionistas ou nacionalistas? Se outros podem ser nacionalistas e tudo fazer para proteger os seus, hoje e no futuro, por qual motivo não podemos valorizar e proteger o que é nosso e os nossos nacionais?

NOVO POSICIONAMENTO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Os EUA agiram, há poucas semanas, com ação protecionista e a adoção de nova medida para restringir a compra de suas terras por estrangeiros (no caso concreto, chineses)[9], depois que foram adquiridas (apenas) 100 hectares[10], há cerca de 20 quilômetros de base militar.

Se apenas 100 hectares causaram tudo isso, lá, imaginemos o que não ocorreria se a questão envolvesse algumas das imensas áreas que aqui temos, com apenas um título aquisitivo[11] envolvendo dezenas de milhares de hectares.

Vejamos trechos do argumento americano[12]:

O Departamento do Tesouro dos Estados Unidos anunciou nessa sexta-feira (5) que a compra de terras […] pode se tornar mais difícil para empresas e cidadãos estrangeiros sob a nova regra elaborada pelo órgão e publicada hoje (5) no Registro Federal dos EUA.

De acordo com a Reuters, a nova medida expandiria a jurisdição do Comitê de Investimento Estrangeiro do Tesouro, entidade responsável por revisar investimentos estrangeiros e transações imobiliárias para possíveis impactos na segurança nacional. […] A proposta do Tesouro acontece depois que o Grupo Fufeng da China comprou, em julho de 2022, 121 hectares com planos de construir uma fábrica de moagem de milho”…

Na mesma linha, já disse Alessandro Octaviani[13]: “China e EUA: proteger seus mercados contra o controle por capitais estrangeiros. Na China […] A lei de 2020 continua restringindo ou proibindo o investimento externo em diversas áreas”.

REFLEXOS DESSA POSTURA NORTE-AMERICANA, NO PENSAMENTO BRASILEIRO

A resistência dos EUA à aquisição daquela pequena terra por estrangeiros é sinal de que não se trata apenas de mera compra e venda de imóvel rural. A questão envolve mais do que isso, com reflexos na Soberania Nacional, na Segurança Nacional, na Soberania Alimentar e nos alimentos como questão de estratégia global.

Embora haja quem defenda a facilitação das aquisições por estrangeiros focando na atração de investimentos, é bom relembrar que o jornal espanhol El Pais informa que o Brasil já é um dos cinco (5) países do mundo que mais vende terras nessas condições.[14]

Essa posição não nos coloca em situação invejável e, sim, de vulnerabilidade.

Ademais, vale considerar que os atuais grandes parceiros comerciais e compradores só manterão tal posição enquanto tiverem a necessidade de comprar produtos. A partir do momento em que tenham as mesmas condições de produção interna, deixarão de ser grandes compradores e passarão a ser fortes concorrentes.[15]

Além disso, é crível que o Monopsônio chinês afeta o mundo[16], como já pudemos dizer:

Quando um único e grande comprador adquire produtos de vários vendedores, por longo tempo, não domina só os preços, já que cria complexa cadeia de dependência. Esta acaba produzindo também ingerências políticas que retroalimentam o seu poder de compra. A cadeia de fornecedores se torna tão dependente que começa a disputar entre si, como num leilão às avessas

Em sentido figurado: quem possuir a padaria venderá os pães. Se a nossa padaria for vendida, teremos de pagar pelos pães e, mais do que isso, pelo preço que o novo proprietário quiser nos vender ou… ficar sem.

Al Gore[17], ex-Vice Presidente dos EUA, já disse: “no passado, a luta por terras sempre foi causa comum para os confrontos bélicos […] as empresas estrangeiras estão chegando em bando […] incluem problemas como uso da água, manejo do solo e impacto sobre os agricultores locais”… Por isso, no exterior, tantas obras falam em “Grilagem de Águas”, como já registramos.[18]

Ainda estamos em tempo de resistir, como Nação, em prol dos produtores nacionais já instalados, dos brasileiros que são proprietários rurais, dos brasileiros envolvidos nas cadeias produtivas, do nosso povo que sua e trabalha muito para ter o que comer a cada dia, da imensa massa que está pagando alto pelo alimento e daqueles que não têm o que comer.

Notas:

[1] DEVISATE, Rogério Reis. Venda de terras a estrangeiros: passado, presente e futuro – cinquentenário da cpi da venda de terras a estrangeiros. Homenagem à sua importância histórica e à legislação que gerou. Site Jus Navigandi, 03.12.2017 – https://jus.com.br/artigos/62606/venda-de-terras-a-estrangeiros-passado-presente-e-futuro

[2] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro: Ed. Imagem, 2017, p. 319/321.

[3] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro: Ed. Imagem, 2017, p. 335/336.

[4] BRASIL. Constituição Federal, art. 190: “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”. (destaque nosso).

[5] DEVISATE, Rogério Reis. PL 2963/2019 é inconstitucional e lesivo à segurança nacional. Site Consultor Jurídico. 15 de janeiro de 2021.  https://www.conjur.com.br/2021-jan-15/devisate-inconstitucional-pl-29632019-lesa-seguranca-nacional.

[6] MPF. MPF posiciona-se contra projeto de lei que flexibiliza regras para aquisição de terras por estrangeiros, 07.2.2023. Fonte https://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-posiciona-se-contra-projeto-de-lei-que-flexibiliza-regras-para-aquisicao-de-terras-por-estrangeiros. Consulta em 30.3.2023, às 21:16h.

[7] MPF. NOTA TÉCNICA N° 1/2022 – 1ª CCR GT Terras Públicas e Desapropriação. Fonte https://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/copy3_of_NOTATCNICAN120221CCRGTTerrasPblicas1.pdf. Consulta 30.3.2023, às 22:43h.

[8] Jornal Valor – São Paulo: OAB volta a pedir que stf suspensa venda de terras a estrangeiros, por Stella Fontes, 11.4.2023. https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/04/11/oab-volta-a-pedir-que-stf-suspenda-venda-de-terras-a-estrangeiros-no-pais.ghtml. Consulta em 11.04.2023, às 13:08h.

[9] O Globo. Valor Econômico. Tensões crescem e EUA restringem compras de terras por chineses. 21.02.2023. Consulta em 30.5.2023. https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/02/21/tenses-crescem-e-eua-restringem-compras-de-terras-por-chineses.ghtml

[10] SputnikNewsBrasil. Após compra chinesa, Tesouro dos EUA anuncia nova regra para venda de terras perto de base militar. 05.5.2023. https://sputniknewsbrasil.com.br/20230505/apos-compra-chinesa-tesouro-dos-eua-anuncia-nova-regra-para-venda-de-terras-perto-de-base-militar-28725109.html.

[11] Conhecemos um título, na Bahia, com cerca de 211.000 (duzentos e onze mil hectares), declarado nulo por falsidade do título de origem, nulificando também o Registro Torrens e o RGI, por Acórdão do Tribunal de Justiça, transitado em julgado no ano de 1969. Caso muito interessante do ponto de vista jurídico, demonstrando falha no “infalível” Registro Torrens. Este é um dos casos tratados na CPI da Venda de Terras a Estrangeiros (Congresso Nacional, 1967).

[12] SputnikNewsBrasil. Após compra chinesa, Tesouro dos EUA anuncia nova regra para venda de terras perto de base militar. 05.5.2023. https://sputniknewsbrasil.com.br/20230505/apos-compra-chinesa-tesouro-dos-eua-anuncia-nova-regra-para-venda-de-terras-perto-de-base-militar-28725109.html

[13] OCTAVIANI, Alessandro. Comércio e concorrência: “livres” ou “estratégicos”? Artigo, Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Direito;, 23 de Agosto de 2021 – Fonte https://direito.usp.br/noticia/556e3060e398-comercio-e-concorrencia-livres-ou-estrategicos-; Consulta: 30.3.2023, 21:39h.

[14] ESPANHA. Jornal El Pais. Brasil é um dos cinco países do mundo que mais vende terras para estrangeiros. 20/05/2018. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/19/actualidad/1526766954_914923.html#:~:text=O%20Brasil%20está%20entre%20os,arável%20levantadas%20pela%20Land%20Matrix.

[15] DEVISATE, Rogério Reis. Terras para estrangeiros: e se o maior parceiro comercial virar concorrente? Site Consultor Jurídico. 28.4.2023. https://www.conjur.com.br/2023-abr-28/rogerio-devisate-compra-terras-produtor-estrangeiro

[16] DEVISATE, Rogério Reis. Monopsônio chinês afeta o mundo. Artigo; A Gazeta do Amapá, 18.3.2023. Fonte https://agazetadoamapa.com.br/coluna/3289/monopsonio-chines-afeta-o-mundo. Consulta 30.3.2023, 21:46h.

[17] GORE, Al. O futuro. São Paulo: HSM Editora, 2013, p. 204/205.

[18] DEVISATE, Rogério Reis. Disputa por terras e “grilagem de águas”. Consultor Jurídico. 24.5.2023. https://www.conjur.com.br/2023-mai-24/rogerio-devisate-grilagem-aguas

Rogério Reis Devisate – Advogado. Defensor. Escritor. Palestrante. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Fluminense de Letras e da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ (instagram @rogeriodevisate – E-mail [email protected])

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